As histórias das mulheres que precisaram se passar por homens para fazer o que queriam

17 de junho, 2016

(Nexo, 17/06/2016) Elas mudaram de identidade para ganhar espaço num mundo de dominância masculina. Conheça os casos mais marcantes

Em 1959, a americana Rena Kanokogi venceu um campeonato de judô organizado pela associação de jovens homens cristãos (YMCA, na sigla em inglês). Billy Lee Tipton atraiu holofotes na cena de jazz dos anos 1930 e 1940. No século 8, Marina viveu como um monge num monastério do Vale de Kadisha, região onde hoje é o Líbano.

Em comum, todas essas mulheres agiram sob um disfarce masculinopara poder fazer aquilo que queriam. E estão longe de serem as únicas. Na história, e em diferentes culturas, mulheres se passaram por homens para poder ir para guerra, praticar esportes, trabalhar, escrever e até mesmo criar os próprios filhos.

“Fora da ficção, as tentativas de mulheres de se passarem por homens sempre foram uma resposta desesperada a bloqueios profissionais e sociais”, escreveu a jornalista Marlo Thomas sobre a questão. Conheça algumas dessas histórias:

Mulheres como homens

SISA ABU DAOOH
A egípcia Sisa Abu Daooh tem 64 anos, 43 dos quais passados com uma jelaba (típica roupa muçulmana) e um pano servindo de turbante sobre os cabelos. Nascida na área rural do país, ela se casou aos 21 anos e seu marido faleceu quando estava grávida de seis meses. Para sustentar sua filha, passou a vender artesanato e trabalhar como engraxate na rua disfarçada de homem – a cultura de sua cidade natal,  Luxor, não permitiria que trabalhasse como mulher. Pelo feito, Daooh perdeu contato com sua família. Em 2015, recebeu do presidente egípcio Abdel Fatah al-Sisi o prêmio “mãe exemplar do ano”. Ainda hoje, mantém os trajes masculinos.

ELISA BERNERSTRÖM
A sueca se vestiu de soldado para poder reforçar o exército na guerra contra a Rússia em 1808 e 1809 – mulheres não eram permitidas nas forças armadas da Suécia até o século 20.  Ela pretendia ficar ao lado do marido, o soldado Bernard Servenius, enviado para a frente de batalha em Estocolmo. O disfarce foi descoberto, mas Bernerström foi elogiada por sua bravura.

SHABANA BASIJ-RASIKH
Shabana tinha seis anos quando o Talibã proibiu a educação de meninas no Afeganistão na década de 1990 Passou a se vestir como menino e durante cinco anos arriscou sua vida em roupas masculinas para frequentar uma escola secreta, levando livros em sacolas de feira. Hoje ela está à frente do único colégio interno para meninas do país, que tem por objetivo criar uma geração de líderes mulheres.

“Meus pais sabiam que estavam arriscando nossas vidas ao nos enviar para uma escola secreta. Mas era muito mais difícil para eles imaginar suas filhas crescerem sem educação.”
Shabana Basij-Rasikh em entrevista à Reuters

RENA KANOKOGI
Kanokogi começou a praticar judô nos anos 1950 em Coney Island e logo tornou-se a única praticante mulher da luta num centro de treinamento YMCA (Associação Cristã de Moços, na sigla em inglês), no Brooklyn. Apesar de ser aceita na equipe, não era aceita em competições. Foi por isso que decidiu se vestir de homem. Em 1959, sob disfarce, venceu um torneio da academia em Nova York. Desmascarada, foi forçada a devolver sua medalha.

Kanokogi se mudou para o Japão para continuar seu treinamento e tornou-se a primeira mulher a praticar a luta no Kodokan Institute, em Tokyo. Posteriormente, organizou o primeiro campeonato feminino de judô no Madison Square Garden. Morreu em 2009, aos 74 anos.

MALINDA BLALOCK
Blalock se passou por homem para poder lutar ao lado do marido na Guerra Civil americana. Ela se alistou no regimento 26 da Carolina do Norte com o nome de Samuel Blalock em 1862. O casal posteriornente desertou e passou para o lado da União.

Blalock não foi a única mulher disfarçada no conflito: Sarah Edmonds serviu com o nome de Frank Thompson, atuando como enfermeiro e espião do exército da União. Quando um companheiro seu foi morto numa emboscada, assumiu seu posto na luta armada, deixando-a apenas após contrair malária. Ela evitou se internar em um hospital militar com medo de que sua verdadeira identidade fosse revelada. Após o término da guerra, como mulher, tornou-se enfermeira de um hospital para soldados em Washington.

BILLY LEE TIPTON
Dorothy Lucille Tipton se interessou por música logo cedo, tocando piano e saxofone. Nos anos 1930, começou a se vestir como homem e adotar o apelido do pai, “Billy”, para se apresentar e ser aceita no mundo do jazz. Logo, quando começou a sair em turnês com outros artistas, adotou o disfarce 100% do tempo. Seu verdadeiro gênero só foi revelado 50 anos após sua morte.

MARGARET ANN BULKLEY
Criança prodígio numa família britânica em crise financeira, Bulkley entrou na faculdade de medicina em 1809 como James Barry. A ideia foi de seus pais. Quatro anos mais tarde, ela passou no exame para tornar-se cirurgião e passou a servir o exército britânico como médico. Ela ficou conhecida por aprimorar as condições sanitárias e o atendimento médico nos hospitais militares e foi promovida para o Principal Medical Officer. Realizou ainda uma das primeiras cesarianas bem-sucedidas da história. Sua identidade só foi revelada após sua morte, em 1865, de disenteria.

