A partir desta quinta-feira (30), a coluna Mulheres em Movimento passará a receber periodicamente colaboração de ativistas feministas. Paula Guimarães, jornalista, co-fundadora do Portal Catarinas – que também publica a nossa coluna – inicia estas colaborações abordando o debate da legalização do aborto pela perspectiva da demografia, a partir das Audiências do STF para discutir a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, apresentada pelo PSOL ao Supremo.
Boa leitura!
Carla Batista
(Folha de Pernambuco, 30/08/2018 – acesse no site de origem)
“Não pensem nas mulheres como motor da demografia”, por Paula Guimarães
A capa das aias, personagens da série Handmaid’s Tale, virou farda do movimento pelo direito ao aborto no mundo. Nos dois dias de audiência pública que discutiu a descriminalização do aborto (ADPF 442), em 3 e 6 de agosto, no Supremo Tribunal Federal (STF), manifestantes vestidas com o figurino (capas vermelhas e toucas brancas), protestaram em silêncio contra o controle dos corpos das mulheres. A série distópica, inspirada no livro homônimo publicado pela canadense Margaret Atwood em 1985, imagina um futuro próximo em que mulheres perdem seus direitos e humanidade com a instalação de uma república teocrática nos Estados Unidos.
O regime, cristão autoritário, estabelece regras misóginas e machistas para reverter a queda brusca nas taxas de fertilidade, por conta da poluição e de doenças sexualmente transmissíveis. As mulheres são separadas em castas. As férteis e pecadoras, categorizadas como aias, são condicionadas à tarefa de reproduzirem novas vidas. Em “nome de deus”, as aias são submetidas a rituais religiosos de cópula, que na prática são estupros, e a outras formas de tortura. Aquelas que se rebelam podem ser condenadas à mutilação ou morte.
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Handmaid’s Tale é uma alegoria da sociedade patriarcal em seu propósito de reduzir mulheres à função de reprodutoras e coagi-las à maternidade compulsória, condená-las à mutilação ou à morte. Direta ou indiretamente esses elementos da ficção se fizeram presentes no Supremo a cada posicionamento contrário ao direito da mulher de interromper uma gravidez até a 12ª semana de gestação, sem ter a prisão, mutilação ou morte como destino. A maior parte dos expositores religiosos recorreu a argumentos científicos ou jurídicos para se posicionar contra a proposta. Viviane Petinelli e Silva, do Instituto de Políticas Governamentais (IPG), reforçou a tese central desse grupo, de que a descriminalização contribui para promover o aumento da prática. Mas, destoou pelo fato de não fazer um discurso em defesa do embrião. Ela distinguiu-se por defender a função da mulher como reprodutora, a serviço de uma demanda demográfica e socioeconômica.
E alegou: ”O aumento do número de abortos além de gerar expressiva despesa aos cofres públicos, impacta também no médio e longo prazo no mercado de trabalho e previdência social. O Brasil encontra-se em período de transição demográfica com baixas taxas de fecundidade e de crescimento populacional. Sem qualquer intervenção na dinâmica populacional o nosso país atingirá, muito em breve nas próximas décadas, taxa inferior ao dos países desenvolvidos.”
Segundo a doutora em Ciências Políticas, o país atravessa um momento favorável de transição demográfica, caracterizada pela queda das taxas de mortalidade e fecundidade, o chamado “bônus demográfico”, com maior proporção da população economicamente ativa, em relação ao número de dependentes. Para Viviane, esse seria o momento ideal para a nação se tornar desenvolvida e, se o aborto for utilizado como método de planejamento familiar, a prática pode afetar negativamente essa dinâmica.
“Enquanto um procedimento que reduz a taxa de fecundidade e natalidade de uma nação, o abortamento modifica a médio e a longo prazo a estrutura etária da população, o que traz implicações para políticas públicas, políticas de saúde e de previdência social em especial. Neste momento em que o país experimenta o bônus demográfico, a melhor decisão é a não decisão, a não interferência na política populacional do país. O abortamento não é um problema de saúde pública, mas se tornará um e causará muitos outros, caso seja descriminalizado”, argumentou.
Tania Lago, professora na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, fez uma exposição sobre as consequências negativas da criminalização à saúde e vida das mulheres. No momento destinado ao debate entre expositoras, ela contestou, a partir de sua formação também de demógrafa, a colocação de Viviane:
“A gente passou anos até a Conferência de População de Bucareste, em 1974, na qual conseguimos dizer aos demógrafos ‘não pensem nas mulheres como motor da demografia’. Naquela época os demógrafos diziam ‘a miséria existe porque essas mulheres ficam transando e tendo filhos’. Se hoje os demógrafos vão dizer que nós estamos causando o problema contrário, aí não adiantou nada. Somos metade da população, o bônus seja qual for, deve ser pra nós também, não só para a outra metade, os homens”, afirmou a médica sanitarista.
