Uma mulher de 34 anos é morta a facadas pelo agressor, seu marido, na presença da filha de 13 anos. A motivação do crime: uma máquina de lavar fora do lugar e uma suspeita de traição. Uma jovem mulher de 22 anos, que tem um filho de apenas três, foi morta pelo ex-namorado com disparos de arma de fogo. A motivação do crime: o agressor não se conformava com o término do relacionamento. Dois atos de violência extrema praticados por homens contra mulheres. Ambos coletados em jornais de grande circulação deste ano. Dizem que são casos de “amor”, mas na realidade são casos de ódio, de possessividade e da expressão mais cruel da masculinidade tóxica.
(ConJur, 18/03/2019 – acesse no site de origem)
Estudo de 2019 do Global Americans Report afirma que o Brasil é o pior país em termos de violência de gênero na América Latina, mas sequer foi incluído no estudo do Eclacs por causa da falta de confiabilidade das estatísticas. O Brasil também foi considerado o 5º país que mais mata mulheres no mundo, num universo de 83 países.
O feminicídio caracteriza-se por atingir as mulheres, pelo simples fato de serem mulheres. Constitui um crime de ódio ao feminino. Marcela Lagarde bem descreve o feminicídio como “um crime de ódio contra as mulheres por serem mulheres. Constitui o ponto culminante de um espiral de violência originada na relação desigual entre homens e mulheres na sociedade patriarcal”.
Todas essas violências têm relação com a construção da sociedade patriarcal, com a subordinação da mulher, o poder dos homens, sendo os níveis de violência potencializados pelo fácil acesso às armas de fogo. A questão, muito além dos aspectos jurídico normativos, diz respeito aos aspectos socioculturais de uma sociedade patriarcal e de origem escravocrata. De qualquer forma, o arcabouço jurídico é necessário e imprescindível para combater esse tipo de crime. O processo, o julgamento e a condenação de um autor de feminicídio são imprescindíveis para diminuir a sensação de impunidade e aplicar ao criminoso a pena adequada, justa, proporcional à perda do bem maior: a vida da vítima.
Em 2015 foi editada a Lei do Feminicídio, trazendo novas agravantes para o tipo penal, e que é imprescindível para nominar uma situação de violência extrema contra as mulheres. A Lei do Feminicídio nasceu de uma construção coletiva que envolveu o Poder Executivo, o Legislativo, alguns membros do Ministério Público e a ONU Mulheres. A lei alterou o artigo 121, do Código Penal, incluindo o feminicídio como circunstância qualificadora e ainda alterou a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/90), tornando o feminicídio um crime hediondo.
O artigo 121 considera feminicídio o homicídio praticado “contra a mulher, por razões do sexo feminino”. São consideradas “razões de condição do sexo feminino”, conforme o parágrafo 2º, letra “a”, os crimes que envolvem: “violência doméstica e familiar”; “menosprezo ou discriminação à condição da mulher”. A lei também acrescentou causas de aumento de pena, em seu parágrafo 7º, fazendo com que a pena se eleve em 1/3.
A expressão “por razões do sexo feminino” foi colocada por parlamentares conservadores, que retiraram do projeto a palavra “gênero” do texto final da lei, muito embora o projeto original contivesse a palavra “gênero”. Em que pese o texto final, a melhor interpretação da lei é aquela que confere ao texto a amplitude protetiva em consonância com o Direito brasileiro e o internacional. Assim, corretamente assinalam Alice Bianchini e Luiz Flavio Gomes: “uma vez esclarecido que a qualificadora não se refere a uma questão de sexo (categoria que pertence à biologia), mas a uma questão de gênero (atinente à sociologia, padrões sociais do papel que cada sexo desempenha)”.
Para Lia Zanotta o homicídio contra a mulher constitui uma modalidade de crime de gênero: “Violência contra a mulher foi a expressão que conseguiu nomear o inominado do segredo da violência doméstica e da violência sexual que têm um sentido tendencialmente dirigido dos homens sobre as mulheres. Seriam os homicídios enquadráveis dentro dessa tipologia? Para melhor tratar dos homicídios de mulheres e do seu lugar dentro do quadro da violência contra a mulher, preferi entendê-la como uma das modalidades das violências de gênero”. A questão da abrangência da lei ainda será analisada pelos tribunais.
É notório que existe um gap, uma grande diferença, entre a Lei do Feminicídio e a sua efetividade. Assim constatou o estudo da Global Americans Report que a realidade da América Latina é muito precária quanto aos feminicídios e o acesso à Justiça: “em geral as leis e as práticas para condenar autores de feminicídio ainda são extremamente fracas na América Latina e o sistema patriarcal de desigualdade e exclusão social permanece alto em áreas em que existe uma concentração de pobreza e em zonas de conflito”.
O feminicídio constitui a ponta de um iceberg. Quando todos os mecanismos de educação, de prevenção e de assistência falham, ele acaba sendo cometido. Não podemos achar que somente a criminalização do feminicídio será suficiente para coibi-lo, é preciso olhar debaixo da ponta do iceberg. Verificando as causas do feminicídio e traçando diretrizes para coibi-lo. Em suma, é necessário o uso do binômio prevenção-punição.
No aspecto da prevenção, o “decreto do armamento” (Decreto 9.685), que facilitará o acesso às armas de fogo à população, sob a alegação de proteção, terá provavelmente o efeito contrário, aumentando significativamente o número de feminicídios. Concordamos com Marisa Sanematsu, do Instituto Patrícia Galvão, quando assevera que:
“Anunciado como uma medida para dar mais segurança e proporcionar um meio de defesa para a população diante da escalada da violência no país, o decreto permite que cada cidadão tenha até quatro armas e munição dentro de casa ou de estabelecimento comercial. Pode parecer óbvio, mas é importante lembrar que inúmeros estudos nacionais e internacionais ‘levam à conclusão inequívoca de que uma maior quantidade de armas em circulação está associada a uma maior incidência de homicídios cometidos com armas de fogo’, afirmam dezenas de pesquisadores”.
Do ponto de vista preventivo, a agenda de combate ao feminicídio deve contemplar: a valorização e desenvolvimento de políticas públicas para a efetivação da Lei Maria da Penha e a elaboração de estatística para possibilitar o desenho da política pública. O feminicídio deve ocupar as arenas na mídia e na política, de forma adequada, não machista e sem culpar a vítima. O decreto do armamento anda na contramão das melhores pesquisas mundiais de combate à violência, sendo imprescindível um maior debate a respeito desse assunto pela sociedade e pelos representantes da população.
No que diz respeito ao aspecto punitivo, é imprescindível que a Lei do Feminicídio seja aplicada com efetividade. Um instrumento interessante para auxiliar os operadores de Justiça nessa missão são as Diretrizes Nacionais do Feminicídio para investigar, processar e julgar, com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres. Embora os feminicídios sejam um fenômeno mundial, os índices brasileiros nos preocupam, nomear como “feminicídio” já é um começo para chamar a atenção deste fenômeno, mas precisamos avançar muito mais.
Fabiana Paes é promotora de Justiça do MP-SP, especializada em Violência Doméstica e Familiar, mestre em Direitos Humanos e Justiça Social pela University of New South Wales (Austrália) e pós-graduada em Direito pela Universidade de Buenos Aires (Argentina). Vice-presidente da seção paulista da Associação Brasileira das Mulheres de Carreiras Jurídicas (ABMCJ-SP), presidente da Comissão de Trabalho de Saúde Reprodutiva da International Federation of Women in Legal Careers (FIFCJ) e associada do Movimento do Ministério Público Democrático.