“Eu tenho que confessar uma coisa. Eu ainda sou fértil. Me desculpe.”
(BBC News, 07/10/2019 – acesse no site de origem)
Sally* ficou perturbada quando leu a mensagem enviada por Jason Lawrance, um homem que ela conheceu em um aplicativo de relacionamento. “Você está falando sério?”, respondeu ela. “Seu desgraçado. Por que diabos você faria isso comigo!?”
Antes de Sally fazer sexo com Jason, ele havia dito que fizera uma vasectomia, e ela havia concordado em fazer sexo sem camisinha – coisa que ela jamais teria aceitado se soubesse que ele era fértil. Ela também não fazia ideia que ele já havia sido condenado por estuprar diversas mulheres.
Na época ela tinha 42 anos e já era mãe, não queria ter outro filho. Teve que tomar uma pílula do dia seguinte, mas mesmo assim acabou ficando grávida e passou por todo o processo de fazer um aborto – que é legal no Reino Unido, onde o caso aconteceu.
Lawrance foi condenado por estuprar Sally duas vezes – porque eles fizeram sexo duas vezes – em um caso sem precedentes no Reino Unido.
“A seção 74 da lei de crimes sexuais de 2003 diz que uma pessoa consente se ele ou ela concorda por escolha própria e tem a liberdade e a capacidade de fazer aquela escolha”, diz Sue Matthews, a promotora do caso. “Ao mentir sobre a vasectomia, ele impediu aquela vítima de fazer uma escolha informada.”
“Se essa condenação for mantida, a preocupação é que pessoas que nunca foram consideradas criminosas estejam sob o risco de serem processadas por graves crimes sexuais”, diz Shaun Draycott, advogado de Lawrance.
E no Brasil, como um caso como esse seria legalmente tratado?
Pela legislação brasileira, uma mentira sobre a contracepção, como a de Lawrance, não poderia ser considerada estupro, explica Maíra Zapater, professora de direito penal da Fundação Getúlio Vargas.
“Em um caso como o de Sally, em que mulher queria manter relação sexual sem camisinha, mas foi enganada em relação a um elemento importante que viciou o consentimento dela, dentro da lei brasileira ficaria bem discutível dizer se isso configura algum crime”, explica Zapater. “Porque não houve violência nem grave ameaça, então em estupro a gente não poderia enquadrar.”
Isso porque o Código Penal brasileiro define estupro, no artigo 213, como “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. “Ou seja, o crime de estupro só existe quando houver violência física ou ameaça, quando a pessoa pratica o ato sexual de forma forçada”, diz Zapater.
Existe na legislação um outro crime que trata de violação sexual mediante fraude, definido no artigo 215 do Código Penal como ter “conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima”.
Mas, explica Zapater, o entendimento atual da Justiça é de que essa lei se aplica para casos em que a pessoa é enganada em relação ao próprio abuso sexual – ela acredita que o que está sendo feito com ela não é um ato libidinoso, mas um procedimento médico ou religioso, por exemplo.
Ou seja, também não se encaixaria em um caso de consentimento em que a pessoa foi enganada e concordou em fazer sexo.
“A gente poderia ficar com a importunação sexual, porque ela não anuiu em praticar o ato sexual com alguém fértil sem o preservativo, mas ainda seria uma interpretação discutível”, diz Zapater.
“Isso mostra que a nossa lei olha para algumas coisas e não olha outras. Não se fala da questão do consentimento em relação a métodos contraceptivos”, afirma a criminalista.
O crime de importunação sexual é o único na legislação brasileira que fala de consentimento. A lei que o criou foi aprovada em 2018, após casos de assédio no metrô cuja punição era díficil justamente pela dificuldade de enquadrar em qualquer definição de crime sexual existente na época.
Importunação sexual é “praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”, e pode dar pena de 1 a 5 anos de prisão.
Um aborto seria permitido?
Como no Brasil o aborto só é permitido em casos de estupro (ou seja, casos em que a lei define como estupro), uma mulher na mesma situação que Sally – que não teria consentido com a relação se soubesse que poderia engravidar – não teria direito a fazer o procedimento legalmente caso engravidasse.
“A lei brasileira é muito dissonante com o resto do mundo em relação a direitos sexuais e reprodutivos”, diz a criminalista.
“Isso mostra que a lei penal tem uma questão em aberto a tratar, de uma mulher que acaba engravidando em uma relação sexual consentida, mas ela não consentiu em não usar método contraceptivo.”
Remover a camisinha pode contar como estupro ou outro crime sexual?
A professora Kelly Davis, da Universidade Estadual do Arizona, nos EUA, fez uma pesquisa com homens e mulheres entre 21 e 30 anos sobre resistência ao uso de camisinha no país. Dos 313 homens participando, 23,4% admitiram usar “subterfúgios” pelo menos uma vez para não usar o preservativo desde os 14 anos.
