Thamyres Medeiros tinha 16 anos quando deu entrada em um hospital público de Carapicuíba, grande São Paulo, às 2h da manhã com 7 centímetros de dilatação —a fase final do primeiro período do parto. A lembrança que ela tem é muito ruim. “Me deitaram em uma maca e me deram ocitocina [hormônio usado para acelerar o trabalho de parto]. Depois de cinco horas, a médica rompeu minha bolsa. Já estava exausta. Então, a enfermeira subiu na minha barriga para empurrar”, conta. O bebê nasceu por via vaginal, mas o trauma foi tão grande que, em sua segunda gravidez, dez anos depois, Thamyres pediu uma cesariana. “Foi rápido, me trataram bem, não tenho do que reclamar.”
(Universa, 05/09/2019 – acesse no site de origem)
A experiência de um parto normal pode mesmo ser traumática —a mulher está em uma situação de extrema vulnerabilidade: com medo, com seu corpo exposto, insegura, sentindo dor. Ouvindo relatos como os de Thamyres, não é difícil concordar que o parto cesáreo —sem dor, rápido, feito com hora marcada— pode ser a opção mais confortável e segura para a mulher.
Essa foi a lógica da deputada estadual Janaina Paschoal ao formular um projeto de lei que garante à gestante o direito de optar por ter um parto cirúrgico a partir da 39 semana de gestação, quando, em tese, o bebê já está pronto para nascer.
O projeto, aprovado pelos deputados e sancionada pelo governador de São Paulo em agosto, já está em vigor. Segundo a deputada, a lei aproximará as mulheres pobres das mulheres ricas que, no Brasil, já têm seus filhos via cesariana há pelo menos 40 anos.
Bom para todos, certo? Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o Ministério da Saúde, as pesquisas mais recentes e os especialistas ouvidos nessa reportagem, não.
“Me deitaram em uma maca e me deram ocitocina. Já estava exausta, não conseguia mais fazer força. Então, a enfermeira subiu na minha barriga para empurrar o bebê” Thamyres Medeiros, descrevendo o parto do seu primeiro filho.
Abrir a barriga não é uma coisa inócua
Pode-se questionar se a mulher deve ter o direito de decidir como quer ter seus filhos. Mas não se questiona que, dentro de uma situação normal, o parto vaginal é o mais saudável para mãe e filho. “Os riscos em um parto normal, durante e depois do nascimento do bebê, são muito menores”, diz Rossana Pulcineli Francisco, chefe do departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da USP.
Entre as complicações mais comuns da cesárea estão o risco de infecções e hemorragias, que aumentam em três vezes o risco de morte da mãe. Por ser uma cirurgia, a recuperação é bem mais lenta. “No parto cesáreo são cortadas sete camadas de tecido. A recuperação pode levar de 60 horas a 30 dias. Em um parto normal, esse processo dura cerca de 48 horas.”
Para os bebês, o maior perigo é de nascer antes da hora. Segundo um estudo publicado em 2016 na Lancet, uma das principais publicações médicas do mundo, números elevados de cesárea estão relacionados ao aumento do índice de partos prematuros. “Há uma margem de erro na estimativa da idade fetal. Quando a cesárea é agendada antes da 39ª semana, o risco de a criança nascer prematura é mesmo grande”, diz Rossana.
Não é à toa que no Brasil, onde 55% dos partos realizados são cesáreos, a taxa de prematuridade dos bebês (11,5%) é quase duas vezes maior que a dos países europeus, onde apenas 20% dos nascimentos são por via cirúrgica. E isso não é detalhe: a prematuridade é a causa de um em cada cinco óbitos de recém-nascidos no Brasil, segundo o Ministério da Saúde.
Mas então, por que, por aqui, contra todas as evidências científicas, a cesárea virou a forma mais comum de nascer?
Pré-natal e parto com o mesmo médico é um privilégio
A explicação está relacionada a uma complexa rede de fatores, que envolve questões sociais, econômicas, políticas e até mesmo culturais.
Uma delas tem a ver com a forma que o sistema de saúde brasileiro está organizado, ancorado em boa medida em uma rede de saúde suplementar (os convênios) e privada. Quem financia seu atendimento médico com recursos que vão além dos impostos se sente no direito de ter privilégios. Ter o parto feito pelo mesmo médico que faz o acompanhamento do pré-natal é um deles. “Em lugares onde o sistema público de saúde funciona melhor, a parturiente é atendida pela equipe que está de plantão”, explica a obstetriz Ana Cristina Duarte, uma das maiores ativistas do parto natural do Brasil.
Isso faz toda a diferença. Em países como Inglaterra, França, Canadá ou Holanda, são enfermeiras obstétricas e obstetrizes que acompanham o trabalho de parto. O médico fica à disposição para caso de complicações. “O obstetra é um profissional caro demais para acompanhar um processo fisiológico que pode durar muitas horas”, diz Ana Cristina.
Se o médico fica responsável por esse acompanhamento, deve ser bem remunerado por isso. Não é o que acontece nos planos de saúde. “Hoje, o valor pago para acompanhar um parto é de, no máximo seis horas. Se o parto normal levar mais de 12 horas, por exemplo, o profissional trabalha seis horas de graça”, afirma Rossana Francisco. “Essa é, sem dúvida, uma questão que alavanca a quantidade de cirurgias.”
