Dados inéditos publicados pela Gênero e Número em parceria com a agência Fiquem Sabendo mostram que lei da importunação sexual, sancionada em setembro, já motivou o registro de 223 ocorrências no estado de São Paulo
(Gênero e Número, 13/06/2019 – acesse no site de origem)
“Relaxa, você vai ficar famosa.” Foi com esta frase que o agressor de Bruna**, de 22 anos, ameaçou divulgar a seus amigos, familiares e na internet fotos íntimas da moça no início deste ano. Eles se conheceram pela rede, e depois de três semanas de conversas de texto e chamadas em vídeo, Bruna enviou fotos íntimas. Foi a chave para começarem a conversar sobre sexo. Mas o que ela pensava ser mais um passo em direção a um relacionamento interessante se tornou um pesadelo. Em posse das fotos, o homem ameaçou divulgá-las no Facebook caso ela não se relacionasse com ele.
“A partir daí, eu fiquei com muito medo. Tentei apagar as fotos pela conversa, mas não consegui. A única solução foi bloqueá-lo, só que ele tinha outro número de telefone, voltou a falar comigo e fez várias ameaças”, relembra a vítima. Com medo de que o agressor cumprisse o que prometeu, Bruna registrou um boletim de ocorrência e buscou suporte em um grupo da internet. Ali, ela descobriu que o mesmo homem já havia feito outras vítimas em diversos estados, inclusive uma jovem de 14 anos — que preferiu não dar entrevistas. Bruna foi a única que levou seu caso à polícia.
Casos como o de Bruna não são incomuns. Desde que a lei da importunação sexual (13.718/2018) foi sancionada, houve 223 registros com base no artigo 218-C do Código Penal somente no estado de São Paulo, o que significa em média três registros a cada dois dias. É o caso de Bruna e também de Najila Trindade, de 26 anos, que teve imagens divulgadas há poucos dias pelo jogador Neymar, após denunciá-lo por estupro. Os dados divulgados com exclusividade pela Gênero e Número foram obtidos via Lei de Acesso à Informação com a Secretaria de Segurança de São Paulo, a pedido da Fiquem Sabendo, agência de dados públicos independente.
O artigo 218-C determina de um a cinco anos de prisão para quem “oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio – inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia”.
O texto define que haverá aumento de pena se o agressor tiver mantido relação íntima com a vítima, e se a divulgação tiver motivo de vingança ou humilhação, como no caso de Bruna. Em São Paulo, 22% das denúncias se enquadram no primeiro caso.
Hiperotização do corpo jovem
Em outubro de 2018, primeiro mês da análise, somente 16 casos tiveram como vítimas jovens com até 23 anos. Mas até março, esta se tornou a faixa etária principal entre as vítimas: 41% delas têm entre cinco e 23 anos de idade. Entre estas, mais da metade tinham até 18 anos.
A maior parte dos agressores de vítimas jovens também é jovem, mas há casos de homens maiores de idade que divulgam fotos de vítimas com menos de 18 anos. Foram ao menos três registros deste tipo, e em um deles a vítima era uma criança de 10 anos e o autor, um homem de 54. Neste caso, ele foi autuado em flagrante.
Uma busca rápida em um dos principais sites de pornografia em atividade no Brasil, o Xvideos, mostra que a procura pelo termo “caiu na net + novinha” retorna 50 mil resultados. Sem o adicional que remete à pouca idade da mulher envolvida, são 34 mil resultados. “Cair na net” é o termo popularmente usado para a divulgação de fotos íntimas ou vídeos de sexo sem que uma das partes, geralmente a mulher, tenha conhecimento.
A psicóloga Elânia Francisca, educadora em gênero e sexualidade, destaca um “adultocentrismo”, que prioriza o prazer do adulto sem analisar os impactos de tamanha exposição para uma adolescente, por exemplo.
“Há uma relação de poder sobre o corpo da adolescente. A gente vive numa sociedade adultocêntrica, em que o homem branco, rico e cisgênero é o padrão, e que entende que o desejo do adulto tem que ser satisfeito ali, no momento. Por isso existe uma busca tão grande por corpos jovens. A sociedade hipererotiza esses corpos. Quando uma adolescente envia uma foto para outro jovem, muitas vezes ele não tem a ideia de consentimento. Por isso, vai distribuir e, inclusive, receber a ajuda de homens adultos para propagar essas imagens”, analisa Francisca.
Como educadora, Francisca explica que o primeiro passo após uma menina relatar que está sendo vítima deste crime é a escuta ativa, isto é, entender o que ela quer. Eventualmente, vale encaminhá-la a um psicólogo, sem deixar de dar suporte no momento em que for necessário contar à família.
É importante ressaltar [para a família] que o problema é o agressor, que quem divulga é o responsável e não a vítima, e que naquele momento ela só que ser cuidada.
— Elânia Francisca, psicóloga e educadora em gênero e sexualidade
Bruna contou que os amigos a apoiam mais que a família: “Para minha família, eu sou a errada, eu que procurei, eu que fui a ‘safada’”, lamenta. Mas ao mesmo tempo, ela analisa que também falta maior entendimento da sociedade sobre este crime: “Eu acho que se minha família entendesse a gravidade do caso, talvez eu tivesse apoio”.
