Como o Congresso brasileiro se tornou o melhor lugar para homens que odeiam as mulheres, especialmente as negras
(El País, 20/11/2017 – acesse no site de origem)
A imagem de um grupo de homens rindo, batendo palmas e gritando porque tinham sido malandros o suficiente para fazer uma sacanagem com as mulheres (e também com os homens sérios do país) deve ir para a posteridade como um dos momentos mais baixos do Brasil. Há cenas assim, que contam uma história inteira. E esta é uma delas.
O habitual seria que estivessem numa mesa de bar, narrando com riqueza de detalhes alguma “façanha” sexual que envolvesse algum tipo de humilhação de mulheres, mas no Brasil atual é possível fazer isso no Congresso. Não só é possível, como hoje o Congresso é o melhor lugar para um homem fazer sacanagem com as mulheres. E ainda ser pago com dinheiro público por isso.
Estes são os 18 que, com seu voto, permitiram a comemoração: Gilberto Nascimento (PSC), Leonardo Quintão (PMDB), Givaldo Carimbão (PHS), Mauro Pereira (PMDB), Alan Rick (DEM), Sóstenes Cavalcante (DEM), Jorge Tadeu Mudalen (DEM), Marcos Soares (DEM), Pastor Eurico (PHS), Antônio Jácome (PODE), João Campos (PRB), Paulo Freire (PR), Jefferson Campos (PSD), Joaquim Passarinho (PSD), Eros Biondini (PROS), Flavinho (PSB), Evandro Gussi (PV) e Diego Garcia (PHS).
1) Por que eles comemoravam tanto?
Os 18 e seu grupo ficaram eufóricos em 8 de novembro porque eles não tinham feito uma sacanagem só. Eles tinham feito duas. Essa Comissão Especial da Câmara analisava a Proposta de Emenda Constitucional 181 (PEC 181), que tinha como objetivo aumentar a licença-maternidade das mulheres que dão à luz a bebês prematuros: dos atuais 120 dias para até 240 dias.
Quem é mãe ou pai de um bebê prematuro ou já acompanhou alguém nessa posição sabe o quanto é necessário esse acompanhamento para cuidar de uma criança ainda mais frágil, que muitas vezes passa longos períodos numa UTI antes de ir pra casa, e o quanto esse avanço seria importante. Em especial para aqueles pais que não podem pagar por nenhuma ajuda e que são a maioria.
Mas ampliar um direito que beneficiaria mulheres nessa posição de mães de prematuros contraria homens que gozam com infligir dor às mulheres. As mães, afinal, são aquelas que “padecem no paraíso”. Nenhum sofrimento deveria ser pouco para uma mãe é o que dizem tantos ditados populares criados possivelmente por homens.
Os 18 aprovaram a ampliação da licença-maternidade em casos de bebês prematuros. Mas enfiaram no texto original do projeto o que tem sido chamado de “Cavalo de Troia”. A expressão revela o truque de parecer que está oferecendo um “presente”, caso do gigantesco cavalo de madeira que os gregos teriam dado a Troia no relato mítico. Mas um presente que se mostra uma armadilha, já que o cavalo estava cheio de soldados gregos que, com esse estratagema, ultrapassaram as muralhas de Troia e venceram a guerra. Vem daí também a expressão “presente de grego”, referindo-se ao que é apresentado como um presente, mas revela-se um problema.
A expressão é de fácil entendimento, mas me parece ofensivo aos gregos clássicos serem comparados a estes sacaneadores de mulheres dos dias atuais. Assim como dar conotação de “presente” a um direito – a ampliação da licença-maternidade no caso de prematuros – que já deveria estar aprovado há muito e estendido também aos que ocupam a posição paterna.
O que os 18 e seu grupo fizeram foi o seguinte: infiltraram no projeto de mudança do texto constitucional a expressão “desde a concepção” em dois momentos. No inciso 3 do artigo 1º da Constituição, que trata dos princípios fundamentais da República, a frase ficaria: “dignidade da pessoa humana desde a concepção”. E, no artigo 5º, que garante a igualdade de todos perante a lei: “a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção”.
Assim, supostamente aprovaram a ampliação de um direito, mas derrubando a legislação do aborto, que é permitido no Brasil em três casos: gravidez resultante de estupro, risco de morte da mulher e gestação de anencéfalo. Se esse texto não for derrubado e seguir seu caminho, sendo depois aprovado no plenário da Câmara e do Senado, o aborto não será mais possível em nenhum caso, já que a Constituição está acima de todas as leis. Isso faria com que a legislação brasileira retrocedesse em quase um século: o Código Penal de 1940 já permitia o aborto em caso de estupro e para salvar a vida da mulher.