Davis também fez outras pesquisas qualitativas com grupos de homens jovens para estudar o assunto. “Eles estabelecem um limite no uso da força, mas tirando isso estão dispostos a fazer qualquer coisa (para não usar o preservativo).”
Das 530 mulheres entrevistadas, 6,6% admitiram ter enganado o parceiro, sendo a tática mais usada mentir sobre o uso de pílula anticoncepcional.
Davis também pesquisou uma prática conhecida como “stealthing“, quando o homem concorda em usar o preservativo e o remove, sem que a mulher perceba, durante o sexo. Dos 626 homens entre 21 e 30 anos entrevistados, 10% admitiram fazer isso pelo menos uma vez desde os 14 anos.
A advogada Sandra Paul, especialista em crimes sexuais, afirma que, de acordo com a lei britânica, o ato é um estupro.
A questão inclusive fez parte do caso de extradição de Julian Assange, o fundador do Wikileaks. Em sua acusação, juízes consideraram que sexo sem preservativo é um crime sexual no Reino Unido se o parceiro só concordou com o ato com a condição de que o preservativo fosse usado.
No Brasil, a remoção da camisinha só poderia ser considerada estupro, em termos legais, se “durante o ato o homem quer retirar a camisinha, a mulher fala que não e aí ele muda de conduta e pratica a violência ou grave ameaça”, explica Zapater, da FGV. “Sem esse elemento de violência ou grave ameação, não dá para encaixar em estupro como ele é descrito pela legislação brasileira.”
Se durante o ato a mulher não percebeu, e descobre depois que a relação foi sem o preservativo, no entendimento da professora, no máximo a atitude poderia se enquadrar em importunação sexual. “Que é um crime residual em relação ao estupro, ele tem os elementos do estupro mas não tem a violência”, diz ela.
E se o homem não praticar o coito interrompido?
Katie Russell, porta-voz da ONG britânica Rape Crisis, afirma que mentir sobre a intenção de retirar o pênis antes da ejaculação pode se enquadrar dentro da definição legal de estupro no país. “É um exemplo de alguém que concordou com o sexo sob certas condições, e o parceiro não se ateve àquelas condições”, diz ela.
Sandra Paul conta que um caso do tipo já chegou a ser considerado em uma corte britânica, envolvendo um casal casado. “A mulher não queria mais filhos e concordou com o sexo desde que ele interrompesse o coito antes da ejaculação. Ele fingiu concordar, mas havia bastante provas de que ele não tinha intenção de fazê-lo.”
A promotoria não quis abrir um processo criminal contra o marido, então a mulher pediu uma revisão judicial da decisão. A BBC questionou a promotoria sobre o caso, mas não obteve resposta.
No Brasil, um caso como esse cairia na mesma categoria da camisinha – seria difícil ser considerado crime se a mulher consentiu e só depois percebeu que ele não interrompeu o coito antes da ejaculação.
Um caso assim só poderia ser considerado crime de estupro se, durante a relação sexual, houvesse violência ou grave ameaça para que a relação continuasse. Seria preciso que, de alguma forma, a relação fosse forçada – se a mulher manifestasse seu desejo de interromper o coito e ele continuasse.
Mentir sobre infecções sexualmente transmissíveis é crime?
No Brasil, expor alguém a doença venérea é crime, mas que tem uma pena baixa (de três meses a um ano, ou multa), então normalmente é convertida em pena alternativa.
No caso da AIDS (que não é considerada doença venérea porque tem meios de transmissão não apenas via relação sexual), o STJ (Superior Tribunal de Justiça) já decidiu que quem passa a doença com a intenção de infectar o parceiro pode responder por tentativa de homicídio.
Se a pessoa apenas mentir sobre ela, no entanto, fazendo sexo sem proteção, mas sem a intenção comprovada de transmiti-la, não há crime contra a vida, segundo a jurisprudência do STF (Supremo Tribunal Federal). Mas, dependendo do caso, pode cometer o crime de perigo de contágio de moléstia grave ou de lesão corporal.
“Não são crimes contra a dignidade sexual, mas sim de periclitação da vida e da saúde”, explica a criminalista Zapater.
No Reino Unido, mentir sobre Infeções Sexualmente Transmissíveis também é uma “zona cinzenta”, diz Sandra Paul. Por lá, houve diversos casos de pessoas condenadas por infectar parceiras com HIV: Daryll Rowe, Antonio Reyes-Minanae Aaron Sutcliffe são três exemplos recentes. No entanto, eles foram condenados por lesão corporal grave, não por crimes sexuais.
E se uma mulher mentir sobre usar pílula?
O advogado de defesa de Jason Lawrence, David Emanuel comparou a mentira de seu cliente sobre a vasectomia com a de uma mulher sobre o uso de pílula. Ele argumentou que, se Lawrence podia ser condenado por estupro por mentir sobre ser infértil, então uma mulher poderia ser condenada também por um ato similar.
