“Ainda bem que eu fui, senão acho que teria morrido”. AzMina passou uma semana dentro da casa que abriga vítimas de violência doméstica que correm riscos de vida.
(Revista AzMina, 23/07/20190 – acesse no site de origem)
“Desce aqui que eu quero conversar”. Maria, 23, sabia que, se não descesse, ele subiria no apartamento. Melhor que fosse em público. O namorado a pôs no carro e começou a bater em sua cabeça com o celular, abrindo cortes e fazendo com que o sangue escorresse por seu rosto. A filha de três anos, no banco de trás, assistia a tudo.
“Isso foi na frente do prédio. Ninguém fez nada, como antes ninguém nunca chamou a polícia nem ajudou. Ninguém se metia. E olha que eu gritava, desesperada. Eu e minha filha”, diz Maria.
Aquele domingo de surra podia ter sido mais um de uma sequência que se estendia por três meses. Mas o irmão de Maria insistiu para que fossem ao hospital e à delegacia.
“No dia seguinte, ele [ex-namorado] começou a me procurar como louco e eu achei que ia morrer. Minha cunhada descobriu a casa abrigo e eu pensei: é minha única opção. Ainda bem que fui, senão acho que teria morrido.”
A casa abrigo a que ela se refere é a Casa de Apoio Viva Rachel, um serviço de acolhimento emergencial para mulheres em situação de violência doméstica, que fica na cidade de Caxias do Sul (RS). Com endereço sigiloso, ela é parte das políticas públicas federais para enfrentamento à violência contra a mulher e recebe mulheres que, como Maria, correm risco de vida. No Brasil, existem 70 casas abrigo como essas, segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Passei uma semana dentro da casa abrigo em Caxias do Sul acompanhando a rotina das mulheres que ali são abrigadas e contamos nessa reportagem como locais como esse funcionam.
Isolamento, acolhimento e proteção
Encaminhadas pelo Centro de Referência da Mulher ou pela Delegacia da Mulher, as vítimas podem ficar com seus filhos no abrigo por até três meses. Ali, ficam sem acesso a celular ou internet e não podem sair. Todo o contato com o mundo exterior é mediado pelas profissionais que trabalham na casa.
“Existe um imaginário de que essas casas são como uma prisão”, diz Rita*, a diretora da instituição — como a casa funciona em sigilo, a identidade de todas as funcionárias e acolhidas será preservada nessa reportagem.
Boa parte desse imaginário se deve ao fato dessas casas serem sigilosas e pouco se saber sobre elas. Eu mesma tinha essa visão. Por isso queria há tempos escrever sobre essas casas abrigos que acolhem mulheres e, depois de quase seis meses de negociação com a diretora de uma delas, consegui autorização para passar uma semana dentro da Casa Viva Rachel.
“Quando eu cheguei, imaginava outra coisa. Achava que seria um presídio, sabe?”, conta Maria lembrando do medo que teve ao aceitar ir para a casa.
Ao chegar ali, tive a mesma surpresa que Maria: o lugar não tem nada de assustador. Distante do visual de uma prisão, é uma casa grande, limpa e organizada, com horta e parquinho no quintal e uma ampla sala de jantar. Além de espaços comuns para as mulheres e crianças fazerem atividades ou matar o tempo.
Ainda assim, é um espaço restrito e as mulheres que aceitam ser abrigadas ali não podem passar da porta para a rua. Para se proteger, essas mulheres ficam presas ali, enquanto seus agressores seguem soltos. “É de fato quase um modelo prisional. As abrigadas trazem muito isso: ‘Sou vítima de violência e estou presa aqui, enquanto ele está lá em casa’. É uma medida protetiva, mas ao mesmo tempo tem uma leitura de medida punitiva”, explica Eler Sandra de Oliveira, diretora de Proteção Social de Alta Complexidade de Caxias do Sul.
As soluções que a casa abrigo envolve, como tudo ligado à violência doméstica, são complexas e é um desafio para os profissionais envolvidos encontrar um caminho ideal. “Entendo que precisamos mexer nessa metodologia para que não seja um cárcere”, defende Eler.
A rotina da casa
Do lado de dentro, as mulheres acolhidas contam com uma pequena biblioteca e DVDteca, televisão com canais abertos e brinquedos para as crianças. Além disso, há uma equipe para manter o funcionamento do lugar e atender as mulheres.
Educadoras, que são profissionais com ensino médio completo, acompanham as mulheres e crianças em saídas para hospital, delegacia, juizado e outros serviços que forem necessário, e também organizam atividades dentro da casa. Durante o dia, sempre há duas educadoras juntas na casa e à noite, uma.