Percebam bem a dupla malandragem: 1) enfiaram no texto algo que não tinha nada a ver com o tema: o entendimento filosófico de que a vida começa no momento em que um óvulo se encontra com um espermatozoide durante uma relação sexual, consentida ou não, e que esta fusão, que ainda sequer é um embrião, já é uma pessoa com os mesmos direitos que você e eu; 2) como claramente a inclusão é uma malandragem, porque nada tem a ver com o tema do projeto, e resultou numa reação negativa de grande parte da sociedade, há uma chance significativa de este texto não ser votado num período pré-eleitoral.
Esta é a razão para a euforia dos 18 e seu grupo. De uma só canetada eles adiaram a ampliação da licença-maternidade no caso de bebês prematuros e ameaçaram conquistas da sociedade com relação ao abortoque datam de quase um século atrás. Com a desculpa de ampliar um direito, ameaçaram um conjunto muito maior de direitos.
O que pode ser mais prazeroso do que isso para homens que gozam com infligir dor às mulheres? Então eles gritam, riem, aplaudem, fazem do Legislativo um estádio de futebol. Porque além de ferrar as mulheres (e os homens sérios), ainda tratam o conjunto da população brasileira como idiota ao berrar que o fazem em nome da “vida”. Não é totalmente mentira, é justo fazer a ressalva, já que fazem em nome da vida deles, de seu gozos e de suas barganhas.
2) O que a religião tem a ver com isso?
Se você olhar para quem são os 18, vai perceber que eles estão ligados a alguma religião. Em geral, no caso da católica, ao movimento da Renovação Carismática; no caso das evangélicas, às pentecostais e neopentecostais. Estão ligados também a comportamentos e declarações que vale a pena dar uma olhada mais de perto.
Mas o alerta que me parece importante fazer é que estes odiadores de mulheres – e neste caso eles são 18, mas no Congresso são dezenas – usam a religião para se legitimar. Por isso chamar de “bancada religiosa” ou “bancada evangélica” ou ainda “bancada da Bíblia” pode beneficiar mais a seus interesses escusos do que refletir um real compromisso com valores de fato cristãos.
Um equívoco frequente é acreditar que tais deputados representam o pensamento de milhões de fiéis no Brasil. Ele refletem seus próprios interesses e crenças, assim como os de lideranças de suas igrejas ou movimentos dentro de suas igrejas. Não representam o pensamento majoritário dos fiéis, são apenas a parte mais barulhenta do cada vez mais complexo panorama religioso do Brasil.
É necessário fazer uma distinção entre o que pensam as lideranças e o que pensam os fiéis, estes que não estão a serviço das barganhas daquele que é possivelmente o Congresso mais corrupto da história recente e que vivem o cotidiano cada vez mais afogado de um trabalhador e de uma trabalhadora no país.
Mas, quando os atos oportunistas da “bancada religiosa” ou da “bancada evangélica” ou da “bancada da Bíblia” são denunciados, por mais verdades que essas denúncias contenham, os brasileiros que são religiosos, especialmente evangélicos, e aqueles que pautam suas ações pelos preceitos bíblicos sentem-se de imediato ofendidos. Neste caso, o reflexo é se aliar a tais deputados, na lógica do “nós contra eles”, mesmo que, se vissem de perto os atos de tais personagens, ficassem horrorizados.
Essa é outra esperteza política desses representantes que se legitimam com o nome daquilo que seus atos desmentem que praticam. E buscam travestir seus interesses em ganhos privados com a aura de uma “guerra santa” – ou de uma “guerra moral”.
Neste sentido, é surpreendente que denominações religiosas e fiéis que têm testemunhado a religião ser usurpada e tanta sacanagem ser feita em nome de Deus não tenham uma resposta mais forte e mais responsável diante desses vendilhões. É surpreendente esse silêncio especialmente com relação a denominações evangélicas sérias, com atuação consistente, que têm presenciado o nome dos evangélicos ser enxovalhado no Congresso. Até agora as reações são tímidas demais diante do que tem sido feito em seu nome.
Quem faz o que os 18 fizeram está claramente bem pouco preocupado com valores cristãos ou com a vida real da população. Mas, ao se ligarem à religião, se revestem de uma aura que os legitima num Brasil de população massivamente religiosa.
