Treze anos após criação da lei, consciência sobre desigualdade de gênero cresce na sociedade. Especialistas ponderam que implementar políticas públicas ainda é desafio.
(Huffpost Brasil, 07/08/2019 – acesse no site de origem)
Em 7 de agosto de 2006, a Lei Maria da Penha estabeleceu que é dever do Estado criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra as mulheres e que todas elas, “independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião”, devem gozar dos direitos fundamentais, “oportunidades e facilidades para viver sem violência”.
Treze anos após ser sancionada, houve um amadurecimento por parte da sociedade, poder público e Justiça na consciência e diagnóstico desse tipo de violência. Mas a criação de políticas públicas de prevenção, atendimento e diretrizes educacionais previstas em lei continua a ser o maior desafio.
“A Lei Maria da Penha impossibilita que essa questão seja tratada como de menor relevância, como era no passado”. Silvia Chakian, promotora do Ministério Público do Estado de SP.
“A Lei Maria da Penha é o principal marco legal na conquista dos direitos das mulheres no Brasil. Ela representou uma mudança de paradigma no trato da violência contra a mulher, que ainda é recente”, avalia Silvia Chakian, promotora do Grupo Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (GEVID), do Ministério Público do Estado de São Paulo.
Na avaliação de Chakian, antes da Lei Maria da Penha, a sociedade e o Estado enxergavam a violência contra a mulher de forma “banalizada, naturalizada e de menor relevância”, além de ser vista como problema de “marido e mulher”.
“Além de enxergar a violência contra a mulher como um problema do Estado, ela [lei] traz uma série de instrumentos inovadores que permitem a proteção integral e mais efetiva da mulher em situação de violência. Ela impossibilita que essa questão seja tratada com menor relevância, como era no passado”, explica.
A Lei Maria da Penha é fruto da condenação do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). O País foi considerado omisso na resolução do caso de violência doméstica contra a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, que ficou paraplégica após duas tentativas de assassinato cometidas pelo então marido, Marco Antonio Heredia Viveiros.
O ex-marido e agressor de Maria da Penha só foi punido 19 anos depois do crime e passou apenas dois anos em regime fechado. Diante da libertação de Viveiros, Maria da Penha apresentou a denúncia à CIDH, que determinou que o Brasil feriu a Convenção do Belém do Pará, de 1994 — e, a partir daquele momento, seria obrigado a criar leis mais rígidas para casos de violência contra a mulher, que contemplassem políticas públicas de educação e proteção.
Após entrar em vigor, a lei definiu que violência doméstica e familiar contra a mulher é “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.”
Antes, o agressor que cometia violência contra a mulher prestava serviços comunitários, pagava multa ou doava cestas básicas em vez de ser condenado criminalmente. Depois da lei, a pena contra esse tipo de crime passou de um para três anos de detenção, além de possibilitar a prisão em flagrante.
Entidades e órgãos internacionais consideram a Lei Maria da Penha uma das legislações mais avançadas do mundo. Ela é considerada pela ONU (Organização das Nações Unidas), a terceira melhor lei do mundo no combate à violência doméstica e familiar, perdendo apenas para países como Espanha e Chile.
Apesar dos 13 anos da existência de uma legislação como esta no Brasil, é crescente o número de mulheres assassinadas no País. Segundo o Atlas da Violência de 2019, 4.963 brasileiras foram mortas em 2017, considerado o maior registro em dez anos.
A taxa de assassinato de mulheres negras cresceu quase 30%, enquanto a de mulheres não negras subiu 4,5%. Entre 2012 e 2017, aumentou 28,7% o número de assassinatos de mulheres na própria residência por arma de fogo.
Instrumentos inovadores, execução falha
Mas a Lei Maria da Penha não prevê apenas a nomeação da violência contra a mulher, a prisão dos agressores ou medidas protetivas. Ela determina a criação de políticas públicas que vão desde a implementação de planos de ensino em escolas, criação de varas especializadas na Justiça e reabilitação de agressores.
