(HuffPost Brasil, 21/08/2016) A violência física é apenas um dos tipos de maus-tratos que podem estar presentes em relacionamentos abusivos.
Pode ser que seu parceiro não bata em você, mas a chame de feia e gorda sempre que fica com raiva. Talvez ele não bata em você, mas confisque seu salário assim que você o recebe e lhe entregue apenas o dinheiro para as despesas mais básicas. Talvez ele não bata em você, mas a force a fazer sexo com ele, querendo ou não.
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Esses são exemplos de relacionamentos abusivos que não incluem violência física em si. A violência doméstica muitas vezes é retratada como agressão estritamente física, mas existem muitos tipos diferentes de maus-tratos que não produzem contusões ou fraturas.
Isso não significa que sejam menos dolorosos.
Este mês, Zahira Kelly, que escreve no Twitter com o nome @bad_dominicana, lançou uma conversa sobre tipos de maus-tratos não físicos, usando o hashtag viral #MaybeHeDoesntHitYou (pode ser que ele não bata em você).
Voltado principalmente a mulheres em relacionamentos heterossexuais, o hashtag desencadeou uma enxurrada de relatos sobre relacionamentos abusivos e perigosos, mesmo que não incluam agressões físicas.
maybe he doesnt hit u. he just comes home angry at the world& broke& starts putting u down for being a useless parasite whos why hes broke.
— zahira kelly (@bad_dominicana) 1 de maio de 2016
Talvez ele não bata em você. Só volta para casa com raiva do mundo e duro e começa a chamar você de parasita e inútil, a razão pq ele está sem dinheiro.
#maybeHeDoesntHitYou but threw a huuuge raging weeks long miserable fit coz u cut your hair ‘without his permission’.
— zahira kelly (@bad_dominicana) 2 de maio de 2016
#maybeHeDoesntHitYou Talvez ele não bata em você, mas teve um acesso de raiva que durou uma semana pq você cortou seu cabelo “sem a autorização dele”.
Para entender melhor o contexto mais amplo da violência doméstica, que abrange os maus-tratos emocionais, físicos, verbais, financeiros, sexuais e psicológicos, pode ser útil usar o termo “controle coercivo”, popularizado por Evan Stark, assistente social forense e professor emérito da Universidade Rutgers.
Em 2015 o Reino Unido inspirou-se no trabalho de Stark quando aprovou uma lei que criminaliza os maus-tratos domésticos “coercivos ou controladores”, que passam a ser passíveis de punição com cinco anos de prisão, mesmo que não haja violência física presente no relacionamento.
“Ser sujeito a humilhações, intimidação ou subordinação reiteradas pode ser tão prejudicial quanto maus-tratos físicos”, disse na época a diretora da promotoria pública Alison Saunders. “Muitas vítimas dizem que o trauma decorrente dos maus-tratos psicológicos tem impacto mais duradouro que os maus-tratos físicos.”
A nova lei encerra desafios grandes para os promotores, mas foi saudada como momento histórico no enfoque dado à violência doméstica no Reino Unido.
Em entrevista ao Huffington Post, Stark explicou sinais perigosos de controle coercivo nos relacionamentos com parceiros íntimos e como identificar esses sinais.
“No controle coercivo, o padrão básico é dado menos pela violência física que pelas táticas que a acompanham, que são a intimidação, o isolamento, um padrão de abuso psicológico que eu descrevo como degradação, e, o mais importante de tudo, um padrão de controle sobre o cotidiano da mulher”, ele disse.
Intimidação e mais intimidação
Stark disse que os abusadores geralmente lançam mão de ameaças para intimidar suas parceiras, mesmo que não as agridam fisicamente. Podem ameaçar machucar suas parceiras, seus familiares ou os pets da família. Podem ameaçar danificar seus bens. Podem ter gestos de violência com objetos, por exemplo quebrando pratos ou dando socos na parede.
Outra coisa que eles às vezes fazem é jogar com as emoções da vítima, mentindo com tanta intensidade e convicção que a vítima fica confusa e começa a duvidar de seu próprio ponto de vista. O objetivo, explica Stark, é “erodir, solapar e finalmente jogar por terra a capacidade da mulher de resistir a eles e escapar”.
A perseguição é outra forma comum de intimidação e pode ir muito além dos atos de quem segue outra pessoa fisicamente. Pode incluir vigilância e assédio online.
“Os níveis de estresse psicológico causados por pessoas que perseguem sua parceira, que percebe que o espaço dela pode ser invadido a qualquer momento, são mais altos que o nível de sofrimento provocado pela violência física”, falou Stark.
Sob o controle dele
Para o professor, regular as atividades cotidianas de uma pessoa é uma parte crucial do controle coercivo. Os abusadores às vezes controlam rigidamente o modo como as vítimas realizam mesmo as tarefas mais corriqueiras, como dobrar a roupa lavada ou guardar alimentos na geladeira. O objetivo é estabelecer o controle autoritário e obter a obediência completa da vítima.
“Quanto mais trivial a regra, mais a mulher se sente degradada quando a obedece”, disse Stark.
Muitas vezes os abusadores aproveitam o conhecimento íntimo que têm da parceira.
“Eles sabem o que é importante para você e escolhem suas áreas de maior vulnerabilidade para atacá-la com críticas arrasadoras e as estratégias de controle mais insidiosas”, falou Stark.
Para manter sua vítima em estado de sujeição, o controlador pode privá-la de suas necessidades básicas, como comida, dinheiro, acesso ao carro ou ao telefone. Para Stark, a coerção sexual também está presente em muitos relacionamentos abusivos, como elementos como abortos forçados, gravidezes forçadas e agressões sexuais.
Mulheres invisíveis
Stark disse que os abusadores sistematicamente isolam suas parceiras e as distanciam das pessoas que poderiam lhes dar apoio. Desse modo a vítima tem menos pessoas a quem recorrer, ficando cada vez mais dependente do abusador.
O abusador pode exigir que a mulher pare de falar com outras pessoas. Ele pode fazer com que seja tão constrangedor ou incômodo para ela estar em um ambiente social que ela própria opte por cortar o contato com outras pessoas.
“Toda mulher que é maltratada nessa situação tem o que eu chamo de ‘zonas de segurança’: alguém com quem ela pode falar, um diário que ela usa para desabafar, um lugar para onde vai para refletir”, disse Stark. “Esses sujeitos partem numa missão de ‘procurar e destruir’ para tentar acabar com essas zonas de segurança.”
O abusador pode sabotar o trabalho da vítima, de modo que ela perde seu emprego, ou forçá-la a lhe entregar seu salário, para que ela não tenha independência financeira, de modo que se torna muito difícil para a vítima afastar-se dele.
“Pegar o dinheiro da vítima é muito importante, porque além da dependência psicológica, passa a haver uma dependência estrutural”, disse Stark.
Talvez ele não bata em você — ainda
Stark explicou que maus-tratos emocionais e psicológicos podem ser precursores da violência física.
“Muitas vezes há um padrão de comportamentos que antecedem os atos de violência física, comportamentos para isolar, intimidar e controlar a vítima.”
Nos casos que de fato envolvem violência física, disse Stark, é possível que ocorram apenas atos de gravidade menor, como tapas, empurrões e cutucões. Mas, disse ele, “seria um engano descrever isso como violência branda. A importância dos maus-tratos está em sua frequência, não na gravidade, e em seus efeitos cumulativos.”
Melissa Jeltsen
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