Dizer e viver o que se diz são categorias diversas, como se sabe. As eleições de 2018 podem ser um momento importante para, usando uma expressão da Bíblia, separar o joio do trigo. Para quem acha crucial votar em uma pessoa religiosa, não basta saber a religião a que o candidato diz pertencer, é preciso prestar atenção aos seus atos concretos.
3) Por que os 18 podem ser considerados perversos?
A malandragem política foi incluir a inviolabilidade da vida “desde a concepção” num projeto que tinha a ver com licença-maternidade para mães de prematuros. Se esta parte do texto não for derrubada e seguir assim para o plenário da Câmara e do Senado, em caso de aprovação o aborto poderá ficar proibido em qualquer situação. Assim, os 18 não fizeram apenas uma sacanagem que os deixou aos risos, palmas e gritos de euforia, eles cometeram simultaneamente um ato de perversão.
Para estes homens, tanto uma menina quanto uma mulher adulta podem ser violadas dentro ou fora de casa, podem ser arrebentadas física e mentalmente por um estupro, podem ter o corpo e a alma despedaçados e, se engravidarem desta violência, não têm sequer o direito de escolher levar adiante ou não a gravidez do que se tornará um filho do estuprador, não poucas vezes o próprio pai, padrasto ou tio. Tirar o direito de escolha nestes casos é um ato de extrema perversidade feito por 18 homens. A única mulher a votar, a deputada Erica Kokay (PT), votou contra. Resultado: 18X1.
Percebam que, para achar possível tirar o direito de escolha de uma mulher nessas circunstâncias, é preciso gozar com o sofrimento de uma mulher. Para estes homens não bastou a mulher, criança ou adulta, ser violentada, com marcas psíquicas e às vezes também físicas que carregará para o resto de sua vida. Não. Para eles a mulher deve também ser punida, ao ser obrigada a levar adiante a gravidez de um estuprador.
Se essa mulher, criança ou adulta, ao ser estuprada é a vítima, por que então ela seria punida? A resposta mais evidente é: por ser mulher. São homens que odeiam as mulheres.
A outra possibilidade de aborto prevista na lei brasileira é quando a gravidez apresenta complicações que possivelmente levarão à morte da mulher. Quem perdeu um filho desejado durante a gestação sabe a dor que sente. E como esse fato marca uma mulher – e também quem ocupa a posição de pai, ainda que de formas diferentes. Porque, quando uma pessoa deseja um filho, ele começa a existir primeiro como sonho, mesmo antes de ser gerado. O filho nem sequer existe concretamente, mas já existe na cabeça dos pais.
É fácil para qualquer pessoa dotada de um mínimo de empatia compreender como é doloroso para uma mulher decidir interromper uma gestação desejada para que ela mesma não morra. Que decisão terrível é essa entre a vida que existe efetivamente, a dela, e a do embrião de um sonho, mas um embrião que ela desejou tanto que pudesse se tornar uma pessoa que ela criaria, educaria e amaria.
Mas não. Para os 18, a dor dessa escolha é pouca. Para os 18, é preciso tirar o direito de escolha dessa mulher. É preciso tirar dela a escolha de continuar viva, cuidando dos filhos que já tem ou tentando ter um filho de uma gestação sem complicações fatais para ela, de forma que possa estar viva para cuidar dessa criança, assim como realizando um trabalho que lhe dá sentido, amando e sendo amada, construindo histórias e memórias, buscando como qualquer ser humano. Em “nome da vida”, os 18 defendem que essa mulher não pode ter a escolha de viver. E, assim, a condenam à morte.
Como alguém pode ser tão perverso com um outro? Estes homens agiriam dessa forma se quem pudesse morrer numa gestação fosse um deles? A resposta é um tanto óbvia. Qual é a explicação então? Estes homens odeiam as mulheres. Para eles a dor dessa escolha não é suficiente, é preciso que essas mulheres morram.
A terceira possibilidade de interromper uma gestação no Brasil é no caso de anencefalia do feto. Nesta situação, a dor de uma mulher – e também de quem ocupa a posição paterna, ainda que de formas diferentes – costuma ser terrível. Acompanhei isso bem de perto no documentário Uma história severina, realizado durante o período de votação desse tema no Supremo Tribunal Federal, que aprovou a interrupção da gestação em caso de anencefalia somente em 2012. (Quem quiser dedicar 23 minutos da sua vida a compreender essa experiência, pode assistir ao filme aqui).
