Medida do Ministério da Saúde, de abolir uso da expressão, é criticada pelo Ministério Público Federal e pela Comissão de Mulheres da OAB
(O Globo, 09/05/2019 – acesse no site de origem)
O Ministério da Saúde decidiu abolir o uso do termo“violência obstétrica”, provocando reações do Ministério Público Federal (MPF) e de entidades ligadas a saúde e a direitos de mulheres. Segundo o governo, em despacho publicado na última sexta-feira, dia 3, a medida se justifica porque “tanto o profissional de saúde quanto os de outras áreas não tem a intencionalidade de prejudicar ou causar dano”.
O MPF recomendou ao Ministério da Saúde “que atue contra a violência obstétrica em vez de proibir o uso do termo”. O órgão disse, ainda, que se trata de “uma expressão já consagrada em documentos científicos, legais e empregada comumente pela sociedade civil”.
Em nota oficial, a Comissão OAB Mulher, da OAB-RJ, também repudiou a decisão do Ministério da Saúde de abolir o termo:
“A OAB Mulher se solidariza com as vítimas de violência obstétrica e reitera o repúdio a qualquer ato de violência de gênero, permanecendo em sua missão de promover a conscientização sobre o assunto, além de ações para prevenção e enfrentamento desta dura realidade.”
O coletivo nacional de advogadas Nascer Direito foi mais um que se manifestou contra a decisão de abolir o termo “reconhecido mundialmente”.
CELINA propôs a duas médicas obstetras, com visões discordantes, as mesmas seis perguntas sobre violência obstétrica.
Leia abaixo o que cada uma delas tem a dizer sobre o tema.
‘Esse termo é incorreto’
Célia Regina da Silva é ginecologista e obstetra e primeira vice-presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj).
O GLOBO: O termo violência obstétrica é reconhecido pela OMS e usado em diversos países. Há, inclusive, legislações baseadas nele como na Argentina. Por que o Brasil vai deixar de usá-lo? Quais os possíveis impactos?
Célia Regina da Silva: O Brasil vai deixar de usar porque, quando se fala em violência obstétrica, isso é muito voltado para a ação do médico obstetra. Na realidade, esse termo é incorreto. Por quê? Quando pensamos na possibilidade da violência obstétrica, eu vejo como uma violência do sistema de saúde atual, em que não há qualidade para atender a mulher da maneira devida, e não algo voltado para o obstetra, que, hoje, dentro do nosso sistema de saúde, sem qualidade de atendimento, muitas vezes sofre tanto quanto a parturiente.
Há uma pressão da classe médica contra o uso do termo violência obstétrica?
Sim. Porque é um mau uso do termo violência obstétrica. Essa atitude que nós tivemos no Ministério da Saúde, e que nós aqui no Cremerj apoiamos, é exatamente tirar a visão de que a violência é do médico obstetra. Ela é, sim, uma violência que a mulher vivencia pelo sistema de saúde inadequado.
A OMS não recomenda procedimentos como Manobra de Kristeller, episiotomia e a obrigação de ficar em posições desconfortáveis durante o trabalho de parto. Isso ainda acontece no Brasil? Por quê?
A OMS não recomenda procedimentos como via de regra, de modo geral, a manobra de Kristeller, episiotomia e ficar em determinadas posições no parto. Porque, realmente, num parto que é o mais natural possível, quanto menos intervenção, melhor. Porém, de tudo o que foi citado, cabe ao obstetra a decisão de utilizar ou não. São manobras que podem ser adotadas, e que constam nos tratados como manobras que podem ajudar a mulher em determinadas situações, mas em caso de exceção. O importante é que a mulher participe passo a passo do seu parto, sabendo tudo que vai ocorrer. Por exemplo, no caso de uma mulher que está com um período expulsivo difícil, em que há necessidade da utilização de fórceps, a realização da episiotomia é necessária para que a manobra seja feita da melhor maneira, sem danos para a mulher e para o concepto. Essa mulher tem que ser informada de tudo que ela vai passar, se necessário for.
É comum ouvirmos relatos de agressões, xingamentos e ironias durante o parto, como a famosa frase “na hora de fazer estava bom, né?” Há poucas semanas um médico foi filmado dando tapas na gestante. Isso não é violência obstétrica?
