Uma mulher colombiana negra, vestindo um turbante colorido e roupas soltas, se debruça sobre seu paciente e suavemente pressiona sua barriga.
(BBC Brasil, 28/08/2016 – acesse no site de origem)
Uma mulher colombiana negra, vestindo um turbante colorido e roupas soltas, se debruça sobre seu paciente e suavemente pressiona sua barriga.
“Onde dói?”, ela pergunta, em uma sala cheia de plantas e posteres coloridos. Ela usa raízes e sementes para tratar pacientes no Centro de Vítimas do Conflito Armado, no subúrbio de Bogotá.
As pessoas vão à clínica estatal em busca de algum alívio para o sofrimento a que foram submetidas durante os combates entre guerrilheiros e governo colombiano, que durou mais de meio século até que um acordo de paz fosse firmado, na última semana.
A própria Maria (nome fictício), a mulher do turbante, está se recuperando de um trauma horrível, que a forçou a deixar sua casa.
Como 1 em cada 10 colombianos, ela virou uma refugiada em seu próprio país. Quase 7 milhões de pessoas foram deslocadas e mais de 220 mil mortas desde 1964, quando as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) passaram a pegar em armas contra o Estado para pedir igualdade social e reforma agrária.
E embora as Farc tenham assinado o acordo de paz, outros grupos armados, incluindo paramilitares de direita, ainda aterrorizam partes do país.
Há seis anos, Maria morava em Quidbo, capital do departamento de Choco, um dos mais pobres do país.
Maria era líder de uma grupo feminino chamado AfroMuPaz, que dava apoio a famílias deslocadas pelo conflito.
Ela também era uma ativista contra o recrutamento de crianças-soldado e denunciava grupos armados por abusos sexuais cometidos contra mulheres e meninas.
A região, que é cortada por rios e tem fronteira tanto com as costas do Pacífico quanto do Caribe, é alvo de disputa entre grupo armados que lutam pelo controle das rotas de tráfico e acesso a minas de ouro ilegais.
Esses grupos abusavam de mulheres, e o AfroMuPaz foi um dos poucos a denunciar os crimes.
Em julho de 2010, um homem disse a Maria que queria doar roupas e sapatos de crianças para o grupo. Ele se ofereceu para levá-la para outro bairro e buscar as coisas.
‘Entrei no caminhão dele sem suspeitar de nada”, diz ela. “Mas quando ele começou a dirigir me senti inquieta e perguntei onde estava a doação. Aí alguém apontou uma arma para a minha cabeça e colocou um capuz em mim.”
Maria foi levada para a selva e, quando tiraram seu capuz, ela viu que estava cercada por homens armados e, para seu horror, viu um soldado saindo de uma cabana com a filha dela, Camila, de 13 anos.
Camila havia sido enganada por uma integrante do grupo paramilitar Los Rastrojos. A mulher havia dito à menina que eles iriam encontrar sua mãe. “Mas fomos sequestradas, as duas”, diz Maria.
Oficialmente, essas milícias de direita não existem mais. Elas foram desmobilizadas há uma década, mas muitas ressurgiram ou viraram grupos criminosos.
Originalmente sob um grupo “guarda-chuva”, o AUC (Autodefensas Unidas de Colombia), as milícias eram financiadas por donos de terra e traficantes que queria proteção contra sequestros e extorsões feitas pelas guerrilhas de esquerda.
Ao cair da noite, a adolescente foi levada, e Maria foi amarrada a uma árvore com três homens de guarda. Ela ficou coberta de sangue devido a golpes que recebeu na cabeça.
“Primeiro achei que eles iam me matar”, diz. “Mas aí um deles me disse que eles iam me punir por falar demais. Começaram a me mostrar suas genitais e percebi o que fariam. Comecei a gritar: Ok, façam o que vocês quiserem, mas por favor não toquem na minha filha. Não toquem na minha filha!”
Maria foi estuprada repetidas vezes por cinco homens, durante cinco dias. Uma hora ela desmaiou – e quando acordou estava em um hospital em Quidbo. Ela havia sido encontrada no acostamento de uma estrada após sua filha mais velha dar o alerta e pessoas começarem a procurar por ela.
Camila, a filha mais nova de Maria, havia sido devolvida para a casa da família, muito traumatizada mas sem lesões físicas. “Eles disseram que se ela falasse alguma coisa sobre o que havia acontecido eles me matariam”, conta Maria. “Então ela parou de falar. Por muito tempo, só dizia ‘sim’ e ‘não’ e chorava quase todo dia.”
Maria se recuperou gradualmente e seis meses depois voltou ao seu trabalho no AfroMuPaz. Mas, certo dia, um membro do mesmo grupo armado foi a sua casa e disse que ela tinha 48 horas para deixar a cidade.
Maria foi para a capital, Bogotá, onde as autoridades lhe cederam um colete à prova de balas, um celular e dinheiro mensal para táxis, já que ela foi aconselhada a não usar transporte público. Meses depois, seus filhos se juntaram a ela.
Segundo Hector Fabio Henao, bispo que teve papel importante nas negociações entre as Farc e o governo colombiano, grupos armados estão cada vez mais perseguindo pessoas como Maria, que fazem denúncias contra eles ou defendem causas que entram em conflito com seus interesses.
Em um período de quatro semanas neste ano, 13 ativistas de direitos humanos, de meio ambiente e líderes comunitários de aldeias indígenas foram mortos, diz ele.
No ano passado, um era morto a cada cinco dias. Acredita-se que os assassinos sejam membros de grupos paramilitares, gangues e o Exército de Libertação Nacional (guerrilha de esquerda que, ao contrário das Farc, não aderiram ao cessar-fogo).
O governo e as Farc concordaram em criar um tribunal especial para investigar e punir violações de direitos humanos cometidas nos últimos 50 anos. Eles prometeram que autores de crimes de violência sexual, incluindo estupro, não serão anistiados.
Mas Maria ainda não está confiante de que será seguro testemunhar, já que ela e outras mulheres foram vítimas exatamente por denunciar abusos.
A filha de Maria, Camila, hoje estuda Direito e está otimista sobre a força da lei. Ela diz que quer ser política – “mas das boas, não corrupta”.
Maria teve mais dificuldade em se adaptar à vida em Bogotá do que suas filhas. Ela tem saudades da mãe, dos amigos e do sentido que o antigo emprego dava a sua vida. Mas trabalhar como profissional de saúde levanta sua moral e ajuda a diminuir “a raiva e o ódio” dentro dela.
“Não posso mudar o que aconteceu comigo”, diz ela. “Não posso esquecer porque meu corpo me lembra disso todos os dias.”
Mas ela pensa em perdão e tenta imaginar como seria viver em um país em paz. Também sonha em voltar para Quibdo.
“Quando isso vai acontecer?”, questiona. “Queria voltar amanhã, mas não sei quando será possível.”
Lucy Ash