Temos que fortalecer o ativismo e batalhar por novas lideranças
(Folha de S.Paulo, 29/10/2018 – acesse no site de origem)
Quando essa coluna chegar a você, (e)leitora e (e)leitor, já teremos feito história e decidido quem irá liderar o país pelos próximos anos. Escrevemos ainda sem saber o desfecho. Mas há muito já está dado.
Sabemos que o país está diante de uma encruzilhada. Somos uma sociedade racista, machista, conservadora. Mas podemos deixar de sê-lo. Podemos caminhar com maior ou menor celeridade para um novo normal.
O resultado dessas eleições dirá muito sobre o tamanho da tarefa que recai sobre os ombros do movimento de mulheres, do movimento negro e demais movimentos sociais. Como diz a referência máxima do feminismo negro Angela Davis, não devemos transferir para o governo a responsabilidade de operar transformações que só movimentos sociais conseguem conquistar — independentemente de quem esteja no governo.
Sabemos também que a encruzilhada posta diante de nós não é exclusivamente nossa. O mundo está diante de encruzilhadas semelhantes que ganham nuances específicas em cada conjuntura, em cada contexto. O neoliberalismo deu as mãos, pelo mundo afora, a um liberalismo obscurantista, parindo novas versões embrutecidas e autoritárias do conservadorismo. É assim na Hungria de Orban. Nas Filipinas de Duterte. Na América de Trump.
Pelo globo, vemos uma pandemia de conservadorismo que flerta com o fascismo em todo o canto. E que articula, em todos os casos, um discurso hostil aos movimentos sociais e às minorias. Um discurso que relativiza violações de direitos. Um discurso que pode não desaguar sempre na constituição de regimes ditatoriais, mas está sempre intimamente e sem pudor compactuando com processos assustadores de desdemocratização.
Repaginado, esse conservadorismo se apresenta para nós com tempero brasileiro e seduz um número escandaloso de pessoas. Independentemente do resultado das urnas que ainda não conhecemos ao escrever, sabemos isso: será preciso que democratas progressistas se dediquem a três desafios.
Primeiro, teremos que fortalecer nossa capacidade de trabalhar em conjunto pelo comum. Fortalecer o associativismo. Investir na nossa capacidade de construir coletivos que defendam territórios livres, onde possamos debater e propor alternativas para que nossa sociedade transcenda sua condição conservadora e avance rumo à igualdade.
Segundo, teremos que, cada vez mais, batalhar pelo surgimento de novas lideranças —em especial aquelas cujos corpos são os mais vulneráveis: mulheres, homens e mulheres negros, indígenas. Aquelas e aqueles que um dos candidatos à Presidência chama de adeptos do “coitadismo”.
Teremos que mostrar, ganhando ou não aquele que cunhou esse termo trágico, que não existe coitadismo. Existe luta. Existe gente que trabalha pela redução das desigualdades. E que dará muito trabalho nos varrer do país ou nos prender. Somos muitas. Muitos. E juntas e juntos somos gigantes. Precisaremos, enfim, de novos quadros políticos qualificados que renovem o sentido de noções tão maltratadas no Brasil hoje. Como democracia. Ou representatividade.
Terceiro, teremos que trabalhar junto às instituições para que esse conservadorismo repaginado não dite uma era de retrocessos. Precisaremos repactuar aquilo que nossa sociedade considera inegociável. Os ganhos que os 30 anos de democratização nos legaram. E trabalhar para que os ganhos sejam irreversíveis.
Essa é a lição de casa que temos que fazer. Sem isso, tanto faz quem ganha eleições. Não conseguiremos imaginar novos futuros. E perderemos todas e todos.
Antonia Pellegrino é escritora e roteirista. Manoela Miklos é assistente especial do Programa para a América Latina da Open Society Foundations. Feministas, editam o blog #AgoraÉQueSãoElas.