Além disso, uma assistente social e uma psicóloga fazem atendimentos individuais, ao lado da coordenadora do abrigo, que também é assistente social, para auxiliar as mulheres no processo de superar a violência e reorganizar a vida para sair do abrigo.
“Recebemos o boletim de ocorrência, a situação das crianças, da escola e fazemos todos os encaminhamentos necessários: para o judiciário, conselho tutelar. Já pedimos medida protetiva, afastamento do lar. Tudo no dia seguinte ao que elas chegam”, conta a diretora da casa.
A rotina da casa tem regras e os horários das refeições são os principais guias. Além de comer juntas, as mulheres têm horários de atividades para elas e para os filhos, para acordar, fazer limpeza, tomar banho e também para os encontros e conversas com a psicóloga e assistente social. Apesar disso, sobra muito tempo livre, que elas preenchem conversando ou vendo televisão.
Para quem fica, recomeço
Para muitas mulheres, como Maria, ficar na casa não é só uma opção de proteção, mas também uma possibilidade de reorganizar para retomar a vida.
“Quando entrei eu estava muito assustada, não conversava com ninguém, não dormia, só ficava no meu canto. Mas aos poucos fui vendo que elas queriam me ajudar. Nos três meses em que fiquei lá tive ajuda para voltar a ser quem eu era antes dele”, conta.
A estagiária de psicologia da instituição, Érica*, acredita que a principal ajuda a dar a essas mulheres é tempo em um espaço seguro. “Ela precisa de um tempo para pensar sobre a violência, sobre ela, sobre a vida. Pensar sobre o que vivem, sem se preocupar se os filhos estão passando fome”, conta.
Mas não é só isso que elas encontram ali. O acompanhamento com assistente social e psicóloga foram determinantes para Maria. “O que mudou tudo foram as conversas com a psicóloga. Eu nunca tive isso antes. Foi o que me fortaleceu. Porque antes eu achava que aquilo [a violência] era normal, que ele me amava”, lembra.
Outro trabalho essencial da instituição é o contato com toda a rede de assistência social, proteção à mulher e de saúde da cidade. Caxias do Sul tem uma rede de atendimento à mulher bem estruturada, com Centro de Referência, Delegacia da Mulher, Juizado e diversas ações públicas.
Além disso, a articulação da Casa Viva Rachel com outros órgãos é eficiente: o abrigo é gerido pela Fundação de Assistência Social em parceria com a Secretaria de Segurança Pública e além disso as Secretarias de Saúde, Defensoria Pública e o Juiz da Vara da Mulher têm uma relação próxima com a diretoria da casa.
Assim, a equipe do abrigo consegue acelerar atendimento jurídico, médico e social para as mulheres acolhidas, além de facilitar o processo de guarda de filhos, receitas médicas, check-ups de saúde, assessoria jurídica para pensão e outras necessidades, notificação para trabalho e escola dos filhos.
Segundo a psicóloga responsável, Margarida*, o trabalho feito ali é para que essas mulheres comecem a enxergar uma opção de vida. Para isso, as profissionais criam com as acolhidas um plano de saída. Nas conversas, identificam quem são as pessoas com quem elas podem contar, qual é a situação financeira e quais vão ser as necessidades fora da casa para estabelecer uma vida nova sem o companheiro.
Para a diretora do abrigo, o trabalho realizado pelas técnicas é uma verdadeira investigação. “As mulheres chegam tão fragilizadas que não conseguem explicar a sua situação econômica e familiar. Então as gurias da casa fazem um trabalho de detetive. Elas ligam para as UBS e hospitais, procuram familiares no Facebook, porque é preciso saber a história delas, para então agir.”
Casa abrigo não é a solução
Apesar de ser uma ferramenta importante para mulheres em situação de emergência, a casa abrigo não é, por si só, uma solução. Entre 2016 e 2018, 12% das 188 mulheres acolhidas na Casa Viva Rachel voltaram a viver com os companheiros que as agrediram.
“Não posso dizer que a casa abrigo resolve o problema da violência. Existe a orientação, a lei, a prevenção. Mas nem sempre tudo funciona, nem sempre a mulher consegue chegar aqui”, diz Thais Bampi, gerente do Centro de Referência da Mulher de Caxias do Sul.
Mas mais surpreendente ainda é o número de mulheres que reingressam na casa abrigo de Caxias do Sul: 25,9% entre 2016 e 2018.
Um caso marcante para as funcionárias da casa é o de Claudia*, que passou quatro vezes pelo abrigo. Chegou pela primeira vez com dois filhos e grávida e saiu para voltar a viver com o marido que a agrediu. Nas duas vezes seguinte, já com quatro e seis filhos, foi viver com parentes, mas acabou voltando para o ex e a violência se repetiu. Sua última entrada na casa foi no início de 2019 e, dessa vez, correndo o risco de perder a guarda dos filhos.
