As mulheres brasileiras mudaram, e o Brasil mudou. Essas poderiam ser as sínteses dos cinco anos e meio em que acompanhei as diferentes movimentações em torno dos direitos humanos das mulheres no Brasil como representante da ONU Mulheres no país. Ao longo desse período, mulheres feministas e ativistas dos diferentes movimentos de mulheres – negras, indígenas, rurais, jovens, lésbicas, bissexuais, transexuais e transgêneros tomaram as ruas e as redes. Estão sempre ativas diante das circunstâncias e das ameaças aos direitos adquiridos.
(Folha de S.Paulo, 19/03/2019 – acesse no site de origem)
Não houve tema, questão, movimentação política ou privada em que as mulheres, na sua diversidade, não tenham colocado suas vozes coletivas e incidido sobre os fatos e acontecimentos. É importante que se reconheça: as mulheres brasileiras são sujeitas cada vez mais públicas, intensas e atentas à sua emancipação. Elas querem mudar o Brasil pela inclusão de seus direitos e participar ativamente das decisões da vida pública.
Quando cheguei ao Brasil, no ano de 2013, vi um país que se destacava na região com as políticas para as mulheres e as políticas sociais focalizadas e distributivas, que mostravam ao mundo a viabilidade da relação direta entre desenvolvimento econômico e desenvolvimento social. As conferências e os planos nacionais de políticas para as mulheres evidenciaram a institucionalização de compromissos reivindicados desde a 1ª Conferência Mundial da Mulher, realizada em 1975, até a Plataforma e Plano de Ação de Pequim, de 1995, mediante as 12 áreas de preocupação para a garantia dos direitos humanos das mulheres.
Uma das primeiras impressões que tive ao chegar ao Brasil era a surpresa de pouco se falar de que o país Brasil respondia por 40% das mortes violentas de mulheres. Nesse período de cinco anos, observamos como o tema foi sendo assumido pelo poder público e obteve notoriedade social. A cooperação técnica com o governo brasileiro propiciou fortalecer a disseminação de boas práticas e intercâmbios entre o Brasil e países do Sul, desenvolver ações para eliminar desigualdades em empresas públicas e privadas por meio do Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça e incidir em favor das políticas em fóruns intergovernamentais, a exemplo da Comissão da ONU sobre a Situação das Mulheres, Conferência Regional da Mulher e Reunião de Ministras e Altas Autoridades do Mercosul e da Comunidade de Países de Língua Portuguesa.
A ONU Mulheres teve a possibilidade de colaboração estreita nas políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres – dos aprimoramentos na Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 ao apoio técnico ao Programa Mulher Viver Sem Violência, as Casas da Mulher Brasileira, entre outros. Desenvolvemos campanhas públicas, inclusive no carnaval, a maior festa brasileira, para dizer em alto e bom som que as mulheres têm o direito de aproveitar todos os espaços, eventos e ambientes sem violência machista.
A ONU Mulheres aportou tecnicamente ao processo de elaboração das Diretrizes Nacionais sobre Feminicídio para investigar, processar e julgar as mortes violentas de mulheres com perspectiva de gênero em apoio à lei de tipificação do feminicídio como qualificadora do assassinato de mulheres, esta decorrente do obstinado trabalho da Bancada Feminina em conjunto com a Secretaria de Políticas para as Mulheres para investigar a omissão do poder público na implementação da Lei Maria da Penha. Acompanhamos o fortalecimento de senadoras e deputadas federais no Congresso Nacional, de diferentes siglas partidárias, atuarem em conjunto em favor dos direitos humanos das mulheres.
O programa da ONU Mulheres no Brasil nas quatro áreas – liderança e participação política das mulheres, governança para igualdade de gênero, empoderamento econômico, prevenção e eliminação da violência, paz e segurança e emergências humanitárias –, foi adaptado à realidade nacional. E os movimentos de mulheres e feministas foram determinantes nas interlocuções com o Grupo Assessor da Sociedade Civil Brasil da ONU Mulheres, constituído em dois ciclos de mandatos de renovação, além de outros mecanismos compostos para o tratamento adequado das demandas das mulheres.
São exemplos o grupo Voz das Mulheres Indígenas, que elaborou pauta nacional a partir das demandas de 282 mulheres de 104 povos indígenas; o Comitê Nacional Impulsor Brasil ElesPorElas – HeForShe, composto pela sociedade civil, governos, empresas, universidades e mídia para fazer avançar o engajamento dos homens com a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres; e o Comitê Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030 para atendimento adequado das demandas das afro-brasileiras nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e na Década Internacional de Afrodescendentes a partir do trabalho da ONU Mulheres e de agências das Nações Unidas no país.
Os dois últimos ciclos eleitorais demonstraram como gestoras e gestores, legisladoras e legisladores podem fazer avançar as políticas para as mulheres na administração municipal, estadual e federal e nos parlamentos. E, novamente, tivemos sinalizações importantes da sociedade brasileira: 75% da população quer prioridade para políticas de promoção da igualdade de gênero nas cidades e 8 em cada 10 mulheres querem municípios mais igualitários, conforme dados da pesquisa Ibope/ONU Mulheres de 2016.