Mais uma vez, basta um nível mínimo de empatia para compreender que, se você desejou uma gestação, sonhou com esse filho antes mesmo de a possibilidade se anunciar, comemorou o exame positivo para gravidez e, então, descobriu que este filho não existirá, a dor é imensa. Conhecida popularmente como “feto sem cérebro”, essa malformação é incompatível com a vida. Uma parte dos fetos morre antes do parto, a outra minutos, horas ou dias após o parto. Não é uma deficiência, como alguns oportunistas querem fazer parecer, mas comprovadamente uma malformação incompatível com a vida. Não há anencéfalos vivendo neste mundo porque não há como viver com essa malformação.
Ao final desta gravidez, nos casos em que ela chega ao final, não há um berço, mas um caixão. Mas, para os 18, não basta a dor de descobrir que o filho sonhado não viverá. Não. É preciso que a mulher sofra mais, muito mais. Ao tirarem seu direito de escolha de interromper ou não essa gestação, de acordo com o que faz sentido para ela, obrigam todas as mulheres nesta condição a levar adiante uma gestação condenada. E isso acontece dentro do corpo destas mulheres, dia após dia. É uma tortura. Não como força de expressão, mas literalmente uma das piores torturas que um ser humano pode sofrer.
Por que os 18 querem ver as mulheres torturadas por meses, dia após dia? A única explicação que se vislumbra é que eles gozam com o sofrimento delas. São homens que odeiam as mulheres.
É preciso deixar muito claro ainda que aquelas mulheres que encontram sentido em ter um filho do estuprador, em morrer no parto para permitir que a gestação se complete, em levar até o fim uma gestação condenada à morte já têm esse direito. Ninguém pode ou deve obrigá-las a fazer um aborto. O que a legislação garante hoje, nestes três casos, é que as mulheres que não suportam a ideia de ter um filho do estuprador, não querem morrer no parto e se sentem torturadas ao ter a barriga crescendo por força de um feto sem cérebro, que ao final será sepultado, tenham o mesmo direito de escolha. Só a mulher que vive tal dor pode fazer essa escolha que, em qualquer caso, é de extrema dificuldade.
Mas os 18 querem tirar até mesmo esse direito de escolha tão restrito porque gozam em subjugar mulheres à sua vontade. Querem que elas não tenham escolha alguma. Apenas sofram.
4) Isso é novo na política?
A política e o controle do corpo das mulheres são intimamente ligados e têm uma história longa. Cada vez mais os tempos exigem que cada um se dedique a compreender essa relação em profundidade. Olhando apenas para o momento recente do Brasil, o corpo das mulheres virou moeda eleitoral nas eleições presidenciais de 2010. Naquele momento, surgiu uma campanha anônima que chamava Dilma Rousseff (PT), que poderia se tornar a primeira mulher presidente, como aconteceu, de “abortista” e “assassina de fetos”.
Foi um prenúncio do que hoje o Brasil testemunha com a ação das milícias de ódio e seus ataques contra a arte, artistas e museus, assim como episódios como a boneca da filósofa Judith Butler, uma das mais respeitadas pensadoras do mundo, queimada como “bruxa”. Ao analisar sua recepção no Brasil, em artigo publicado pela Folha de S. Paulo, a filósofa afirmou: “Quando violência e ódio se tornam instrumentos da política e da moral religiosa, então a democracia é ameaçada por aqueles que pretendem rasgar o tecido social, punir as diferenças e sabotar os vínculos sociais necessários para sustentar nossa convivência aqui na Terra. Eu vou me lembrar do Brasil por todas as pessoas generosas e atenciosas, religiosas ou não, que agiram para bloquear os ataques e barrar o ódio”.
Não há provas para afirmar (pelo menos neste momento), que a campanha que chamava Dilma Rousseff de “assassina de fetos” tem o DNA de José Serra (PSDB), então seu principal oponente na disputa presidencial. Mas é possível afirmar que ele abraçou essa campanha, tornando-a efetiva.
Quando Serra fez isso em 2010, a política foi rebaixada no Brasil e os homens que odeiam as mulheres sentiram o cheiro de sangue e a possibilidade de obter ganhos chantageando com os direitos reprodutivos no balcão do Congresso. Já tinham pressentido muito antes, obviamente, mas nem eles sonhavam que pudesse dar tão certo nem que conseguiriam chegar tão longe.
