‘Por que decidi, 33 anos depois, confrontar o homem que me estuprou’

19 de julho, 2016

(BBC Brasil, 19/07/2016) No verão de 1981, quando tinha 13 anos, Carmen Aguirre foi estuprada por um homem em uma floresta perto de sua escola.

Ela foi uma das centenas de vítimas do chamado “maníaco da sacola de papel” – o apelido se referia ao fato dele colocar uma sacola de papel na cabeça das vítimas para evitar ser identificado.
A experiência afetou profundamente as relações afetivas de Carmen, assim como sua carreira de atriz e escritora. Mas 33 anos depois, ela decidiu conhecer seu agressor, John Horace Oughton, na prisão.

Em entrevista à BBC, Carmen disse que sabia da existência do estuprador antes de se tornar uma de suas vítimas – ele era constantemente tema de manchetes de jornais e aterrorizava a área metropolitana de Vancouver havia anos:

“Já tinha ouvido falar dele antes de ele me atacar, porque sempre estava no noticiário e tudo era muito sensacionalista.

Ele era muito conhecido pelo apelido, a polícia vinha constantemente à nossa escola para nos alertar sobre o “maníaco da sacola de papel”.

Era o primeiro dia de sol do ano, um domingo, e por razões óbvias bastante aguardado em Vancouver.

Carmen Aguirre nasceu em Santiago e se mandou ao Canadá com a família depois do golpe militar no Chile (Foto: ADRIAN COOK)

Carmen Aguirre nasceu em Santiago e se mandou ao Canadá com a família depois do golpe militar no Chile (Foto: ADRIAN COOK)

Minha prima, que tinha 12 anos, e eu colocamos nossos vestidos e fomos passear pela vizinhança. Terminamos o passeio no colégio, que era rodeado por uma floresta.

Vimos que ia começar uma partida de futebol entre um time canadense e um chileno.

Já tínhamos roubado um cigarro do meu tio, fomos à floresta para fumarmos escondido e, de lá, ver a partida.

Entramos ali, como fazíamos desde pequenas. Não estávamos muito longe do campo de futebol: eram uns dez passos dentro da mata, de forma que podíamos ver até mesmo a torcida.
Sob a mira de um revólver

Quando estávamos a ponto de sair dali, escutamos uma voz atrás de uma árvore. Ela nos mandou dar meia-volta, por as mãos em nossas cabeças e não olhar para trás porque estávamos sob a mira de um revólver.

Ele nos obrigou, então, a entrar na floresta e deitar no chão, esfregando nossos rostos na terra.

Durante as horas seguintes, nos torturou psicologicamente.

Imediatamente nos pediu para murmurar em seu ouvido nossos endereços, os nomes de nossos pais e nosso telefone – uma de cada vez, para que evitar que combinássemos qualquer coisa. Disse que, se contássemos a alguém o que havia acontecido, mataria todos.

Além disso, repetia para mim: “Você é uma prostituta, sei que você veio aqui para se encontrar comigo”, tudo para que a minha prima acreditasse que eu a tinha levado para lá de propósito.

Depois de algumas horas, começou a me ameaçar dizendo que me mataria se não fizesse sexo com ele. Retruque e falei: isso não é amor, é estupro; prefiro morrer.

(Fui criada por uma mãe feminista radical e tudo isso aprendi com ela: o que é estupro, o que é agressão sexual, o que são relações sexuais consensuais.)

Por um momento, tentei convencê-lo e continuei dizendo: “pode me matar”.

Então, ele me disse que tinha um machado e uma única bala. Falou que ia cortar minha prima em pedaços e depois usaria a bala para me matar.

Em seguida, afirmou à minha prima que isso era o que eu queria. E ela acreditou nele.

Ele me deu dez segundos para pensar e contou em voz alta. Quando chegou ao final, minha prima me olhou e suplicou: “por favor, faça isso por mim”.
E eu fui estuprada.”

Denúncia

Ao fim do estupro, Carmen e sua prima decidiram denunciar o homem à polícia, apesar das ameaças. Esse processo também foi traumatizante, como ela conta a seguir:
“Eles foram cordiais, mas fizeram tudo errado.

“Eu estava em estado de choque, tremia de uma maneira tão descontrolada que quase não podia ficar de pé nem sentada; estava sangrando. Minha prima também estava em estado de choque.

Em vez de nos levar imediatamente ao hospital, fomos interrogadas. Eles nos fizeram uma bateria de perguntas que hoje seriam consideradas extremamente ofensivas, como “Você está certa do que aconteceu com você?; Como você estava vestida?; E essa saia? É muito justa”.

Só comecei a me acalmar quando fui levada ao hospital e atendida por uma enfermeira muito carinhosa, que segurou minha mão.

De um lado, sabia que havia sido estuprada e eu não tinha culpa. De outro, estava convencida de que era completamente responsável pelo que tinha me acontecido.

Ele era um psicopata conhecido, e continua sendo o maior pedófilo da história do Canadá, se analisarmos o número de vítimas.