Para Tânia é um equívoco pensar que a descriminalização do aborto teria impacto na dinâmica populacional, no sentido de diminuir o número de nascidos vivos. Ela lembrou que a ilegalidade do aborto não impede que ele atue como regulador da fertilidade. A diferença é que a influência não pode ser quantificada quando a prática é ilegal. O aborto, como argumentou, é uma das formas que as sociedades têm de não ter um filho em determinado momento. “Sempre foi assim, passado, presente e será no futuro”, reiterou.
Ela explicou que antes dos anos 60, quando não havia métodos contraceptivos, e depois com a necessidade de diminuir a desigualdade no acesso a esses métodos, o aborto teve mais impacto do que ele passou a ter nas sociedades que deram amplo e igualitário acesso aos métodos contraceptivos. E mesmo em sociedades com acesso amplo à contracepção, “legal ou ilegal, o aborto é realizado quando a contracepção falha”.
“Não será a descriminalização do aborto que virá a impactar sobre a redução da fecundidade. O aborto é um dos fatores que estão presentes, seja ele crime ou não. Se a gente pensar que o aborto foi legalizado nos países industrializados nos anos 60 e 70, a transição da fecundidade aconteceu duas décadas antes. Então não foi a descriminalização do aborto que impactou”.
Conforme a demógrafa, há três dimensões que atuam sobre a regulação da fecundidade como fatores influenciadores. No plano macro estão condições sociais e macroestruturais que fazem com que uma mulher decida ter ou não filhos, quando e como. O segundo nível é o processo de decisão, se a mulher quer ou não e quais estratégias vai usar para isso. Em outro nível está o “como”, ou seja, a operacionalização da decisão de não ter ou ter menos filhos, que pode ser de três tipos: abstinência sexual, contracepção ou aborto.
Em conversa com o Catarinas, Tania avaliou o retorno à abordagem demográfica para controlar o corpo da mulher, hoje superada devido à ampla luta feminista no âmbito das conferências internacionais sobre população e desenvolvimento das Nações Unidas (CIPD), para que as agências internacionais deixassem de ver o corpo feminino como instrumento de regulação da dinâmica populacional. Os movimentos reivindicavam que o controle da reprodução por parte das mulheres – os direitos sexuais e reprodutivos – tivesse prioridade, no contexto da proteção à saúde.
“É uma visão totalmente equivocada, machista, retrógrada do papel da mulher na sociedade. Um retorno às ideias de 50 atrás, dizer que às mulheres cabe o ônus de produzir as transformações da população, seja no sentido de aumentá-la ou diminuí-la. Quem provocou esse bônus? Não foram as políticas públicas e o Estado, foram as próprias mulheres, que à custa do seu corpo, saúde e vida, começaram a reduzir sua fecundidade. Não fizeram isso pra produzir o bônus à sociedade. Era para minimizar os impactos negativos que a reprodução tinha sobre suas vidas”, enfatiza Tania.
Conversamos também com Jacqueline Pitanguy, socióloga e diretora da ONG feminista Cepia, que participou da Conferência de População do Cairo em 1994, um marco para a afirmação dos direitos sexuais e reprodutivos. Ela explica que os anos 1980 e início de 1990 foram marcados por um grande embate entre controlistas ou intervencionistas e o movimento de mulheres, pelo qual o conceito de direitos reprodutivos foi cunhado.
Segundo ela, a ideia de livre opção se opõe a metas demográficas. “É uma volta a um eixo demográfico como matriz de decisões relativas à população, inclusive à reprodução humana. Vejo com preocupação. Ao discutir a questão do abortamento tínhamos como âncora os direitos humanos, no sentido do direito à opção, à saúde e justiça social e reprodutiva, fundamentais às decisões do Cairo. Questões que embasaram a luta feminista pra justamente reverter esse eixo demográfico”, afirmou a socióloga.
Para Jacqueline o controle reprodutivo para atender interesses demográficos é além de um visão patriarcal e machista, produto de uma sociedade autoritária e não democrática, porque um dos princípios básicos da democracia é o respeito ao pluralismo.
“Quando estabelece política demográfica ancorada numa meta demográfica que desrespeita justamente esse princípio básico do respeito à pluralidade, se está construindo um solo muito fértil para um controle reprodutivo como aconteceu em períodos históricos autoritários, como no nazifascismo, quando havia uma política natalista para com as mulheres arianas e uma política controlista para as ‘raças menores‘”, exemplificou.
Segundo ela, políticas natalistas ou controlistas foram defendidas em diferentes períodos da história de acordo com os interesses políticos e econômicos da época. Nos anos 1960 e 1970, certos países do norte já tinham feito a transição demográfica e viam com muita preocupação o crescimento populacional dos países do sul, que se destacava em função da queda na mortalidade. “Era um momento em que se tinha claramente o controle do útero das mulheres, através de, digamos assim, domínio de grandes corporações e empresas internacionais sobre países periféricos. A partir de uma relação norte sul, em outras épocas foram os próprios países que desenvolveram políticas. Aqui no Brasil, no período da ditadura, os militares tinham um projeto de ocupação do território brasileiro que era acompanhado de uma política natalista”, explica.