Quem foi bater na porta de igrejas evangélicas, garantindo que Dilma era “contra o aborto”, foi seu novo “aliado” Eduardo Cunha (PMDB), que mais tarde se tornaria seu principal inimigo, ao comandar o impeachment da primeira mulher presidente. Depois de ter completado o serviço sujo de arrancar do poder uma presidente ruim, mas eleita pelo povo, Cunha foi preso. E na cadeia está até hoje.
Esse momento da campanha de 2010, na minha opinião, é o marco do atual cenário político brasileiro. Dilma Rousseff capitulou diante do pior. Mas o responsável pelo que aconteceu foi José Serra, personagem hoje parcialmente submerso, na esperança de que esqueçam sua participação no atual estado das coisas enquanto vê para onde vai em 2018.
Essa cena marca também a derrocada ética do PSDB, assim como assinala o ponto aparentemente sem retorno em que o partido se desliga do que existia de progressista em sua história. Me parece que o momento em que o corpo das mulheres virou moeda eleitoral no Brasil tem seu impacto na história recente minimizado, até porque a maioria dos analistas é composta por homens.
Desde então, a lógica que pauta o Congresso tem sido a de barrar qualquer avanço nos direitos das mulheres sobre o seu próprio corpo, assim como em temas que dizem respeito a gênero e raça. Um dos truques mais eficientes é justamente aterrorizar com projetos que significam retrocessos, fazendo com que a luta não seja mais pela ampliação de direitos, mas para não perder direitos. Essa operação política se acelerou de forma inédita no governo Temer e seu projeto não eleito, onde direitos são leiloados em troca de apoio por um presidente, ministros e parlamentares acuados pela Lava Jato.
Hoje, o rebaixamento da política, assim como um Executivo e um Congresso dominados pelo que há de mais atrasado no Brasil, têm obrigado as mulheres a irem para as ruas, como aconteceu em 13 de novembro, para dizerem algo que era claro, óbvio e legal há quase um século: uma mulher tem direito de abortar em caso de estupro.
Enquanto estão ocupadas defendendo um direito humanitário conquistado pelas avós, nenhum dos direitos urgentes que precisariam ser conquistados ou mesmo implementados de fato conseguem atenção. Como por exemplo o funcionamento efetivo do aborto legal, seguidamente uma miragem no sistema de saúde do país.
A situação é tão desesperadora que um homem da estatura ética de Rodrigo Maia (DEM), atual presidente da Câmara e investigado pela Lava Jato, posa de defensor das mulheres ao afirmar que proibir aborto em caso de estupro “não passa na Câmara”. Mudam-se as manchetes e, no Brasil de 2017, torna-se preciso reafirmar como avanço e coragem algo que está no Código Penal de 1940. E, se não “passar”, será “vitória”. Essa é uma estratégia óbvia para barrar qualquer ampliação de direitos. O Brasil progressista não para de perder.
5) O que a escravidão tem a ver com isso?
A resposta para essa pergunta é: tudo. Embora a criminalização do aborto afete a vida e os direitos de todas as mulheres, a situação real no país não é a mesma para todas. O aborto é liberado para mulheres que podem pagar por uma clínica clandestina, mas segura. No Brasil, a maioria das mulheres que pode pagar pela interrupção segura de uma gravidez indesejada, em qualquer circunstância, é branca. Já a maioria das mulheres que morre de abortos feitos em condições precárias e desesperadas é negra. E esta é uma das piores faces da criminosa hipocrisia nacional: há um país que pode fazer aborto e outro, muito maior, que morre ao tentar fazê-lo.
Assim, a perversão dos 18 atinge mais fortemente uma parte do Brasil: justamente a parte mais pobre, mais desamparada e a historicamente mais oprimida. Havia muitas mulheres nas ruas em 13 de novembro, mas é bastante provável que, se a ação dos 18 atingisse todo o país, haveria muito mais. E não só nas ruas, mas nos espaços de voz. Se as mulheres, filhas e irmãs brancas dos jornalistas do país (a maioria homens e brancos) com espaço na mídia estivessem de fato ameaçadas de não poder fazer um aborto em caso de estupro, risco de morte ou anencefalia do feto, o clamor quase certamente teria sido muito, mas muito maior. E o jornalismo é apenas um exemplo que se repete em todos os espaços de poder, majoritariamente ainda ocupados por brancos no Brasil, apesar de os negros serem a maioria da população.
