Jaqueline de Jesus questiona a recorrente colocação de pessoas cis no papel de pessoas trans: “atores trans têm sido sistematicamente excluídos de representar qualquer papel”
(Revista AzMina, 29/01/2018 – acesse no site de origem)
“Diante de outro ponto de vista
Talvez você pudesse admitir a sua visão distorcida
Suas opções estéticas equivocadas
Seus modelos de beleza programados pela televisão”
(Ilusão de Ótica, de Cristiane Sobral).
O que significa representatividade?
Você se vê nos meios de comunicação? Na televisão, nos anúncios, na internet, no cinema, no teatro?
Para além de se ver ou não, a representatividade esconde sempre uma relação de poder: quem é representado?
Quem é o ser humano digno de ser visto, ouvido, lido?
Todos, diriam pessoas que pensam como eu, porém o mundo é pautado por lógicas de opressão que discriminam alguns a favor do privilégio de outros, em nome de todos:
Todos os dias nós vemos o homem branco falar sobre o mundo. O homem branco (que também é cisgênero, de classe média ou alta, heterossexual, casado e com filhos) apresentado como aquele que pensa e se expressa dignamente acerca de todos os assuntos.
Do que falam as mulheres? Todas as mulheres, não só as brancas, as cisgêneras, heterossexuais, casadas, com filhos, etc, mas também as negras, indígenas, trans, lésbicas, bissexuais, solteiras, sem filhos etc?
O tema “representatividade” não é de ontem. Tem longa história.
Quando falamos do Trans Fake (a tradicional prática de escalar somente pessoas cis para interpretar pessoas trans) estamos discutindo isso, voltando a uma questão pujante desde o início do século XX, pelo menos, que retoma as discussões, lutas e vitórias da população negra contra o blackface, uma nefanda prática teatral do século XIX, que se embrenhou no XX, de colocar pessoas brancas – representadas de forma hiper estereotipada – para interpretar personagens negros.
Mas por que estou falando disso?
O movimento Representatividade Trans, organizado por atores e atrizes trans (travestis, mulheres e homens trans), alcançou rara visibilidade dada aos pontos de vista de pessoas trans, ao denunciar a recorrência do Trans Fake na produção artística brasileira.
Esse é um movimento global, iniciado em países como Estados Unidos da América e Reino Unido, no qual a população trans tem protagonizado questionamentos sobre a recorrente colocação de pessoas cis no papel de pessoas trans.
Historicamente, atores cis têm representado personagens trans desde a primeira exibição de um filme sobre transgeneridade. Não por mera coincidência, homens cis costumam ser escalados para interpretar mulheres trans e travestis e mulheres cis para homens trans. (Não sabe o que é cis e trans? AzMina explica aqui ó.)
Isso não é por acaso. É parte da lógica de desumanização da população trans, por meio da nossa invisibilização. Por meio da nossa substituição por aqueles que se julgam nos representar integralmente.
É uma expressão da transfobia estrutural. Deriva, em primeiro lugar, da perversa ideia de que mulheres trans e travestis seriam “homens”, e homens trans seriam “mulheres”.
(Há também um sequestro da Cultura Trans, algo que, infelizmente, ocorre há décadas, pela invisibilização do protagonismo trans e travesti sob o rótulo LGBT, com práticas como a arte drag sendo negada para as pessoas trans que a criaram, mas isso é assunto para outra conversa).
Não basta uma simplória posição de “o ator interpreta qualquer papel”, tampouco de “atores trans podem interpretar personagens cis”. Não é suficiente dizer, ainda, que não há pessoas trans capacitadas. Atores trans têm sido sistematicamente excluídos de representar qualquer papel. Sob vários argumentos.
São argumentos velhos conhecidos de quem lembra, por exemplo, da revolta do histórico militante Abdias Nascimento contra o BlackFace, quando ele fundou, nos Anos 40 do século XX, o Teatro Experimental do Negro (TEN). Quando o argumento explicitamente racista foi esvaziado de sentido (“negros não podem interpretar”), dizia-se que não havia atores negros capacitados para serem atores. O TEN então formou ou revelou talentos negros ainda hoje desvalorizados ou menos valorizados do que mereciam, adaptou ou criou textos adequados a essa inovadora perspectiva afrocentrada.
Voltemos ao Trans Fake, cunhado pelo movimento trans para ressaltar a falsidade na interpretação de um personagem trans por uma pessoa cis, em detrimento dos atores trans: esse não é um problema desta ou daquela peça/novela/ator/atriz, é um desafio PARA TODA A CADEIA PRODUTIVA DA ECONOMIA CRIATIVA ARTÍSTICA! Exige um compromisso das pessoas cis incluídas nesse sistema pela sua transformação, de dentro, a partir do empoderamento do talento trans.