NORAH VINCENT
A jornalista se apresentou como Ned Vincent por 18 meses para poder escrever um livro sobre gêneros. Ela queria descobrir se seria de fato tratada diferentemente como homem e, para tanto, fez fono para engrossar a voz e juntou-se a um time de boliche. Resultado da experiência, o livro “Self-Made Man”, publicado em 2006, relata a experiência.

KATHRINE SWITZER
Em 1967, Switzer se inscreveu para a maratona de Boston como K. V. Switzer, pois mulheres não eram aceitas na corrida – política que foi alterada poucos anos depois, em 1972. Durante a prova, um funcionário tentou tirá-la da pista, mas seu namorado o empurrou para longe. Um fotógrafo registrou o momento e a imagem se espalhou em jornais pelo mundo. Entusiasta da prática, Switzer venceu a maratona de Nova York em 1974 e em 2011 entrou para o Hall da Fama das mulheres – criado em 1969 para promover os direitos femininos.

MARINA, A MONJA
No século 8, Marina fingiu ser um menino para acompanhar seu pai em sua vida monástica. Lá, tornou-se um dos monges e era chamada de Marinus. Após vários anos, foi acusada de engravidar a filha do dono de uma pousada próxima. Sem revelar sua identidade, foi expulsa do monastério e acabou criando o bebê.

JOANA D’ARC
Um dos casos mais conhecidos aconteceu no século 15. Obedecendo a vozes de santos que ouviu em seus sonhos, a camponesa Joana decidiu que lideraria o exército francês no conflito que entrou para a história como Guerra dos Cem Anos. Sem nenhum treinamento militar, convenceu o príncipe Carlos de Valois a deixá-la conduzir o exército até uma Orléans cercada, onde obteve uma importante vitória contra os ingleses. Após ver Carlos ser coroado, foi capturada pelas tropas inglesas, julgada por bruxaria e morta na fogueira em 1431, aos 19 anos. Foi canonizada em 1920, tornando-se símbolo da resistência francesa.

CHARLOTTE BRONTË
No século 19, quando autores não saiam pelo mundo fazendo turnês de autógrafos, nem tinham uma foto 3×4 estampando orelhas de livros, a britânica Charlotte Brontë publicava suas obras assinadas com outro nome – masculino. Ela temia que seus livros fossem mal recebidos por serem escritos por uma mulher.

“Jane Eyre”, sua obra mais famosa, foi assinada por um Currer Bell. Anos mais tarde, as irmãs de Brontë, Emily e Anne, adotaram a mesma prática, e viraram Ellis e Acton em capas de exemplares. As três publicaram uma coleção inteira de poesia com os pseudônimos masculinos.

Pelos mesmos motivos que Brontë, a escritora Mary Ann Evans publicou seus seis primeiros romances como George Eliot. “Middlemarch”, seu romance mais conhecido, de 1872, é considerado uma grande obra literária.

Mas pseudônimos não eram uma invenção da época e nem ficaram relegados ao século 19. J.K. Rowling, por exemplo, antes de se tornar responsável por um dos livros mais lidos do mundo, optou por assinar “Harry Potter” apenas com suas iniciais, tendo em mente o fato de que seu público seria constituído na maior parte por garotos.

MURRAY HALL
No final do século 19, Mary Anderson, conhecida como Murrey Hall, era um político proeminente e diretor de uma agência de empregos. Como membro do Comitê Geral do Tammany Hall, sociedade política do Partido Democrata, ela se registrou e votou nas primárias (fase inicial das eleições americanas) numa época em que mulheres não tinham esse direito. Quando descobriu que tinha câncer de mama, se recusou a procurar tratamento para não revelar sua identidade. Morreu em 1901.

DOROTHY LAWRENCE
Jovem jornalista, Lawrence cobriu da linha de frente a Primeira Guerra Mundial após fazer amizade com dois soldados ingleses que a ajudaram a se disfarçar como homem – tornou-se o soldado Denis Smith. Revelada a farsa, foi presa pelo exército britânico sob suspeita de ser uma espiã alemã, liberada e foi proibida de contar sua história – para não motivar outras mulheres a fazerem o mesmo.

MARIA TOORPAKAI WAZIR
Por 16 anos a paquistanesa se apresentou como Genghis Khan (nome emprestado do líder mongol) para poder participar de competições esportivas. Wazir nasceu em Waziristan, região ultraconservadora do país, onde boa parte das mulheres sequer recebe educação básica.

Aos quatro anos, cortou o cabelo, pegou a roupa dos irmãos e queimou as suas. “Meu pai começou a rir e disse: ‘Lá vamos nós, temos um Genghis Khan na família’”, disse a atleta à BBC. Vendo a filha constantemente metida em brigas, o pai decidiu incentivá-la.

“Com um nome de garoto, ela podia participar de qualquer jogo que quisesse.”
Shamsul Qayyum Wazir
Pai de Maria Toorpakai Wazir, à BBC

Aos 12, vestida como menino, começou a ganhar competições de levantamento de peso. Porém com medo de que a modalidade provocasse mudanças no corpo da filha, o pai a apresentou ao squash – esporte popular no Paquistão – levando-a para uma academia em Peshawar.

Após alguns meses de prática, Maria revelou sua identidade e passou a sofrer bullying de colegas – isolada, dedicava tempo integral à prática. O trabalho compensou quando Maria começou a ganhar diversos campeonatos juvenis. Em 2006, virou profissional e no ano seguinte recebeu um prêmio das mãos do presidente paquistanês.

A família, no entanto, passou a receber ameaças de grupos conservadores e se cercou de seguranças fornecidos pela federação nacional de squash. Durante três anos, o pai de Maria enviou mensagens e emails para federações do esporte pelo mundo, na tentativa de tirar a filha do país. Em 2011, ela se mudou para Toronto.

 

Beatriz Montesanti

 

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