“É frustrante, a gente vê muito do trabalho feito aqui se perder, mas foge do nosso controle. Porque sair da violência é um processo de cada mulher, que leva seu tempo. E o vínculo é emocional. Se fala muito do vínculo econômico, que elas não têm para onde ir, dependem do marido. Mas eu vejo que o problema maior é o vínculo emocional, e é algo mais difícil de ser rompido”, explica a diretora da casa.
Além de trabalhos de conscientização com a comunidade da cidade, a Secretaria da Mulher do Município promove o preparo de profissionais de saúde e escolas para identificar e lidar com situações de violência doméstica.
Mas não basta apenas tratar o sintoma, é preciso também atacar a causa do problema: os agressores. Para isso, foi criado o projeto HORA, uma iniciativa da Justiça do RS para atender com psicólogos os homens acusados de violência doméstica. Quando a mulher solicita medida protetiva, o judiciário intima o homem a comparecer ao HORA. Nesse encontro, ele é apresentado ao projeto e pode escolher se quer participar ou não.
“Quando a mulher está protegida, nós do judiciário podemos pensar em alternativas. São 10 encontros em que trabalhamos questões de gênero, as funções masculinas e, mais do que tudo, sentimentos”, conta Elaene Tubino, coordenadora do programa. De cada 10 homens que vão ao primeiro encontro, três ficam até o fim do programa. Ao todo, 751 homens já passaram pelo projeto. Desses, 27 (menos de 3%) foram acusados novamente por violência doméstica.
Abrigo é gerido por instituição religiosa
A gestão da casa Viva Rachel é feita em esquema de colaboração entre a prefeitura e uma organização de caridade. Enquanto a Secretaria de Segurança Pública custeia o aluguel do espaço, contas da casa, custos de segurança (como câmeras) e o transporte das mulheres, a Fundação de Assistência Social faz o repasse de verbas para a instituição religiosa católica Mão Amiga, que faz os pagamentos das funcionárias e compras de materiais e alimentos.
O Projeto Mão Amiga é uma organização dos freis Capuchinhos, que realiza a gestão de diversos abrigos e espaços de acolhimento terceirizados pela prefeitura de Caxias do Sul. A parceria é feita por meio de um termo de colaboração, que garantiu o repasse de R$ 438 mil à organização entre novembro de 2017 e novembro de 2018 e R$ 277 mil entre novembro de 2018 e junho de 2019.
Apesar de se tratar de uma organização religiosa, segundo a diretora, não há nenhum tipo de restrição ou pressão religiosa às mulheres abrigadas. “Mas existe uma espiritualidade. Fazemos à noite uma oração ecumênica e procuramos falar de Deus, em sentido amplo, porque vemos que isso é educativo”, conta. Na sala dela, há algumas imagens religiosas. Já nas áreas comuns do abrigo, nenhuma cruz está exposta.
Segundo a diretoria de Alta Complexidade, no fim de 2019 será aberto um chamamento a mais organizações que tenham interesse na gestão.
Fuga para a praia
Maria, que sofreu violência por três meses nas mãos do companheiro, encontrou na casa abrigo muito mais do que esperava. Quando foi acolhida, o abrigo estava cheio e ela acabou criando laços com outras três mulheres.
“Ele ameaçava minha família, falava que ia matar minha mãe e meu irmão, então ninguém queria me acolher. Mas depois de um tempo eu comecei a querer voltar a ser livre. Eu me sentia pronta para sair, mas não sabia como”, conta. Foi assim que começou a considerar viver em outra cidade, longe do ex.
A oportunidade surgiu quando uma das três amigas que fez na casa saiu com um emprego em outra cidade, na praia. “Logo que ela saiu, ela disse que ia nos ajudar a sair dali.” Assim que se estabilizou, a amiga entrou em contato e chamou as outras para irem morar com ela.
Maria e mais uma foram. A quarta do grupo acabou decidindo voltar para o marido. “Eu cheguei a vir buscá-la. Mas quando estava na rodoviária esperando, ela ligou falando que tinha voltado com o ex, que ele tinha mudado. Está até hoje apanhando.”
Ao decidirem viver juntas, com seus filhos, as três amigas encontraram uma chance de recomeçar. Uma ajudou a outra a conseguir emprego e, assim, puderam se reorganizar, retomar o contato com o mundo e pensar nos planos para o futuro. Até que cada uma seguiu seu caminho.
Maria decidiu voltar para Caxias do Sul e para a vida que tinha abandonado quando soube que seu agressor tinha sido preso por matar um homem. Hoje ela namora outro homem e está grávida. Jura que nunca mais vai viver violência. “Se erguer a voz para mim, eu já sei que pode erguer a mão, então para mim não é mais homem.”
