Foi desarquivada em fevereiro deste ano a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 29 de 2015, que propõe alterar o artigo 5º para incluir a expressão “inviolabilidade do direito à vida, desde a concepção”. Na justificativa do texto proposto por seu autor, o à época senador Magno Malta afirmou que a emenda “não altera absolutamente nada no artigo 5º”. É verdade.
(Jota, 07/05/2019 – acesse no site de origem)
A inviolabilidade dos direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade já está prevista no caput do artigo 5º desde 1988. Eles formam o eixo da proteção a direitos fundamentais no país, o que demanda que sejam, sempre, lidos de forma conjunta e harmônica. A proteção é clara e integral.
Se já é assim, por que se propõe destacar início temporal para a proteção de um direito, inexistente para os demais? Invioláveis, todos são, sem marco de início ou fim. Está escrito, e isso jamais significou que algum deles, como à liberdade ou à propriedade, fosse absoluto. Também não significa que exijam proteção pelo uso do direito penal. Se a única variável do debate fosse a estrita lógica jurídica, a conversa poderia acabar por aqui: com emenda ou sem emenda, a interpretação segue igual.
Mas o que se pretende provocar com a PEC é uma confusão moral sobre o sentido da inviolabilidade quando acompanhado do seu marco inicial, como se o direito à vida passasse a ser particularmente inviolável nos estágios iniciais de desenvolvimento da biologia humana. A leitura está incorreta. Se fosse a interpretação prevalecente, poderia significar até mesmo a proibição de pesquisas com células-tronco ou da fertilização in vitro. A esperança depositada por milhares de pessoas com doenças degenerativas no avanço da ciência ou o sonho de muitas famílias que não podem gerar filhos sem a ajuda da medicina reprodutiva estariam em xeque.
O principal alvo da PEC, sabemos, é ainda outro: confundir sobre o direito à interrupção da gestação no país. Da propositura em 2015 ao desarquivamento em 2019, os argumentos de seus defensores se transmutaram. O parecer da senadora Selma Arruda, orientando a aprovação da emenda, afirma que o objetivo da alteração é também proteger a saúde das mulheres ao proibir o aborto. Tenta explicar como, e falha.
Afirma que a experiência do aborto supostamente causaria o aumento de suicídios, com base em “uma pesquisa realizada no Reino Unido” impossível de se recuperar — o link do documento está quebrado. Relata que também causaria “aumento de depressão, transtornos mentais e ansiedade, e tantas outras sequelas com impacto físico, emocional e mental.” Para essas afirmações, não há qualquer referência. Em seguida, reproduz o texto de um artigo de opinião em jornal português que sustenta a existência da “síndrome pós-aborto”, que inclusive causaria “aumento em 30% do risco de câncer da mama”. Uma informação tão importante como essa precisa ser checada e conhecida. Mas não há qualquer referência a estudo científico. Nem poderia haver: os supostos estudos sobre o tema foram refutados.
Na literatura especializada, a suposta síndrome é chamada de mito, e são reveladas as inconsistências metodológicas e erros interpretativos dos estudos que a sustentariam — ignoram outras causas, desconsideram condicionantes sociais ou simplesmente apresentam conclusões desconectadas dos dados. Estudos localizados mostram o fenômeno contrário: uma análise comparativa feita nos Estados Unidos entre mulheres que realizaram um aborto induzido e mulheres que tiveram seus pedidos de aborto negados mostrou que aquelas que tiveram o pedido negado apresentaram maior risco de efeitos psicológicos adversos iniciais. Negar o aborto àquelas que dele necessitam vulnerabiliza a saúde das mulheres.
Com relação à saúde física, os dados também são claros: uma injeção de penicilina, corriqueiro antibiótico utilizado para tratamento de dores de garganta, sinusite ou pneumonia, é mais arriscada que um procedimento de aborto legal. A Organização Mundial da Saúde classifica o risco de morte por aborto realizado em condições adequadas como “insignificante”. A lei penal sustentada pelos defensores da PEC, no entanto, mata. A cada dois dias, uma mulher morre por aborto clandestino e inseguro no Brasil. Não é em nome delas que falam os senadores.
A meta de “proteger as duas vidas”, citada pela senadora Selma, segue falhando também porque ameaçar as mulheres tampouco reduz o número de abortos. Apesar de termos uma das leis mais restritivas do mundo, seguimos testemunhando 500 mil abortos a cada ano no Brasil, quase um por minuto. Países que descriminalizaram o procedimento contam outra história: na França, houve redução de mais de 24% no número de abortos desde a mudança da lei em 1975 e na Romênia, a queda foi de 94% entre 1990 e 2010. O Canadá descobriu que retirar qualquer punição ao aborto e focar em medidas positivas de proteção à maternidade e à infância era a medida eficaz: assim reduz o número de abortos e dá suporte concreto a futuras mães.
O que sustenta a proposta da PEC 29/2015 não é, portanto, nenhuma evidência de que poderá ser um instrumento de melhor proteção à vida. Sua pretensão de funcionar como um suporte à permanência da criminalização do aborto não passa de má interpretação jurídica e ideologia. Não há problema em se ter ideologia: todos temos e são nossas lentes para ver o mundo. O problema é quando distorcem a realidade e impedem o exercício da dúvida.
Se queremos proteger vidas, precisamos levar o real a sério. Os fatos são claros: para que abortos sejam raros e se proteja os direitos à vida e à saúde, é preciso trabalhar com as mulheres, e não contra elas.
Gabriela Rondon é pesquisadora na Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero