País não tem instituição que reúna e analise as estatísticas de meninas e adolescentes mortas por serem do gênero feminino
(O Globo, 01/02/2019 – acesse no site de origem)
“Não vou abaixar a cabeça. Ele andou espalhando que ia pegar mais gente, principalmente a minha irmã. Está solto, e nós é que não temos vida.” O desabafo é da cabeleireira Maria Tanzi, tia de Letícia Tanzi Lucas, morta a facadas em outubro de 2018, aos 13 anos. Segundo ela, a família inteira hoje se sente ameaçada por aquele que tirou a vida da menina: o próprio pai da vítima. Mesmo meses após o assassinato, Horácio Nazareno Lucas, de 28 anos, continua foragido.
O crime chocou não só os moradores de São Roque, no interior de São Paulo, onde tudo aconteceu, mas o país inteiro. Horácio queria que a filha retirasse uma denúncia de estupro que ela havia feito à polícia, meses antes, contra ele. Letícia era abusada pelo pai há cerca de dois anos.
— Ele era o tipo de pessoa brincalhona. Mas não gostava de conviver muito no meio da minha família. Se tivesse churrasco na casa da minha mãe, ele dizia que não iria porque não bebia mais, não gostava de bagunça… A gente pensou que o Horácio tivesse mudado — conta.
A mudança sobre a qual fala Maria está ligada a um outro crime cometido por ele, muito antes do assassinato da própria filha. Há cerca de oito anos, a cabeleireira denunciou o cunhado por abuso sexual cometido contra outra irmã sua, que tem deficiência mental. Letícia, à época com 5 anos, afirmava ser testemunha do ocorrido.
Horácio sempre negou as acusações. Respondia ao processo em liberdade por ter endereço fixo e não representar ameaça, mas acabou preso pelo crime em junho de 2018. Ele havia sido condenado, mas ainda tinha possibilidade de recorrer da decisão. O oficial de justiça, no entanto, não o encontrou para entregar a intimação no endereço informado. Horácio perdeu o prazo para dar entrada nos documentos e teve a prisão decretada.
Com o pai detido por esse outro crime de abuso, Letícia teve coragem de contar a sua própria história de abusos sofridos. Atendida pelo Conselho Tutelar, afirmou que Horácio a estuprava desde 2017, aproveitando-se dos momentos em que a mãe, Tamires Tanzi, não estava em casa. Nunca havia contado para ninguém porque era constantemente ameaçada.
Ainda assim, Horácio foi solto em outubro pelo crime cometido contra a cunhada, mais uma vez para responder em liberdade. O juiz responsável por essa decisão não teria tido acesso ao boletim de ocorrência registrado por Letícia, pois ele não havia sido anexado ao antigo processo. Horas depois de deixar a prisão, Horácio foi à casa da família exigindo que a filha retirasse a nova denúncia. Ao ouvir uma resposta negativa por parte da menina, agrediu Tamires e, em seguida, esfaqueou a filha.
Foragido, o pai da adolescente morta está com a prisão decretada por feminicídio, um crime noticiado em larga escala pela imprensa brasileira, cuja falta de estatísticas oficiais no país, principalmente em relação a menores de idade, mostra que há um longo caminho para que seja combatido de forma efetiva.
Em 2018, 22 casos na mídia
Em 2015, a presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei nº 13.104/15, que alterou o Código Penal Brasileiro, passando a prever o feminicídio como uma das circunstâncias qualificadoras do homicídio. Dentro da nova lei, há 13 categorias, sendo uma delas o feminicídio infantil: “Morte de uma menina com menos de 14 anos de idade, cometida por um homem no âmbito de uma relação de responsabilidade, confiança ou poder conferido pela sua condição de adulto sobre a menoridade da menina”, informa o texto. O novo tipo penal também prevê o aumento de pena, se o crime for praticado contra menores de 14 anos.
O GLOBO fez um levantamento apenas sobre os casos de grande repercussão na imprensa em 2018 e contabilizou 22 mortes de meninas e adolescentes por feminicídio noticiados até o início de dezembro daquele ano. Dados oficiais mostram que, de janeiro a agosto, teriam sido apenas 12 casos no país inteiro. Já de 2015 a 2017, 51. São números que, nem de longe, se aproximam da realidade. O Mapa da Violência 2015, por exemplo, estudo coordenado pelo professor e sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, coordenador da Área de Estudos sobre Violência da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso), estimou que somente em 2013 houve 646 casos de feminicídio de menores em todo o Brasil.
O Brasil não tem uma instituição que reúna todos os números de feminicídio infantil. Por isso, é preciso recorrer às secretarias de segurança do país, bem como aos tribunais de justiça, de cada uma das 27 unidades federativas. As secretarias de segurança recebem as denúncias e os tribunais julgam os casos. Instituições de apenas nove unidades enviaram estatísticas ao GLOBO. Dez estados não responderam à solicitação; seis informaram que não era possível filtrar os casos por feminicídio ou pela idade da vítima; um informou que os dados não estão acessíveis por serem tratados em segredo de justiça, e outro informou não haver registros de feminicídio de menores na região.
Ana Paula Blower, Helena Borges e Josy Fishberg