No entanto, nas leis atuais do Reino Unido, mulheres não podem ser condenadas por estuprar homens porque o estupro é definido como um ato cometido com um pênis.
Russell, da Rape Crisis, critica a comparação da vasectomia com a pílula. “Com questões envolvendo contracepção e gravidez, é o corpo e a saúde da mulher que são afetados por esse tipo de mentira”, disse ela.
“Não é possível comparar uma coisa com outra, porque é a mulher que tem que lidar com as consequências da gravidez e do aborto, e os impactos para o homem não são comparáveis.”
Mas Sandra Paul não concorda. “A questão central é até que ponto a mentira vicia (ou seja, nega a possibilidade) do consentimento”, diz ela.
No Brasil, assim como é difícil encaixar a mentira sobre vasectomia em alguma crime sexual, a mentira de uma mulher sobre a pílula também não pode ser encaixada nessa categoria de crime.
E se alguém mente sobre seu gênero?
No Reino Unido, diversos casos foram parar na Justiça após mulheres fingirem ser homens para conseguir encontros com outras mulheres, ou em caso de homens transexuais que não revelaram seu gênero designado no nascimento a parceiras. Casos notáveis incluem Gayle Newland, Justine McNally e Kyran Lee.
Muitos desses casos envolvem o uso de um pênis falso e, como no país o estupro é definido como um ato cometido com um pênis, a acusação é de assédio sexual, não de estupro. No caso de McNally, que se apresentou como um garoto adolescente ao longo de um relacionamento com uma garota, a Justiça decidiu que “enganar quanto ao gênero pode viciar o consentimento.”
No entanto, casos como esses – às vezes chamados de “fraude de gênero” – levantam a questão dos direitos das pessoas com disforia de gênero (desconforto da pessoa com o gênero atribuído ao nascer) e sobre se pessoas transexuais deveriam ter que revelar o gênero com o qual foram designadas ao nascer aos parceiros.
A professora de direito Alex Sharpe, especialista na questão e ativista pelos últimos 20 anos, diz que a maioria das pessoas processadas por fraude sexual parecem ter variância de gênero. “Então existe a questão de escolher certos tipos de pessoas para processar”, diz ela.
Sharpe acredita que um homem trans não está enganando uma parceira ao se apresentar como homem porque ele é um homem.
E outras mentiras?
Pessoas contam todo tipo de mentiras para conseguir sexo – mentem a idade, fingem ser solteiras quando na verdade são casadas, alegam ter mais dinheiro do que têm. No entanto casos como esses não foram parar na Justiça, então jurados não tiveram que avaliar se esse tipo de mentira impede ou vicia o consentimento.
Diversas mulheres tiveram relações sexuais com policiais infiltrados em grupos ativistas. Uma delas argumentou que isso equivale a um time de policiais conspirando para cometer estupro, porque os oficiais sabiam que não havia consentimento informado.
A polícia do Reino Unido indenizou algumas dessas mulheres, no entanto, a promotoria se negou a entrar com ações criminais contra os policiais, dizendo que “quaisquer mentiras nas circunstâncias do caso não foram tais que viciassem o consentimento”.
Sandra Paul acredita que é preciso de mais detalhes sobre até que ponto as mentiras impedem o consentimento – e que isso deve vir com o julgamento em segunda instância da condenação de Jason Lawrance.
“Em última instância pode ser que mais legislação seja necessária”, diz ela. “Não usar um preservativo quando você disse que usaria é claramente problemático, mas um adulto mentir sobre a idade, na maioria das circunstâncias, não é.”
“Na falta de legislação específica, quem faz as regras sobre o que há entre os extremos, e como os júris navegam entre essas decisões?”
No Brasil, também há uma grande “zona cinzenta”, segundo Maíra Zapater, da FGV.
“Quando a gente fala em lei penal, ela tem que ser muito exata para ser aplicada a um caso concreto e a uma pessoa. Por mais que a conduta seja moralmente condenável, moralmente repugnante, a gente precisa ter um controle da legalidade”, diz . Ou seja, é preciso que a conduta que se pretende punir esteja descrita exatamente na lei.
A forma como o estupro é definido faz com que ele seja aplicado para casos muito espefícios, e ainda não está muito definido o que se encaixa no crime de importunação sexual.
“A importunação sexual é um crime que existe só há um ano, e as interpretações (por juízes e autores do Direito Penal) ainda são sendo construídas”, diz Zapater.
E há muitas questões das quais a lei simplesmente não trata. “No meu entender, a lei brasileira não é clara na questão do consentimento sobre método contraceptivo”, afirma a criminalista.
Por Caroline Lowbridge | Com reportagem de Letícia Mori, da BBC News Brasil em São Paulo
*O nome foi alterado para proteger a identidade da vítima