(O Globo, 09/07/2016) Semana de protestos, violência e comoção refletem tensão racial nos EUA
Noite passada eu sonhei com a morte do meu irmão.
Ele está vivo, para deixar claro. Em seus 20 e tantos anos, saudável, com um ótimo emprego, acabou de mudar de estado. Ele está bem — por enquanto.
O sentimento de “por enquanto” é novo. Sou uma negra morando nos Estados Unidos, mas não cresci com uma sensação dominante de medo. Me ensinaram que as coisas estavam melhorando — elas sempre estão melhorando. Olhe, deixamos a escravidão no passado, as leis de segregação no passado. O movimento dos direitos civis funcionou.
Relembrando, talvez meus pais — como todos os pais negros — fossem menos convencidos do que eu, e com razão. Imigrantes da Nigéria — um farmacêutico e uma enfermeira — eram profissionais de classe média obcecados com nossa educação e mais interessados em nos incentivar a ir em frente do que olhar para trás.
Ainda assim, ouvi eles instruírem meu irmão no dia em que ele recebeu sua carteira de motorista: dirija devagar; não fique fora durante a noite; se for parado pela polícia, sempre mantenha suas mãos à vista; nunca levante o tom de voz; não retruque; você não é como os outros; este país não é seguro para você; você deve estar sempre alerta.
E mesmo como a caçula, mulher, recebi meus próprios alertas. Vista-se bem; fale corretamente; nunca dê motivos para alguém suspeitar de você; saiba que você precisa ser duas vezes tão boa como qualquer outro. A ameaça de dano físico tinha reduzido, mas a sugestão de que eu não poderia esperar que certas estruturas me servissem, e que eu teria que trabalhar mais do que os meus colegas brancos para me manter segura, não.
Apesar de tudo, presumi o melhor — claro, é parcial, é limitante, mas, ei, todos nós finalmente seremos capazes de parar de nos preocupar. Afinal, as coisas estão melhorando.
O problema é que elas não estão. Os últimos meses — e dias — nos ensinaram isso.
Noite passada sonhei com a morte do meu irmão, porque, numa situação que se tornou escandalosamente comum, me deparei com o vídeo de alguém como ele sangrando, enquanto um policial apontava uma arma.
Ainda assim, os últimos meses deixaram claro que uma parte não suficiente dos EUA se importa. A luta pela justiça, por segurança básica, parece ser combatida praticamente sozinha por pessoas de cor. Por quê? Uma crise como esta não deveria falar à humanidade de todos nós?
Americanos protestam pela crise na Europa, e em Orlando, como deveriam. Status de Facebook mudam, lojas estendem bandeiras. Mas a resposta para a reivindicação de que vidas negras importam é: “Pare de ser tão divisionista. Todas as vidas importam. Vocês são quem estão trazendo o racismo de volta”.
O provável candidato republicano lança falsas estatísticas que tentam justificar a brutalidade da polícia, mas quando a comunidade negra reclama, a réplica é algo na linha de, “Bem, foi um acidente. E ele não é realmente racista”. Apesar de declarações contrárias à imprensa, não está claro que os candidatos democratas se importem muito mais.
Eu não participo de muitos protestos. Ninguém me descreveria como radical. Eu sou uma articulista e editora, mas tendo a evitar discussões sobre raça.
Mas, ontem, eu sonhei com a morte do meu irmão. Porque eu sei que, apesar de todas as suas realizações — dois diplomas de universidades de elite e nem mesmo uma ponta de registro criminal — à noite ele é apenas outro homem negro dirigindo, e ele poderia ser morto como um, também.
Acesse o PDF: Violência contra negros ainda é pesadelo, por Cristine Emba (O Globo, 09/07/2016)