Naquela época não havia ajuda psicológica. A forma que encontrei inicialmente para lidar com isso foi falar do que me aconteceu o tempo todo… não com a minha família, pois sabia que isso seria ainda mais doloroso, mas com minhas amigas do colégio.

Mas eu contava a história como se não tivesse participado dela. A trilha pela qual ele nos levou estava lá, em frente ao colégio, sempre presente na minha memória.
Com a minha prima, floresceu a relação mais próxima que tenho. Só nós duas sabemos o que aconteceu exatamente naquele dia.”

Reconhecimento

No início da primavera de 1985, quatro anos depois, Carmen recebeu um telefonema da polícia. Um homem havia sido detido e ela devia ir à polícia com sua prima para identificá-lo:
“Quando entrei na sala, me deu taquicardia porque havia 12 homens do outro lado do vidro, muito parecidos uns com os outros.”

Estava quase desistindo, até que meu olhar se fixou no último homem. Vi que ele estava com os punhos cerrados. Não sei por que, mas lembrava das mãos dele. Senti calafrios e foi instintivo: sabia que era ele.

A foto dele apareceu em todos os jornais: era o homem que eu havia acusado de estupro.

Eu e minha prima sabíamos que ele tinha informações sobre nós. Por isso, saber que ele estaria atrás das grades nos fez sentir mais seguras.

Dez anos mais tarde, comecei a estudar teatro e, durante uma aula de voz, tive um flashback do estupro. Era a primeira que algo do tipo acontecia comigo.

Pensei que já havia me livrado do trauma. Mas estava em um período de negação sobre o efeito que isso tinha provocado em mim. Me sugeriram começar a fazer terapia.
Foi então que dei início ao longo processo de recuperação.”

Cara a cara

Em 1995, a mãe de Carmen mostrou a ela uma reportagem na qual a última e única vítima adulta de Oughton convocava outras mulheres que haviam sido estupradas por ele para assistir à audiência que poderia resultar na liberdade condicional do estuprador.

Carmen, assim como outras vítimas, não haviam sido informadas disso. Elas então acabaram se reunindo e formando uma comunidade e, depois de assistirem a 14 audiências, perguntaram se poderiam visitá-lo na prisão:

“Não só nos encontramos, compartilhamos histórias, formamos uma comunidade.

Para os juízes, que tem de ouvir o depoimento dele e decidir se vão deixá-lo em liberdade, é comovente nos ver.

Em todo caso, não acho que nenhum dos magistrados lhe daria liberdade condicional, pois ele nunca se arrependeu dos crimes que cometeu. E fez centenas de vítimas.
Para mim, seria como encerrar um capítulo da minha vida. Nunca o vi frente a frente. Nem quando me estuprou, nem nas audiências, pois sempre estava longe e o que víamos eram as suas costas ou seu perfil.

Senti que era importante conversar com ele em uma situação na qual eu estivesse no controle, e olhá-lo nos olhos.

Minha amiga Laura – que foi violentada quando tinha oito anos – se justificou dizendo: “preciso conhecer o homem com quem tive uma relação por toda a minha vida”.
Estávamos preparadas para que ele nos culpasse, pois era isso o que ele fazia nas audiências. Dizia: “Sou a vítima. Essas meninas queriam o que eu dei a elas”.
Eu então o cumprimentei dizendo: ‘Oi John, que prazer vê-lo novamente!’

Falei isso porque se você é violentado quando criança passa muito tempo se perguntando: ‘por que isso aconteceu comigo’.

Cheguei à conclusão de que foi para me ensinar a ter compaixão. Isso é o que eu sinto por ele, por isso disse a ele que foi um prazer revê-lo.

O encontro durou cinco horas e todo o tempo ele negou que tivesse me atacado até que, quando eu lhe descrevi o que aconteceu, ele me perguntou se me vendou os olhos ou me pediu para que eu fizesse isso.

Respondi dizendo que eu mesma vendei meus olhos enquanto ele me apontava um revólver.

E ele retrucou: ‘Isso me soa familiar’.

Agora, estou curada – mas isso não quer dizer que me recuperei totalmente do estupro que sofri.

Cada vítima tem de fazer o que for preciso para superar o trauma.

A mim e a Laura fez bem confrontá-lo, mas essa não é sempre a melhor solução.

Nunca diria a uma vítima o que ela deve fazer ou não, mas recomendo fazer o que fiz.”

Carmen Aguirre é atriz, dramaturga e escritora. Seu primeiro livro, “Something fierce: Memoirs of a revolutionary daughter” (“Algo feroz: Memórias de uma filha revolucionária”, em tradução livre), publicado em 2011, foi a obra de não ficção mais vendida no Canadá naquele ano e ganhou o prêmio CBC, um dos mais prestigiados do país.

Acesse no site de origem: ‘Por que decidi, 33 anos depois, confrontar o homem que me estuprou’ (BBC Brasil, 19/07/2016)

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