Consequentemente, os obstetras brasileiros, que se especializam durante a residência médica, muitas vezes não têm a oportunidade de vivenciar as intercorrências comuns de um parto normal. “Muitos médicos se sentem inseguros em dar assistência a uma mulher durante o parto vaginal porque não aprenderam a fazer um parto sem intervenção”, diz a antropóloga Sonia Nussenzweig Hotimsky, autora de uma tese de doutorado pela USP sobre a formação em obstetrícia durante a residência médica.
Assim, conquistamos o posto de vice-campeão entre os países com maiores índices de cesárea do mundo, perdendo apenas para a República Dominicana.
De volta às origens
Foi a percepção dessa realidade muito desfavorável ao parto normal que fez surgir, no começo dos anos 2000, um movimento de mulheres que levantaram a voz contra o número de cesáreas realizadas no Brasil e o que passou a ser chamado de violência obstétrica. Um movimento pelo parto natural (com menos intervenções possíveis) e humanizado (em que as vontades da mulher devem ser priorizadas), visto por muitos especialistas como radical, mas que teve o mérito, também reconhecido por eles, de mobilizar a opinião pública e gerar mudanças.
Entre elas está a implementação do projeto Parto Adequado, criado para reduzir o percentual de cesarianas sem indicação clínica na saúde suplementar. O projeto, que já envolveu 148 hospitais do Brasil e operadoras de plano de saúde, conseguiu, desde 2015, evitar 20 mil cesarianas desnecessárias nos hospitais participantes.
Na rede pública, a luta é por informação
Já na rede pública, onde 45% dos partos são realizados via vaginal (número consideravelmente superior ao da rede privada, mas ainda bem abaixo do preconizado pela OMS), a luta passou a ser pelo cuidado e respeito entendido no conceito de parto humanizado.
Em 2017, o Ministério da Saúde publicou as Diretrizes Nacionais de Assistência ao Parto Normal, criado com o intuito de promover o parto normal, definindo práticas que deveriam tornar a experiência da mulher a mais positiva possível. Ouvir os desejos da parturiente, garantir que ela esteja acompanhada durante todo o processo, consultá-la sobre qualquer procedimento, informá-la sobre formas de amenizar a dor do trabalho de parto são alguns dos comportamentos incentivados no documento.
Alinhados a esse conceito estão centros como o Hospital Geral do Grajaú, hospital público de referência de São Paulo. “Promovemos rodas de conversas entre médicos, enfermeiras e gestantes, além de visitas à maternidade. Durante o trabalho de parto, explicamos os procedimentos, tiramos dúvidas e instruímos sobre métodos de alívio da dor, como caminhadas e banho quente”, explica a enfermeira obstetra Marianne Vieira Gonçalves Morgado.
Outro exemplo positivo de maternidades que atendem pelo SUS é a Amparo Maternal, instituição sem fins lucrativos localizada no bairro Vila Clementino, em São Paulo. Na casa, a parturiente conta com o trabalho voluntário de doulas —uma companheira emocional— durante todo o dia, fica livre para caminhar, tem à disposição equipamentos como bola de pilates (para ajudar no processo de dilatação), recebe o bebê nos braços logo após o seu nascimento e sai do hospital com o teste do pezinho em mãos.
A cesárea é um pedido de ajuda
Foi na Amparo que Mônica Firmino Oliveira, 27 anos, teve sua primeira filha. Logo que descobriu que estava grávida, Mônica baixou diversos aplicativos sobre gravidez. Fez o acompanhamento de pré-natal na Unidade Básica de Saúde do Campo Limpo, em São Paulo. Chegou à maternidade disposta a ter um parto normal, convencida de que essa era a forma mais segura de receber sua Anna Sophie. E conseguiu. “A gente pensa que não vai aguentar, mas tira forças de onde não tem. O carinho da doula e as explicações da enfermeira fizeram a diferença.”
“Existe uma cultura de que parto é sofrimento”, diz Fabiana Ruas, médica obstetra da instituição. Segundo ela, a Amparo recebe muitas mulheres em trabalho de parto que não fizeram o pré-natal. “Como não receberam nenhuma informação, chegam com muito medo de sentir dor e pedem para fazer uma cesárea. Não precisa ser assim: existe um leque de opções, farmacológicos e não farmacológicos, para aliviar a dor.”
O que separa a história da Thamyres e da Mônica é o acesso à informação antes, durante e após o parto. “Atribuir à mulher o direito de decidir é irresponsável e negligente. A mulher que pede uma cesárea está, na verdade, pedindo ajuda”, defende a procuradora da República Ana Carolina Previtalli, atuante no combate à violência obstétrica. “Ela não está sendo ouvida, não está num lugar adequado, não recebeu acesso à possibilidade de analgesia. É isso que precisa mudar”, afirma.
“Atribuir à mulher o direito de decidir é irresponsável e negligente. A mulher que pede uma cesárea está, na verdade, pedindo ajuda” Ana Carolina Previtalli, procuradora da República.
Por Luiza Souto e Marcos Candido