‘Apanhava só por perguntar por que ele havia se casado comigo’: O drama e o estigma das ‘mulheres descartáveis’ do sul da Ásia

01 de outubro, 2016

Elas realizam o sonho de se casar, mas o sonho dura pouco: logo são vítimas de abusos físicos e sexuais pelos próprios maridos e veem seu dinheiro se esvair nas mãos do parceiro, que em geral as abandona – ou as torna “escravas domésticas” dos novos sogros.

(BBC Brasil, 01/10/2016 – acesse no site de origem)

Muitas achavam que teriam uma vida matrimonial no Reino Unido, mas acabam sendo deixadas em seu país de origem que, na maioria dos casos, é a Índia.

Esse é um resumo do drama das chamadas “mulheres descartáveis” sul-asiáticas, segundo um recém-publicado relatório da Universidade de Lincoln, na Inglaterra.

Os autores do estudo defendem que esses casos sejam tratados como uma forma de violência doméstica e punidos conforme a lei britânica.

Algumas vítimas chegam a passar um tempo no Reino Unido com seus maridos, mas depois, durante supostas viagens de férias à Índia, têm seus passaportes confiscados pelos maridos e ficam por lá.

Como muitas dessas “mulheres descartáveis” têm vergonha de compartilhar sua história, os pesquisadores dizem ter passado mais de um ano para encontrar 57 vítimas na Índia dispostas a relatar os abusos e humilhações da vida matrimonial.

Sunita, de costas, em entrevista à BBC

Sunita (de costas) contou à BBC que sua vida foi “arruinada” pelo abandono do marido (Foto: Reprodução)

Casamento dos sonhos

Para Sunita (nome fictício), da região indiana do Punjab, o casamento começou com alegria: com um belo vestido vermelho e uma festa para centenas de convidados em um grande salão indiano.

“Foi tudo ótimo”, ela relembra, enquanto olha o álbum de fotografias da cerimônia.

Depois do casamento, o marido de Sunita passou um mês com ela na Índia antes de regressar para o Reino Unido, onde ele morava. Sunita esperava que ele voltasse para buscá-la e levá-la consigo, mas logo as coisas começaram a piorar.

“Depois de quase um ano (de casados), ele ainda não havia voltado (à Índia)”, conta Sunita. “Eu perguntava quando ele viria, e ele só respondia ‘Agora não, em algum outro momento’. Ele também exigia muito de mim, me pedia dinheiro.”

Até que o marido parou de falar com ela ao telefone. Ela não o viu mais – e acabou descobrindo que ele era casado com uma outra mulher em território britânico.

Dote

Seguindo tradição comum na Índia e em outros países do sul da Ásia, a família de Sunita havia dado à família do marido quase 3 mil libras (R$ 12,6 mil) em dinheiro e 4 mil libras em ouro (R$ 17 mil), como dote.

Sunita conta que seu pai, um homem de poucos bens, deu o dinheiro na esperança de oferecer um futuro feliz a sua filha.

Além da perda financeira, Sunita conta que sofreu abusos físicos por parte dos sogros.

“Eles me batiam apenas por eu perguntar se ele (marido) tinha uma outra mulher e por que ele havia se casado comigo”, conta Sunita.

“Estou muito triste. É difícil falar disso. Ele teve relações (sexuais) comigo, minha vida está arruinada.”

Pesquisadores relatam casos semelhantes em Paquistão e Bangladesh – onde são comuns casamentos em que um dos cônjuges mora no Reino Unido, Canadá e EUA, países com uma grande diáspora de sul-asiáticos.

‘Produto danificado’

A acadêmica Sundari Anitha, da Escola de Ciências Políticas e Sociais da Universidade de Lincoln, conversou com diversas vítimas, durante viagens ao Punjab, Nova Déli e Gujarat.

Pragna Patel

Pragna Patel quer que esse tipo de caso seja considerado violência doméstica e punido conforme a lei britânica (Foto: Reprodução)

Algumas chegaram a pagar o equivalente a R$ 100 mil em dote para logo serem estupradas e abandonadas por seus maridos. Outras foram transformadas em serventes domésticas para os pais do noivo.

Anitha explica que, por conta da cultura patriarcal sul-asiática, o abandono por parte do marido é capaz de arruinar a vida dessas mulheres, a ponto de até as irmãs delas terem dificuldade em se casar.

“O estigma é enorme e tem um grande impacto na família”, conta a pesquisadora. “A mulher não conseguirá emprego, enfrentará insegurança financeira e será vista como um produto ‘danificado’ – sobretudo pela presunção de que ela teve relações sexuais.”

O relatório da Universidade de Lincoln recomenda que o governo britânico reconheça o abandono como uma forma de violência e ofereça proteção às mulheres “descartadas” por maridos com cidadania britânica, mesmo que elas jamais tenham estado no Reino Unido.

Pragna Patel, diretora do grupo ativista Southhall Black Sisters, que ajudou na produção do estudo, diz que tal medida daria a essas mulheres a chance de obter algum tipo de reparação.

Segundo o grupo, elementos do processo de abandono – como as exigências de dinheiro, a fraude, o abuso físico, emocional e financeiro, o comportamento coercivo e a servidão doméstica – podem ser processados judicialmente sob leis já existentes no Reino Unido. “Mas poucos perpetradores sofrem consequências, se é que algum chega a sofrer”, diz.

Além disso, muitas vítimas desconhecem seus direitos ou sentem vergonha de relatar o abuso sofrido.

Patel afirma, porém, que uma vez que esses casos sejam oficialmente reconhecidos como violência doméstica, diversos caminhos legais se abririam a essas mulheres.

Dr Sundari Anitha

Sundari Anitha, que pesquisou o tema para a Universidade de Lincoln, diz que vítimas passam por forte estigma social (Foto: Getty Images)

‘É como um negócio’

Em comunicado, o Departamento do Interior britânico disse que “o governo não tolerará abusos em casamentos ou outros relacionamentos” e que “analisará com cuidado ações que possam ajudar a prevenir abusos ou amparar vítimas”.

Enquanto isso, Patel conta que, no mês passado, seu grupo ativista se deparou com o caso de um homem que havia se casado com cinco mulheres diferentes – e abandonado todas elas, depois se beneficiar financeiramente dos matrimônios.

“Era como um negócio para ele”, diz Patel.

“Esses homens são cidadãos britânicos. Se o Estado britânico fizer vista grossa ou for indiferente a esse abuso, contribuirá com essa cultura de impunidade. Temos que acordar para o fato de que está emergindo uma violência transnacional contra mulheres.”

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