Um caso complicado
O início do trabalho da estagiária Erica no abrigo foi marcado por um caso específico, o de Cláudia. Antes de trabalhar ali, ela atuava na assistência social da cidade. “Tinha uma família que eu acompanhava todo mês. Essa mulher vivia com o companheiro, traficante. Eu ia na casa dela todo mês, vi os filhos dela nascer. E um dia eu chego aqui na casa e estava ela, com os seis filhos. E eu pensei: que política pública é essa que a gente vai na casa da pessoa e não sabe o que está se passando?”.
Na verdade, ela podia não saber, mas o sistema de assistência social sabia. O prontuário de Cláudia é enorme. Uma pasta recheada não só com os registros de suas quatro passagens pela casa Viva Rachel, mas também documentos compartilhados de outros órgãos da rede.
Ela foi para o abrigo pela primeira vez em 2010, quando ficou três meses acolhida. Apesar disso, o relatório de desligamento diz: “percebe-se que a usuária não apresenta nenhuma crítica em relação à situação vivenciada (…) e voltou para o companheiro”.
Nas duas outras vezes em que saiu da casa o seu destino foi o mesmo. Mas não só sua vida era colocada em risco, seus seis filhos também corriam perigo. Por causa das crianças ela voltou para a casa em 2019, com o caso no conselho tutelar já em andamento para tirar a guarda dos filhos. A percepção de todas as funcionárias da casa é de que ela ama as crianças, mas tem uma relação de dependência com o companheiro.
“Por que ela voltou? Todo mundo culpa a mulher. Mas às vezes ela precisa passar pelo ciclo dez vezes, até amadurecer e concluir o processo dela. E não cabe nunca a ninguém julgar”, explica Cecília*, uma das educadoras da casa.
E essa foi a postura da equipe: não julgar e sim apoiar Cláudia. Na sua última passagem, todas se mobilizaram para que ela não perdesse a guarda dos filhos. Entraram em contato com parentes de outra cidade, que aceitaram receber a mulher e as crianças e ainda organizaram uma arrecadação de móveis para mobiliar uma casa para a família. A equipe da casa conseguiu vaga para as crianças na escola local.
Assim, três meses após entrar na casa pela quarta vez, Claudia se mudou de cidade. Na casa, as funcionárias ficaram todas na torcida: “Ela tinha um amor doentio por ele, espero que resista”, diz Cecília.
Ameaça cumprida
Em 20 anos de história, a casa Viva Rachel sabe de um caso de uma mulher acolhida que foi vítima de feminicídio após sair da casa. Caroline dos Santos Ramires (nome real da vítima, pois o caso se tornou público) tinha 21 anos em agosto de 2015, quando se mudou com o marido para Caxias do Sul. Os dois viviam em uma pensão e brigaram por causa de dinheiro.
No seu boletim de ocorrência se lê: “Comunica que seu companheiro na data de hoje disse que só não mataria a vítima naquele momento, pois não era hora nem lugar. Mas que lhe mataria na primeira oportunidade que tivesse. O suspeito ainda lhe empurrou e lhe deu um chute na costela, sem deixar lesões”.
Com uma filha de oito anos e sem família por perto, ela ficou um mês e meio na casa, até que a equipe conseguiu que ela mudasse para uma cidade próxima, com um emprego garantido.
“Ela sabia que ia morrer. Quando saiu, ela disse que ia morrer”, conta Marta*, a cozinheira do abrigo, que criou um laço de afeto forte com Caroline. Ela foi assassinada dois meses, a caminho do trabalho, com 24 facadas do homem que quatro meses antes havia anunciado que a mataria na primeira oportunidade que tivesse.
A irmã do filho
Toda vez que alguém se direciona direto a ela, Marli*, 30 anos, se esconde no braço da assistente social que está ao seu lado. Ela é tímida e dócil, como uma criança de 13 anos. Idade que tem seu filho, fruto de estupros que sofreu por parte do padrasto – hoje preso.
Marli é irmã do próprio filho e, devido a sua deficiência mental, muitas vezes se porta como tal. Mas o amor que sente por ele é perceptível nos gestos de cuidado e atenção.
Depois que ele foi preso, Marli continuou morando com o filho do padrasto e foi parar na casa Viva Rachel porque ele também a agredia. Acabaram ficando lá por seis meses, porque era impossível encontrar uma solução para sua saída: o cenário mais provável era que ela fosse para uma instituição para pessoas com deficiência e o filho, para adoção. Mas nenhum dos dois queria isso. Depois de seis meses de convivência, conseguiram negociar que uma instituição de acolhimento para pessoa com deficiência recebesse os dois.
Por Helena Bertho