″Ela não é uma ‘lei penal’; por isso, não cria um crime de violência doméstica. Ela é uma ação afirmativa, ela cria um sistema de atendimento multidisciplinar para mulheres de longo prazo”, explica a advogada Maíra Zapater, professora de Direito Penal da FGV e doutora em Direitos Humanos pela USP.
É por trabalhar a longo prazo e com o conceito de prevenção e erradicação da violência de gênero que essa legislação é considerada tão inovadora e referência fora do Brasil. Porém, segundo as especialistas, a aplicação dessas diretrizes estipuladas desde sua aprovação enfrenta desafios ainda hoje.
Sem essa atuação, a gente não vai resolver essa violência que as mulheres ainda sofrem muito no Brasil. Paula Sant’Anna Machado, coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa dos direitos das Mulheres da Defensoria Pública de São Paulo
“E é onde a gente tem muita dificuldade ainda: de criar uma atuação em rede com os agentes da política pública. Porque, sem essa atuação, a gente não vai resolver essa violência que as mulheres ainda sofrem muito no Brasil”, aponta Paula Sant’Anna Machado, coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres da Defensoria Pública de São Paulo.
Segundo a defensora, parte do problema está na falta de investimento público e de vontade política que, em sua avaliação, é contraditório.
“Nós temos uma lei que é considerada a terceira lei mais importante do mundo no combate e na prevenção da violência contra a mulher mas, por outro lado, com menos investimento, existe a tendência de aumentar o número de notícias desses casos, sem conseguir prevenir as mortes”, diz Machado.
Um dos passos para evoluir nos mecanismos de proteção seria investir na criação de mais juizados especiais para julgar casos específicos de violência doméstica. Hoje, existe apenas um desses núcleos, no Mato Grosso do Sul.
“Quando a lei foi criada, ela estipulou que todas as demandas da mulher fossem julgadas por um único juiz ou juíza, sem passar por varas diferentes, e entrar no que a gente chamamos de ‘rota crítica’”, explica.
A “rota crítica” é o termo usado para definir o caminho fragmentado que a vítima de violência percorre ao buscar ajuda do Estado e acaba passando por processos de revitimização ― seja ao entrar em contato com o agressor em uma audiência, seja enfrentando violência institucional no atendimento.
“Acho que hoje esse é o grande desafio. Se tudo isso fosse julgado em uma única vara, a gente conseguiria evitar várias revitimizações e violências institucionais que essa mulher sofre durante o processo”, afirma a defensora.
A Defensoria Pública, por meio do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem), disponibiliza cartilhas com orientações de atendimentos à mulher vítima de violência, além de endereços de delegacias especializadas.
A lei também estabelece que deveriam ser destacados em currículos escolares e planos de ensino “conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher”, a fim de coibir tais agressões.
Em 2014, oito anos após ser sancionada, a Câmara dos Deputados excluiu do Plano Nacional de Educação (PNE) conteúdos sobre questões de gênero. A mesma lógica foi reproduzida nos planos estaduais e municipais. A discussão voltou à tona recentemente na eleição do presidente Jair Bolsonaro e na discussão sobre a implementação do projeto “Escola Sem Partido”.
“A lei diz que é obrigação do poder Executivo criar currículos escolares adequados a cada idade sobre questões de gênero. E isso não é ensinar práticas sexuais às crianças, mas sim falar sobre questões relacionadas à violência e à igualdade entre homens e mulheres”, aponta Zapater.
Ainda atrelada à necessidade de educação sobre questões de gênero, está outra determinação da lei que não é cumprida em sua totalidade no País: a conversa com os homens. Em São Paulo, só em 2018 o projeto Tempo de Despertar – Ressocialização do Autor de Violência contra a Mulher foi oficializado como política pública.
“Eles [homens] precisam participar dessa solução. A gente fala muito de falta de implementação da lei, da fiscalização etc. Mas a gente precisa falar também que poucos homens estão se engajando nessa luta. E a gente não vai ter mudança nesse quadro enquanto todo mundo não participar”, finaliza Chakian.
Por Andréa Martinelli