Mais importante que a lei, o entendimento
Elânia Francisca ressalta a dificuldade em compreender o consentimento como principal problema dos crimes enquadrados no artigo 218-C. Para ela, o status entre homens e meninos sobre quem consegue “pegar mais mulher” é fundamental para compreender por que fotos e vídeos íntimos são divulgados: “Os homens acabam ensinando direta e indiretamente para os meninos que ser homem não é só ‘pegar mulher’: é provar que pegou. A prova vem com a exposição. Falar que ‘pegou’ 10 pessoas não basta. Tem que mostrar. Quando o menino troca nudes, a primeira coisa que ele pensa é em mandar para os ‘caras’, porque o prazer dele também está em conseguir provar e não só em viver o ato sexual”, analisa.
Os homens acabam ensinando direta e indiretamente para os meninos que ser homem não é só ‘pegar mulher’: é provar que pegou.
— Elânia Francisca, psicóloga e educadora em gênero e sexualidade
A advogada Maira Zapater, doutora em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP) e professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) , destaca que há, culturalmente, valores e crenças que levam à ideia geral de autorização desses corpos.
“Mulheres que exercem sua sexualidade tendem a ser vistas como menos dignas de valor, como alguém que não merece ter sua individualidade respeitada, como alguém que mente. Se cair na rede, é muito provável que haja comentários dizendo ‘mas não estava transando? não quis filmar?’, como se fosse um consentimento para todo o resto, porque a vontade dela não importa”, avalia.
Na análise jurídica da lei e de sua aplicação, Zapater vai além: para a jurista, a legislação não garante a segurança da mulher. “Não adianta reconhecer a violência apenas quando houver registro de crime. A sociedade tem que pensar outras esferas de atuação, como educação sexual e de gênero, por exemplo, que têm muito mais podere de transformação social que simplesmente a lei penal.”
Se cair na rede, é muito provável que haja comentários dizendo ‘mas não estava transando? não quis filmar?’, como se fosse um consentimento para todo o resto, porque a vontade dela não importa.
— Maíra Zapater, advogada, doutora em Direitos Humanos pela USP e professora da FGV
Elânia Francisca compartilha a mesma opinião de Zapater: “Não é problema enviar nude. O grande problema é quem recebe não entender que aquela mensagem foi direcionada unicamente para uma pessoa”.
Caso Neymar e a disputa de narrativas
Talvez por desconhecer o Código Penal, o jogador Neymar Jr., de 27 anos, decidiu expor para os seus 120 milhões de seguidores do Instagram, na madrugada do dia 2 de junho, uma extensa conversa íntima com a modelo Najila Trindade, de 26 anos. A atitude do camisa 10 do Paris Saint-Germain foi, segundo ele, uma resposta à acusação feita por Najila. Enquanto ela o acusava de estupro, ele decidiu apresentar a conversa íntima como prova de consentimento das relações sexuais entre ambos enquanto ela esteve em Paris, à convite do jogador.
Antes de publicar o vídeo, Neymar tentou proteger as imagens em que Najila aparece nua, bem como informações como nome e número de celular. Mesmo assim, a Polícia Civil do Rio de Janeiro instaurou inquérito para investigar se a atitude do jogador se enquadra no artigo 218-C. Em depoimento, ele afirmou que “orientou a seus assessores que preservassem as partes íntimas da mulher, mas que alguns trechos acabaram vazando”.
Maíra Zapater afirma que, no seu entendimento profissional, a divulgação do vídeo que contém a troca de mensagens configura crime previsto no artigo 218-C.
“O tipo penal fala em exibir imagens de nudez sem o consentimento da vítima, e a lei não diz que o crime não se configura se a imagem dificultar a identificação da pessoa. Isso não quer dizer que Neymar será condenado por este crime. O que eu estou fazendo é uma análise do que a lei prevê em relação ao que vimos no Instagram. A postagem corresponde com exatidão à descrição legal. Mas para haver a condenação, é preciso esperar todos os aspectos processuais que ainda estão por vir — se é que vai ter processo”, analisa.
Mas a atitude de Neymar pode ter também outras implicações além das legais, segundo a psicóloga Elânia Francisca. Para ela, o fato de Neymar ter muitos fãs, principalmente jovens, pode incentivar e até validar esse comportamento entre outros meninos e homens: “Quando ele divulga sem receio, ensina aos meninos que eles podem fazer o que quiserem”.
As fotos mandadas por Najila a Neymar fizeram com que parte do tribunal da internet rapidamente julgasse: não houve estupro, já que o envio das fotos foi por livre e espontânea vontade (bem como a viagem da modelo a Paris). Seguindo esta parte do senso comum e também fazendo as vezes de juiz, o deputado federal Carlos Jordy (PSL/RJ) protocolou um projeto de lei apelidado de “Neymar da Penha” (PL 3369/2019). A intenção de Jordy é agravar a pena do crime de denunciação caluniosa quando a falsa imputação se tratar de crimes contra a dignidade sexual. O deputado Enéias Reis (PSL/MG) também apresentou um projeto de lei (3375/2019) no mesmo teor. Na justificativa, Reis argumenta que “mulheres esculpidas de má fé” podem atribuir “falsas condutas criminosas a outrem”.
Bruna, a jovem que abre esta reportagem, foi chamada de “vagabunda” pela família, ficou traumatizada com as ameaças de ser exposta na internet, mas afirma que o que passou serviu de “aprendizado” em relação à sua segurança nas redes. Ainda que o inquérito esteja em andamento, ela pode ser vítima a qualquer momento, mas hoje entende que a culpa não é sua: “Na época eu fiquei muito mal e com medo do julgamento das pessoas porque, infelizmente, se a mulher manda fotos íntimas para o homem, no mínimo ela é xingada de ‘piranha’. A sexualidade feminina ainda é tabu e choca muita gente”.
Lola Ferreira é jornalista e colaboradora da Gênero e Número.
*O nome da vítima que deu seu depoimento para esta reportagem é fictício.