Sem comentários. Sem dúvida, isso não é atitude digna de um médico. É um médico que merece as punições necessárias dentro do código de ética profissional.
Muita gente fala sobre o “ponto do marido”. Isso existe?
Isso são opiniões de leigos, não existem dados científicos que suportem esse “ponto do marido”.
Há relatos de falta de empatia com a gestante e de procedimentos invasivos na saúde particular e pública. Como a mulher deve agir para se proteger? Caso ocorra, a quem pode relatar?
O importante para essa mulher é a questão do pré-natal, seja no posto de saúde, na saúde de família, nos consultórios privados. A relação médico-paciente tem que existir da melhor forma possível, se estabelecendo as orientações e informações muito claras para essa mulher, numa linguagem que ela entenda. A mulher tem que ser protagonista do seu parto, tem que participar passo a passo desse momento muito especial. A questão toda é: não gostou da relação médico-paciente, não a mantenha. Mas, caso aconteça qualquer violação dessa relação, ela tem, sim, que fazer uma denúncia junto ao órgão, que é o Conselho Regional de Medicina, e no hospital onde foi assistida.
‘Proibir o termo é perpetuar a desinformação’
Gabriela Andrews é ginecologista e obstetra, integrante da equipe Parto Ecológico, grupo multidisciplinar que presta assistência humanizada ao nascimento.
O GLOBO: O termo violência obstétrica é reconhecido pela OMS e usado em diversos países. Há, inclusive, legislações baseadas nele como na Argentina. Por que o Brasil vai deixar de usá-lo? Quais os possíveis impactos?
Gabriela Andrews: O termo violência obstétrica está consolidado em literatura científica. Não há como deixar de usá-lo. Abolir o termo dos manuais e protocolos do Ministério da Saúde, infelizmente, não resolverá a questão. A consequência de retirar ou proibir o termo é perpetuar a desinformação. Muitas mulheres que já sofreram esse tipo de violência não são ao menos capazes de identificar que, de fato, foram vítimas de abuso durante a sua assistência. Retirar o termo violência obstétrica é como não reconhecer que o problema existe ou, aparentemente, tentar ocultá-lo.
Há uma pressão da classe médica contra o uso do termo violência obstétrica?
Certamente, sim. Principalmente por parte dos médicos que não são capazes de criar uma boa relação médico-paciente e que não baseiam suas condutas em evidências científicas. Assim, eles se sentem coagidos pelas mulheres que, muitas vezes, questionam condutas médicas obsoletas e ultrapassadas.
A OMS não recomenda procedimentos como Manobra de Kristeller, episiotomia e a obrigação de ficar em posições desconfortáveis durante o trabalho de parto. Isso ainda acontece no Brasil? Por quê?
Atualmente, esses procedimentos são reconhecidamente prejudiciais para as mulheres e para os fetos. Entretanto, foram realizados por muitos anos sem serem questionados. Apenas quando a medicina baseada em evidências classificou essas práticas como não recomendadas é que ficou evidente para os médicos que não deveriam ser adotadas em suas rotinas. Mas muitos médicos que as aprenderam em sua formação se sentem inseguros de abandoná-las e há aqueles que não se atualizam nem sabem que não são mais recomendadas.
É comum ouvirmos relatos de agressões, xingamentos e ironias durante o parto, como a famosa frase “na hora de fazer estava bom, né?” Há poucas semanas um médico foi filmado dando tapas na gestante. Isso não é violência obstétrica?
Sim. É violência obstétrica, violência de gênero e violência contra a mulher. Não há como negar que ela existe.
Muita gente fala sobre o “ponto do marido”. Isso existe?
Existe. É um ponto “excedente”, realizado após a sutura do períneo, para que a abertura da vagina da mulher fique estreita. Teoricamente, isso seria feito para satisfazer mais o parceiro no momento da penetração.
Há relatos de falta de empatia com a gestante e de procedimentos invasivos na saúde particular e pública. Como a mulher deve agir para se proteger? Caso ocorra, a quem pode relatar?
A mulher que se percebe vítima de violência obstétrica tem o direito de denunciar na própria unidade de saúde em que foi atendida ou entrar na Justiça.
Constança Tatsch