Elisandra Carolina dos Santos, 37 anos, foi atingida por um tiro quando tinha 17 anos, disparado por um ex-namorado. Ela, que não anda há 20 anos, teme que facilitar acesso às armas aumente feminicídios
(El País, 13/04/2019 – acesse no site de origem)
Elisandra Carolina dos Santos carrega no corpo e na alma as cicatrizes provocadas por um “cidadão de bem”. Era domingo, 23 de abril de 2000, 8 horas da manhã. Ela, então com 17 anos, dormia com o namorado na casa da família em Viamão, periferia de Porto Alegre, quando foi acordada por alguém batendo na porta. Ao se aproximar para abrir, previu o pior: “Pela silhueta na porta de vidro eu já percebi quem era”, conta. O ex-namorado J. A.*, 15, queria reatar o relacionamento, terminado semanas antes. “Levei ele para o quintal para conversar e falei pra ele começar vida nova e ir embora. Foi aí que ele tirou uma arma da mochila”, diz Elisandra.
A jovem se desespera, mas consegue convencer seu ex a partir. Assim que ele dá as costas ela corre para dentro de casa e tranca a porta. “Lembrei que a janela do quarto dos meus pais, que estavam viajando, tinha ficado aberta também e fui fechar”, diz. Enquanto puxava a veneziana, J.A. aparece do lado de fora e coloca o revólver em sua cabeça.
Marcelo, então namorado da jovem, acordou e foi ver o que estava acontecendo no quarto ao lado. Ao vê-lo, J.A. afirma: “Eu vou entrar aí dentro e vou matar vocês dois”. Elisandra se vira e corre em direção ao namorado. No entanto, conseguiu dar apenas alguns passos antes de ser alvejada: o tiro entrou pelo lado direito das costas, na base da coluna cervical, estraçalhou a vértebra T-2, e saiu pelo lado esquerdo do pescoço. “Quando eu dei as costas e corri ele mirou na minha cabeça e atirou. Perdi o movimento na hora. Ainda vi o Marcelo a menos de um metro de mim, mas não consegui falar nada. Quando caí eu fechei os olhos e não escutei mais nada”, lembra.
Ela foi levada para um pronto socorro onde passou por cirurgia de emergência para estabilizar a coluna e limpar a medula, repleta de fragmentos de metal, osso, pele e cabelo. “Só depois de 15 dias eu fiquei sabendo que, depois de atirar em mim, meu ex entrou em casa pela janela e deu dois tiros no Marcelo, um na testa e outro no peito”, diz. “Meu namorado morreu na hora”. Depois de atacar o casal, J. A. foi até o quintal e se matou com um tiro na cabeça. “Eu sofri por muitos anos me sentindo culpada pelo que aconteceu com o Marcelo”, diz. “Demorou até eu perceber que tinha sido vítima, e não culpada de nada”.
Hoje com 37 anos, Elisandra depende de uma cadeira de rodas para se locomover após sofrer a lesão na medula. Os movimentos e a sensibilidade nos braços foram voltando gradativamente após a tentativa de feminicídio. Ela critica a política de flexibilização do acesso à posse de armas de fogo pelo Governo do presidente Jair Bolsonaro. “Sabemos que a sociedade é violenta e machista. Havendo um facilitador, como uma arma em casa, mais mulheres vão morrer”, lamenta. “Facilitar a posse de arma é quase como dar o direito para que os homens continuem matando as mulheres”, diz. A preocupação de Elisandra é partilhada por coletivos feministas que trabalham com vítimas de violência machista.
De acordo com levantamento feito pelo doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo Jefferson Nascimento, que realiza um mapa dos feminicídios noticiados pela imprensa —consumados e tentados— até 29 de março, eram “258 feminicídios consumados e 177 tentados em 310 cidades brasileiras”. O levantamento é feito tendo como fonte notícias de veículos do país, então o número pode ser subdimensionado. Outra pesquisa, esta feita pelo Observatório da Mulher contra a Violência do Senado a pedido da Agência Patrícia Galvão (que o publicou neste sábado no EL PAÍS), revela um aumento das taxas de homicídios de mulheres por armas de fogo em 17 das 27 unidades federativas entre 2006 e 2016, mesmo antes da flexibilização do acesso às armas.
220 MULHERES MORTAS EM 2019: São pelo menos 365 casos de #feminicídio (220 consumados 🔴, 145 tentados 🔵) em 262 cidades brasileiras, em todas as 27 UFs (até 12/Março)
Mapa: https://t.co/4PPOfwx896
Fontes: https://t.co/faL7mc87FN pic.twitter.com/yyXP4mPbDF— Jeff Nascimento (@jnascim) 13 de março de 2019
“Cidadão de bem”
Segundo Elisandra, J.A. correspondia à figura difundida no discurso de muitos, do “cidadão de bem”. “Ele estudava e trabalhava, não bebia e não usava drogas. Posso dizer que um ‘cidadão de bem’ tentou me matar, me deixou paraplégica, matou meu namorado e em seguida cometeu suicídio”, diz. A manhã do crime não foi a primeira vez que Elisandra viu o revólver calibre 38 na mão de J. A. Meses antes, quando ainda estavam juntos, ele revelou que escondera a arma no quarto dos pais, que estavam viajando. “Ele empurrou um pedaço do forro do teto e tirou de lá uma caixa. Abriu e lá estava a arma”, diz. J. A. afirmou que a arma era legalizada: “’É do meu pai, ele é caçador, por isso tem a arma. Aprendi a atirar com 7 anos, e eu sei como usar’, ele me disse”.
“Como parar com isso? Como fazer que mais mulheres não morram todos os dias? Me pergunto isso sempre”, afirma Elisandra, que atualmente milita em coletivos e grupos feministas e voltados para pessoas com deficiência. “Que tipo de homens estamos criando, que matam suas companheiras ou ex-companheiras… Tenho um filho homem, e jamais deixaria ele ter uma arma. Não são as armas que matam, são os homens mesmo. Mas se você adiciona um facilitador, como uma pistola ou revólver, o resultado é mais mortes”.
Gil Alessi