Não há consciência sem memória. Não há memória sem representatividade. Só quando eu vejo os meus eu sei que posso estar em qualquer lugar, não só naqueles que o preconceito tenta me impor. Ao não verem as pessoas trans se interpretando, crianças e adolescentes trans vão sendo criados para serem os adultos alienados de si mesmos, que não se vêem, primeiramente, como dignos de existirem. Como se pessoas trans brotassem, e não se desenvolvessem como as pessoas cis.
Eis um sintoma da desumanização imposta às pessoas trans, que leva à ideia da patologização das identidades trans, contra a qual encampamos – nós e os aliados cis – uma campanha internacional.
No contexto das relações intergrupais entre grupos opressores e oprimidos, bastante estudadas, vale ressaltar, vivemos um momento em que algumas pessoas trans conseguiram acessar o mundo cis (para além da negação da nossa existência, e da nossa condição de mulheres ou de homens), não encontrando trabalho apenas na prostituição ou em outros nichos marginalizados do mercado informal.
Essa não é a etapa final da relação intergrupal entre os opressores cis e os oprimidos trans. É o momento em que deparamos com o muro que ainda impede a maioria da população trans de acessar o que é rotineiro às pessoas cis: direito a identidade, direito ao próprio corpo, direito de ir e vir, direito à vida, saúde, educação, trabalho digno.
A não valorização do talento trans é parte desse sistema transfóbico: quer-se as pessoas trans como os objetos de estudo, não como as protagonistas.
Como aquelas das quais se vendem as imagens e ideias, mas não se as contrata; como aquelas pessoas exóticas sobre as quais é curioso falar, e não como as pessoas tão capazes quanto as cis, que podem falar de si mesmas.
Obviamente que essa ideia não é consciente para todo mundo: a ideia de que pessoas trans são gente não é comum ainda; ainda há pessoas cis (e trans), que mesmo aliadas da população trans, não consideram mulheres trans tão mulheres quanto quaisquer outras mulheres, nem homens trans tão homens quanto os cis; a própria ideia de que as pessoas que não são trans – às quais demos o nome de cis – também têm identidade de gênero (reconhecendo-se com o gênero que lhes foi atribuído), ainda não é vista como óbvia.
A crítica ao Trans Fake não é exibicionismo, é enfrentamento ao apagamento das pessoas trans que tem levado ao nosso EXTERMÍNIO SIMBÓLICO, PSICOLÓGICO, FÍSICO!
Apoiar a representatividade trans de fato, e não só no discurso, é assumir um posicionamento político em prol das vidas trans, é dizer que essas vidas importam e que a revolta contra a transfobia é a base de uma revolução cidadã!
Decerto que isso exige uma mudança estrutural (educação e empregabilidade), e não somente pontual (acesso a este e aquele evento cultural), mas são as pequenas iniciativas que darão o “input”, o “start” para a grande trans-formação.
(Destaco, para o caso de não ter ficado bem compreendido o meu ponto: não estou dizendo que pessoas trans só devam interpretar pessoas trans. Endosso o argumento de que ator/atriz representa qualquer “coisa”, porém demonstro que o suposto universalismo dessa bela concepção esconde, na prática, a exclusão dos atores e atrizes trans tanto de papeis cis quanto trans).
Valorizar os talentos trans é reavivar a humanidade das próprias pessoas cis, é dizer que ser gente é mais do que só isso que aí está sendo representado. É reconhecer o universo de novas narrativas que têm sido renegadas/depreciadas, devido ao não-olhar do apartheid de gênero, do sexismo e, por conseguinte, da transfobia.
A negritude também é mundo. Como a mulheridade. Como a transgeneridade. A sua, a minha, a nossa! Ao ser representada não estou falando só de mim, tampouco estou tão-somente denunciando o egocentrismo desses que se acreditam representar sozinhos o mundo, ao custo dos outros humanos.
A representatividade trans é um farol para o mundo, é guerrilha e profecia.
#representatividadetrans
#digasimaotalentotrans
#chegadetransfake
Jaqueline de Jesus é Professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro. Coordenou o Curso de Extensão “Feministas nas Trincheiras da Resistências”. Doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela Universidade de Brasília, com pós-doutorado pela Escola Superior de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro. É autora e organizadora de livros como “Transfeminismo: Teorias e Práticas”, entre dezenas de outras publicações.