Em atenção a essa demanda social, nas eleições 2016, a ONU Mulheres e parcerias lançaram a iniciativa Cidade 50-50: Todas e todos pela igualdade, para compromisso público de candidatas e candidatos com os direitos das mulheres no marco dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Nas eleições 2018, ouvimos novamente as vozes das mulheres e dos homens: 81% de brasileiros e brasileiras disseram querer políticas federais de promoção à igualdade e 77% avaliam que deveria ser obrigatório que os parlamentos em todos os níveis tivessem composição paritária, ou seja, correspondência equitativa entre homens e mulheres. Foi a vez de Brasil 50-50: Todas e Todos pela Igualdade reunir esses propósitos e traçar um caminho a ser percorrido pelo país na direção do empoderamento das mulheres e da igualdade de gênero.
Crise sanitária e humanitária se apresentaram de modo diferenciado no Brasil. A primeira relacionada ao vírus zika, em que os movimentos de mulheres e feministas foram determinantes para a resposta adequada das Nações Unidas na cooperação com o Brasil por meio da Sala de Situação sobre Zika e Direitos das Mulheres como foco no respeito aos direitos sexuais e direitos reprodutivos.
Em 2018, a ONU Mulheres Brasil inaugurou sua atuação no país frente à crise humanitária que vulnerabiliza meninas e mulheres migrantes, refugiadas e solicitantes de asilo vindas da Venezuela em trabalho coordenado com outras agências do Sistema das Nações Unidas. Na área da saúde, acompanhamos a decisão pioneira do Comitê de Acompanhamento e Monitoramento da CEDAW – Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres no caso Alyne Pimentel, mulher negra vítima falta de negligência de saúde no período gestacional e implementação das recomendações pelo governo brasileiro sob a liderança da Secretaria de Políticas para as Mulheres.
Na área de empoderamento econômico, a ONU Mulheres foi uma das instituições a apoiar a participação das trabalhadoras domésticas em fóruns internacionais e as conquistas históricas de ratificação do Brasil à Convenção n°189 sobre as trabalhadoras e os trabalhadores domésticos, no ano de 2018, e a isonomia trabalhista por meio de emenda constitucional no ano de 2015.
O setor privado passou a ser um agente impulsor do empoderamento econômico das mulheres, como a ONU Mulheres e o Pacto Global verificam por meio da adesão de 198 empresas aos Princípios de Empoderamento das Mulheres, que torna o Brasil o terceiro no mundo em ranking das duas nessa área. Tem muito de Brasil também no programa Ganha-Ganha: Igualdade de Gênero Significa Bons Negócios por meio da parceria inédita entre a União Europeia, Organização Internacional do Trabalho e ONU Mulheres na Argentina, Brasil, Chile, Costa Rica, Jamaica e Uruguai. Este programa, que está sendo desenvolvido até 2020, tem foco no intercâmbio de oportunidades de negócios entre empresas e empreendedoras a partir da experiência brasileira de parceria com o setor privado nos Princípios de Empoderamento das Mulheres.
O programa Uma Vitória Leva à Outra, parceria entre a ONU Mulheres e o Comitê Olímpico Internacional, continua após a Rio 2016 preparando meninas e adolescentes para empoderamento de gênero por meio do esporte e habilidades para a vida. A igualdade de gênero na escola ganhou novos instrumentos com o currículo O Valente não é Violento, o qual passou a ser incorporado por escolas estaduais e municipais do Nordeste.
Tudo isso é para dizer que as mulheres brasileiras sabem o que querem, onde querem chegar e quem são as e os agentes responsáveis e decisivos para as transformações que a humanidade precisa para a eliminação do patriarcado e das desigualdades com base em gênero, raça, etnia, territorialidade, geração, orientação sexual, acessibilidade e opressões que impedem as mulheres de viver a vida na plenitude dos direitos humanos e do desenvolvimento com equidade. As mudanças necessárias são profundas. As mulheres sabem as rotas. Estão preparadas e percebem a amplitude de que direitos precisam ser defendidos e, para isso, é preciso estar na vanguarda dos direitos humanos para que nenhuma delas fique para trás.
No final de fevereiro, conclui a minha missão à frente da ONU Mulheres Brasil com muita alegria pelo caminho percorrido com as mulheres brasileiras. Levo em minha bagagem mais conhecimento do aprendizado e a energia necessária para exercer o cargo de presidenta do Instituto Nacional das Mulheres do México (Inmujeres), o equivalente à ministra das Mulheres, com o propósito de construir a igualdade de gênero substantiva para todas as mulheres. Seguimos juntas por um planeta 50-50 com paridade de gênero e empoderamento de todas as mulheres.
Nadine Gasman foi representante da ONU Mulheres Brasil, no período 2013 a 2019. Atualmente, é presidenta do Instituto Nacional das Mulheres do México (Inmujeres). É médica, mestra em Saúde Pública pela Universidade de Harvard e doutora em Gerenciamento e Políticas da Saúde pela Universidade Johns Hopkins.