O custo da criminalização
Durante a apresentação em defesa da agenda demográfica, Viviane argumentou que a legalização geraria também um “impacto econômico” aos cofres públicos, com a oferta do procedimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Para ela, o planejamento reprodutivo deve estar focado unicamente no acesso a métodos contraceptivos e, em último caso, na adoção. “O aborto custa caro, por que não investir mais 500 milhões em prevenção e assistência à mulher?”, questionou ela.
A colocação foi feita com base nas estimativas da prática, números de atendimentos emergenciais pós-abortamento na rede pública e seus respectivos custos, apresentados na Nota Técnica “Interrupção voluntária de gestação e impacto na saúde da mulher” do Ministério da Saúde. No entanto, o material dedicado a subsidiar os ministros indica que é a manutenção da criminalização que sobrecarrega o SUS.
“As complicações do aborto inseguro trazem uma sobrecarga imensa ao SUS, totalmente evitável. Para cada morte materna, nós temos pelo menos 30 casos graves. O procedimento inseguro leva a mais de 250 mil hospitalizações no SUS por ano, isso gera 15 mil complicações e 5 mil complicações extremamente graves, quase morte (near miss) e 203 mortes, quase uma a cada dois dias. Essa carga gera uma superlotação e dificuldade imensa de lidar com isso”, afirmou Fátima Marinho, diretora de Coordenação Geral de Doenças e Agravos Não Transmissíveis do Ministério durante a audiência.
O Ministério estima que ocorra, anualmente, cerca de um milhão de abortos induzidos no país. Em dez anos (2008 a 2017) foram gastos R$ 486 milhões com internações para finalizar um aborto, sendo 75% deles provocados. Cerca de 250 mil internações por ano, um total de 2,1 milhões de mulheres. Embora o número de internações tenha caído 7%, as despesas hospitalares subiram 12% devido à gravidade dos casos. Em quase um terço deles, houve sérias complicações após o aborto, como hemorragias e infecções. Ao menos 4.455 morreram de 2000 a 2016.
A partir do olhar para o aborto como questão de saúde pública, a representante argumentou sobre o caráter de discriminação social e racial da não garantia de um procedimento seguro pelo Estado. “Quem mais sofre é a classe mais vulnerável, são as mulheres mais pobres (…) Temos que trabalhar cada vez mais para evitar essas mortes e complicações. Trazemos pra vocês, ministros (do STF), esse quadro da saúde pública, tentando dar voz a elas, que se sentem culpadas pelo ato, que se escondem e, por isso demora o socorro e, por isso complica e vai a óbito. Eu, brasileira, confesso minha culpa e pecado, meu sonho desesperado, minha aflição. Aqui é o fim da vida para elas e a gente espera cada vez mais, nós da saúde, fazer com que elas vivam e que os serviços de saúde respeitem e trabalhem em prol da vida dessas mulheres”, falou emocionada.
Jacqueline Pitanguy acredita que negar o acesso, criminalizar e perseguir a mulher que aborta, tem custo econômico bem maior do que oferecer o serviço. Até porque, segundo ela, o abortamento quando feito nas primeiras semanas é uma cirurgia simples ou pode ser realizado com o uso de pílulas, sem necessidade de hospitalização.
“O aborto combina a dimensão do direito individual à escolha e a dimensão coletiva da saúde pública. O poder exercer escolhas na vida também está relacionado à questão econômica, porque é desigual entre as mulheres, ou seja, a desigualdade social e econômica permeia o exercício desse direito básico, desde o acesso à educação sexual e contracepção. No nível de saúde pública há custo não contabilizado, não em relação só à mortalidade, mas também à morbidade e os efeitos dela no comportamento futuro da mulher. O cálculo é não só o que aquela vida que deixa existir implica em termos do que ela poderia produzir, mas o que o adoecimento traz na trajetória existencial daquela mulher. Vários fatores levam a um cálculo muito complexo de se trabalhar apenas do ponto de vista econômico, e nesse caso a dimensão da dignidade humana fica de fora. No momento em que se permite às mulheres exercer o direito de escolha reprodutiva, isso implica acesso à contracepção, saúde reprodutiva e à interrupção da gestação regulamentada. Só tendo esse acesso você está garantindo vidas e uma saúde mental, e tudo isso tem custo econômico”, analisou Jacqueline.
A socióloga avalia que o desafio da audiência foi trazer uma série de argumentos de ordem econômica, social e de direitos humanos a favor ou contra a Ação, sob lógicas opostas. “Você pode tomar um argumento econômico e ter apenas como preocupação a questão do gasto, ou seja, é possível sair do nosso campo de diretos, justiça reprodutiva, dignidade humana e ir para um campo econômico e fazer cálculos diversos. Num cálculo meramente econômico ao que tudo indica há um custo para o país maior com a criminalização do aborto, inclusive com a projeção que isso traz em nível de morbidade e mortalidade materna”.