Ana Arruda Callado, jornalista e escritora, foi a primeira mulher a ocupar a chefia de reportagem de um jornal no Brasil. A viúva do escritor Antônio Callado esteve recentemente em Londres e visitou a BBC, onde Callado trabalhou de 1942 a 1947. Ela compartilha aqui com a BBC Brasil sua história de pioneirismo no Jornalismo:
(BBC Brasil, 13/06/2017 – acesse no site de origem)
Em 1966, o Diário Carioca, um jornal com grande prestígio na cidade e que se vangloriava de ser pequeno – tinha apenas 12 páginas -, iniciou uma reforma.
O novo dono, Horácio de Carvalho, chamou o jurista Prudente de Morais Neto para a direção do jornal. Este escolheu Zuenir Ventura, que havia se destacado na Tribuna da Imprensa, para a Chefia de Redação. E para a Chefia de Reportagem? Discutiram o tema e chegaram a um nome: Ana Arruda, que no Jornal do Brasil havia assinado reportagens importantes.
Houve grande propaganda em torno do fato de uma mulher, pela primeira vez, ter ocupado esta função. Um jornal inovador, foi a mensagem.
Para mim, um desafio e uma comprovação: eu tinha chegado lá; estava entre os jornalistas que admirava.
Eu havia feito vestibular para o Curso de Jornalismo da Faculdade Nacional de Filosofia no início de 1955. Terminara o Curso Científico no Colégio de Aplicação da então Universidade do Brasil e não perguntem por que escolhi ser jornalista, quando minhas disciplinas preferidas no colégio eram Matemática e Física.
Ninguém mais do colégio optou por esse caminho. Na turma da FNFi, as outras mulheres eram funcionárias públicas que buscavam um diploma para ascender no emprego. Uma única, Mary Akierstein, queria, como eu, seguir a carreira. E seguiu, por pouco tempo, e hoje é Mary Ventura, esposa de Zuenir.
O curso universitário era apenas uma etapa necessária para conhecer melhor a profissão e amadurecer um pouco. Afinal, eu tinha apenas 17 anos. Mas estava decidida, apesar de ninguém da minha família ter seguido o jornalismo. Sendo uma das doze filhas de meus pais (eles tiveram e criaram bem ainda mais três homens), ouvi daquele pernambucano nascido no final do século 19 o seguinte conselho: “Estudem, minhas filhas, tenham uma profissão, ou vocês vão ser escravas de homens”.
Havia tido, anos antes da faculdade, uma experiência marcante. Era da Ação Católica e um dia apareceu, em uma de nossas reuniões, um rapaz chamado Cícero Sandroni, com um convite. Estava sendo criado um jornal do movimento, o Roteiro da Juventude, e precisavam de colaboradores. Imediatamente me apresentei. Além de Cícero, trabalhava no jornalzinho uma moça do Colégio Sion, Laura Austregésilo de Athayde, filha do conhecido jornalista e mais tarde presidente da Academia Brasileira de Letras.
Fiz umas pequenas matérias até que, um dia, surgiu a grande oportunidade. Cícero queria ir ao cinema com a moça, mas esta, séria, impôs uma condição: só aceitaria o convite se o jornal já estivesse, como ele havia prometido, na gráfica. Ele pediu minha ajuda e lá fui eu conhecer pela primeira vez um jornal de verdade, a Última Hora, e logo pela oficina.
Os gráficos me ajudaram muito, achando graça naquela menina metida a jornalista. Fechei o jornal – e Cícero e Laura estão casados há mais de 50 anos.
Formada, quis logo trabalhar. E foi mais uma vez Cícero Sandroni quem me abriu caminho. Encontrei-o e perguntei o que fazer para entrar em um jornal. Ele me animou dizendo que o momento era ótimo porque o Jornal do Brasil havia iniciado uma reforma e queria gente nova. Ele estava saindo de lá para o Jornal do Commercio.
Com a cara e a coragem, fui até o JB e procurei o chefe de reportagem, Wilson Figueiredo. Ele consultou Odylo Costa, filho, o diretor, e os dois decidiram me dar um estágio logo na semana seguinte. Três meses de estágio e eu estava efetivada, e com tarefas importantes. Ganhei ainda neste primeiro ano de jornal o Prêmio Herbert Moses, do Ministério da Agricultura, com a série “Reforma Agrária: todo mundo fala e ninguém faz”. Isso em 1958!
Me sentia um pouco estranha na redação, só de homens. As poucas mulheres apareciam lá ao fim da tarde: eram funcionárias públicas que levavam o noticiário de suas repartições. Havia uma repórter, Silvia Donato, ótima, mas com poucos estudos e, por isso, um tanto esnobada. Fiz amizade com ela, que me dava as matérias que fazia para eu corrigir o português.
Tornei-me uma espécie de especialista em assuntos agrários e com isso viajei pelo país, conhecendo então o preconceito contra mulheres, principalmente jovens, profissionais, que então eram raras.
Sofri, em Belém, por parte do assessor de imprensa da prefeitura um assédio que me fez muito medo. “Você acha que me engana com essa história de repórter? Mulher viajando sozinha eu sei o que é” – foi a abordagem. E quando, na portaria do hotel, pedi que não deixassem ninguém entrar para falar comigo, o porteiro deu um risinho tão cínico que eu empurrei um sofá para a porta do quarto.
Mas tive uma recompensa. Estava se organizando na cidade a “Caravana de Integração Nacional”, que percorreria a Belém-Brasília pela primeira vez.
Liguei para o jornal e fui informada de que não haviam mandado ninguém para cobrir o evento, que era de fato propaganda do governo Juscelino.Fui até a sede de onde ia sair a Coluna Norte(havia outras, saindo de vários pontos do País em direção à Nova Capital) e procurei o dirigente, Coronel Lino Teixeira. Pedi a ele que me incorporasse à expedição. “Não há hipótese de levar uma mulher, quando devem estar na Coluna uns 300 homens, e não sabemos o que vamos encontrar pelo caminho”, esbravejou ele.
“Coronel”, argumentei, “não sou ‘uma mulher’. Sou uma jornalista”. Ele me olhou de alto a baixo e respondeu, agora sorrindo: “Pois, para mim parece uma mulher”.
Como vi que não havia jeito, perguntei como iam acompanhar a jornada por terra e soube que todos os dias um avião sairia de Belém para sobrevoar a Caravana.
E aí consegui um furo que me valeu elogios, mas também muitos xingamentos.