Lei fundamental representou grandes progressos na igualdade de direitos e abriu caminho para legislações voltadas aos crimes contra a mulher, como a Maria da Penha. Mas para isso foram necessários pressão e empenho.
(DW, 05/10/2018 – acesse no site de origem)
“Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”, estabelece o artigo 5º da Constituição Federal, promulgada no dia 5 de outubro de 1988, há 30 anos.
Parece óbvio para os tempos atuais, mas a frase representa uma das maiores conquistas das mulheres brasileiras. “A Constituição de 1988 é a primeira a estabelecer plena igualdade jurídica entre homens e mulheres no Brasil”, afirma a socióloga e feminista Jacqueline Pitanguy.
Apesar de não ser colocado em prática em sua totalidade, o atual texto constitucional trouxe importantes avanços para as mulheres, tendo mudado radicalmente o status jurídico das brasileiras, que até 1988 estavam em posição de inferioridade e submissão em relação aos homens.
“Conseguimos conquistas em várias áreas. No capítulo da família, por exemplo, conseguimos eliminar a figura do homem como chefe da relação conjugal”, afirma Pitanguy. “No âmbito da violência, afirmamos que era dever do Estado coibir a violência intrafamiliar, o que forneceu a base para que se formulasse a Lei Maria da Penha.”
Aprovada em 2006, a Lei Maria da Penha é considerada pelo Banco Mundial referência global no combate à violência contra a mulher no ambiente familiar e doméstico.
Pitanguy fala “conseguimos” porque foi uma das responsáveis pelas conquistas na Constituição de 1988. Como presidente do então recém-criado Conselho Nacional dos Direitos da Mulheres (CNDM), ela coordenou a campanha nacional Mulher e Constituinte, que uniu mulheres de diversos setores da sociedade para debater quais direitos a Constituição deveria contemplar.
“O CNDM fez um trabalho ininterrupto de 1985, antes da eleição para a Assembleia Constituinte, até a promulgação da Constituição, em outubro de 1988. Durante quatro anos, minha vida esteve diretamente ligada ao processo constituinte”, lembra a socióloga.
Por 20 meses, o CNDM pediu a mulheres de todo o país que enviassem propostas que gostariam de ver na Constituição. “Numa época sem internet, recebemos milhares de cartas e telegramas”, lembra a feminista. Com a ajuda de juristas, o conselho transformou essas propostas na Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes, que serviu de base para o trabalho dos constituintes.
Em março de 1987, as integrantes do CNDM e deputadas entregaram a Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes ao presidente da Assembleia Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães.
“Tenho várias lembranças marcantes desse período, como o sentimento de solidariedade dos mais diversos movimentos de mulheres de todo o país. Mas também lembro de sentir o peso das forças contrárias ao nosso avanço”, recorda Pitanguy.
Graças à pressão das mulheres, cerca de 80% da Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes foi incluída na Constituição de 1988.
Lobby do Batom
Com os slogans “Constituinte para valer tem que ter palavra de mulher”, “Constituinte para valer tem que ter direitos da mulher” e “Constituinte sem mulher fica pela metade”, a campanha Mulher e Constituinte era uma resposta à baixa representação feminina na política institucional: em 1935, a elaboração do texto constitucional teve a participação de somente uma mulher, a deputada paulista Carlota Pereira de Queiroz. Em 1988, a situação era melhor, mas ainda muito desigual: dos 559 parlamentares da Constituinte, 26 eram mulheres.
“Quando os parlamentares iniciaram os trabalhos da Constituinte, eu e grupos de mulheres íamos diariamente ao Congresso para visitar lideranças de todos os partidos”, conta Pitanguy. “Para cada capítulo que era discutido, e que era de interesse das mulheres, apresentávamos nossas propostas. Se era um tema de direitos trabalhistas e benefícios sociais, por exemplo, íamos acompanhadas de empregadas domésticas, trabalhadoras e sindicalistas.”
Essa articulação do CNDM e de demais mulheres da sociedade civil em geral no Congresso ficou conhecida como Lobby do Batom. “Alguns congressistas tentaram nos diminuir e diziam pejorativamente ‘lá vem as mulheres de batom’. Então decidimos assumir o título de O Lobby do Batom como uma estratégia de luta pelos direitos das mulheres e começamos a usar esse nome nos nossos materiais, campanha e publicações.”
“O Lobby do Batom era uma forma irônica de as mulheres se identificarem fora da Câmara dos Deputados. Dentro da Câmara, a pauta das mulheres era representada pelas deputadas, conhecidas como Bancada Feminina”, lembra a historiadora Celi Pinto. “É muito significativo que mulheres de vários partidos e ideologias tenham se unido e buscado, num ambiente tão masculino e machista como a Câmara, uma representação a partir da própria condição de ser mulher”, analisa.
Os avanços de 88
Para Pitanguy, uma das maiores contribuições da Constituição de 1988 para a população feminina é que o texto serviu de base para que fossem criadas legislações que abordassem especificamente os crimes contra a mulher, tipificando esses crimes.
Antes da Lei Maria da Penha, por exemplo, era comum que os agressores fossem punidos com penas alternativas, como o pagamento de cestas básicas, e não fossem presos. Com a nova lei, penas alternativas à prisão foram proibidas, e uma série de medidas de proteção à vítima e seus filhos foram criadas.
“Avançamos em várias áreas: nos direitos reprodutivos, conseguimos que se reconhecesse o direito de a mulher de decidir sem coerção sobre o número de filhos que deseja ter e que é dever do Estado fornecer meios e informações para tal decisão. Na área familiar, eliminamos a necessidade de um certificado de casamento para que se reconhecesse uma família”, explica a socióloga, lembrando que, até a Constituição de 1988, vigorava o Estatuto da Mulher Casada, que previa a necessidade de autorização do marido para as mulheres poderem trabalhar.
Na área trabalhista, Pitanguy lembra que a licença maternidade foi estendida de 84 dias para 4 meses e que a licença paternidade foi instituída. “Também avançamos na afirmação de direitos trabalhistas e previdenciários para empregadas domésticas, que foram consolidados com a PEC das Domésticas de 2012.”
A feminista também destaca a conquista para as mulheres rurais do direito à titularidade da terra e, para as mulheres presidiárias, o direito de amamentar os filhos.
Celi Pinto aponta, no entanto, que questões como o direito ao aborto e o reconhecimento do direito à livre expressão sexual para lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros não foram contemplados até hoje.
Para a historiadora, o movimento das mulheres em 1987 e 1988 em torno da Constituinte havia sido a maior mobilização feminina na história do Brasil – até 2018. “Ou melhor, até as eleições presidenciais de 2018, já que a maior mobilização política das mulheres no Brasil está acontecendo neste momento, com o movimento #elenão.”
“Mais uma vez, vemos uma mobilização de mulheres acima das diferenças de classe e de raça, pois é uma luta contra o autoritarismo”, afirma Pinto. “O #elenão já mudou a relação das mulheres com a política nacional e terá efeitos muito impactantes nas próximas eleições. Acredito que a política brasileira não será mais a mesma após esta mobilização.”
Laís Modelli