Este não é um dado qualquer, já que no Brasil a pobreza tem cor. E são as mulheres negras as que mais morrem não só de abortos feitos em condições precárias, mas as que mais morrem de parto e de tudo. São também as que mais sofrem todo o tipo de violência, inclusive o estupro. E são as que menos têm acesso a qualquer direito.
Costuma-se afirmar que, se houvesse mais mulheres nos postos de poder, o aborto já teria sido descriminalizado no Brasil. Assim como se afirma que, se os homens engravidassem, o aborto já teria deixado de ser crime em qualquer circunstância no Brasil. Tenho dúvidas.
Com a marca racial da desigualdade brasileira, os direitos só serão ampliados quando existirem mais negros nos espaços de poder, e principalmente mulheres negras. Porque são elas as mais afetadas pela falta de políticas públicas, em especial de saúde, educação e mobilidade, assim como pela acelerada corrosão dos direitos do Brasil atual. São elas que não conseguem “resolver de outro jeito” e portanto precisam do acesso aos equipamentos públicos para garantir seus direitos.
Assim, os 18 e seu grupo riem, batem palmas e comemoram não apenas terem aprovado em comissão uma sacanagem com as mulheres no geral, mas uma sacanagem principalmente com as mulheres negras. É também um jeito de continuarem a botar uma mão violenta sobre o corpo delas, uma prática em vigor no Brasil desde a escravidão.
Nenhum outro ser humano foi mais afetado pelo controle dos corpos do que as mulheres negras, que por séculos foram reprodutoras de força de trabalho, foram “mães de leite” de sinhozinhos, foram estupradas e torturadas continuamente por senhores e seus filhos e foram exploradas também por mulheres brancas a quem eram colocadas a serviço.
Essa situação não mudou de forma significativa com a “abolição” da escravatura de 1888, como se sabe. Mas continuou na instituição da “empregada doméstica” e seu quarto-senzala nos fundos da casa ou apartamento. Até bem pouco tempo atrás era prática corriqueira, e em alguns lugares ainda persiste, que os filhos dos patrões tivessem a iniciação sexual com a jovem empregada da casa, em geral negra. E quando isso resultava numa gravidez, elas simplesmente eram expulsas como “vagabundas”, com a cumplicidade, quando não crueldade explícita, da dona de casa branca.
São também essas mulheres, a maioria delas negras, que cuidam dos filhos dos patrões brancos sacrificando o cuidado com seus próprios filhos, crianças e adolescentes que vivem em casas precárias, em lugares sem saneamento básico, e sem acesso a creches e escolas de qualidade. Isso quando não morrem de bala “perdida” da Polícia Militar, como tem acontecido com tantas crianças nas comunidades periféricas do país, em especial no Rio de Janeiro.
Desde a política falida da chamada “Guerra às Drogas” são também essas mulheres negras que têm seus filhos assassinados. E também são elas que são encarceradas com a justificativa de “tráfico”, seguidamente sem julgamento. A escravidão, por nunca ter de fato terminado, segue se reproduzindo em formas cada vez mais criativas no Brasil.
Assim, o que os 18 fizeram não se constitui apenas numa tremenda sacanagem com as mulheres, mas é também uma ação racista, porque são as negras que compõem a maioria afetada se o projeto for adiante. Como os velhos senhores, eles continuam querendo controlar os corpos do que consideram propriedade sua para gozar com seu sofrimento e seu jugo.
É disso que se trata, mesmo que muitos prefiram não enxergar, para não se arriscar à imagem que os encara do espelho.
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Os 18 não são 18. São dezenas no Congresso. E estão lá porque alguém votou neles.
Quem sabe na próxima eleição, no ano que vem, os brasileiros sejam mais responsáveis pelo seu voto e deem aos odiadores de mulheres o destino que merecem. Até lá, porém, há muito tempo para o exercício do ódio e a distribuição seletiva de maldades.
Do mesmo modo, a eleição não é garantia de melhora, já que o segundo colocado nas preferências nacionais para presidente é Jair Bolsonaro (PSC), um declarado odiador de mulheres. Lembrando apenas uma de suas falas: em 2014, o deputado disse que sua colega de parlamento Maria do Rosário (PT) “não merecia ser estuprada” porque era “muito feia” e não fazia o seu “tipo”.
Só a resistência pode salvar o Brasil de si mesmo. Mas para isso é preciso que aqueles que estão fingindo dormir acordem.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes – o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas.