Omissão do Congresso e da Justiça Eleitoral, controle masculino dos partidos e crise de representatividade são barreiras para equidade de gênero.
(HuffPost Brasil, 13/10/2019 – acesse no site de origem)
As mulheres são 52% do eleitorado brasileiro, mas quando se mede a presença nos cargos de poder, os números são bem menores. Elas são 15% dos deputados federais e dos senadores e 14% dos vereadores. No Executivo, apenas um estado é governado por uma mulher e 12% dos municípios.
Esse cenário coloca o Brasil na lanterna dos rankings de presença feminina no poder. Estamos na 152ª posição na lista de 192 países que mede a representatividade feminina na Câmara dos Deputados, divulgada pela Inter-Parliamentary Union. Já entre os cargos no Executivo, ocupamos a 161ª posição na comparação entre 186 países, de acordo com o Projeto Mulheres Inspiradoras.
As investigações do uso de mulheres como laranjas para cumprir a cota de candidaturas femininas envolvendo o PSL nos últimos meses reforçaram dúvidas sobre a efetividade da legislação atual. Se por um lado lideranças partidárias têm defendido o fim das cotas, por outro, as propostas para melhorar a representatividade incluem desde mudança no sistema eleitoral e partidário a uma atuação mais rígida da Justiça Eleitoral.
Que medidas promovem a participação de mulheres na política?
Desde 2009, a Lei Eleitoral obriga os partidos a destinar 30% das candidaturas para cada gênero, a fim de estimular candidaturas femininas. A cota já existia na legislação anterior, mas era apenas uma reserva. Na prática, muitos partidos deixavam essas vagas vazias.
A Lei dos Partidos, por sua vez, estabelece que 5% do Fundo Partidário precisa ser gasto com a “criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres”, sob comando da Secretaria da Mulher da legenda ou por instituto com personalidade jurídica própria presidido pela chefe da secretaria.
Em 2018, veio uma mudança nas distribuição de recursos públicos, apontada como uma das razões para o aumento da bancada feminina na Câmara, que elegeu 77 integrantes, maior patamar da história. Em maio do ano passado, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) determinou que 30% do Fundo Eleitoral deveria ser destinado às candidatas mulheres. Dois meses antes, o STF (Supremo Tribunal Federal) havia decidido medida semelhante, mas em relação ao Fundo Partidário.
O TSE, contudo, não deixou claro como esses recursos deveriam ser contabilizados pelos partidos, nem se a distribuição incluiria tanto candidaturas proporcionais (deputadas estaduais, distritais e federais) quanto majoritárias (senadoras, governadoras e presidente), além de vices e suplentes. Dessa forma, coube aos partidos decidir.
Homens comandam partidos
Internamente, algumas siglas adotam políticas de promoção da representatividade feminina, mas em geral, o controle é dos homens. De acordo com levantamento do Transparência Partidária, apenas 20% dos cargos de direção a nível nacional são ocupados por mulheres.
Os partidos são punidos se descumprirem as cotas para mulheres?
Apesar da legislação prever cotas de candidaturas e de destinação de recursos, há falhas no controle e na possibilidade de punir quem descumprir as normas. “O próprio TSE, que é responsável por fiscalizar e tentar controlar os abusos da lei, ao não punir as lideranças ou partidos, acabam mantendo o status quo, mantendo esse clima de impunidade”, afirmou ao HuffPost Brasil a cientista política Maria do Socorro Sousa Braga, diretora da ABCP (Associação Brasileira de Ciência Política) e professora da Ufscar (Universidade Federal de São Carlos).
Em setembro, o TSE decidiu que a fraude à cota de gênero nas eleições leva à cassação de toda a chapa eleita. Mas não há punição para os dirigentes partidários, que são os responsáveis por decidir as candidaturas e para onde vai o dinheiro.
Há falhas, contudo, para casos de simples descumprimento da cota de de candidaturas. Em 2014, 11 dos 32 partidos analisados pelo Cepia (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação) descumpriram a norma.
De acordo com a pesquisa Democracia e representação nas eleições 2018: campanhas eleitorais, financiamento e diversidade de gênero, da Fundação Getulio Vargas (FGV), 2018 foi o primeiro ano em que a cota de candidaturas foi cumprida, na disputa para a Câmara. Considerando-se as 7.689 candidaturas aptas, 31,6% eram mulheres.
Ao analisar as coligações, no entanto, o cenário é diferente. Em 44 das 316 coligações a regra não foi cumprida. Além disso, oito partidos (PSD, PROS, PCB, DEM, Podemos, Solidariedade, Rede e PMN) descumpriram a norma globalmente, isolados de suas coligações. Apenas o Novo atingiu o índice sem depender de outras siglas.
Quanto à distribuição do Fundo Eleitoral, ao analisar apenas a disputa entre deputados federais, estaduais e distritais, apenas 13 dos 34 partidos (38%) atingiram a cota, segundo a pesquisa.
No cenário que considera tanto cargos majoritários quanto proporcionais, o total de siglas regulares subiria para 19 (56%). Já se forem incluídas chapas em que a vice ou suplente é mulher, apenas três siglas (Avante, Podemos e PRP) ficam irregulares.
Os dados sobre aplicação do Fundo Partidário são similares. No cenário mais flexível com os partidos, oito descumpriram a cota: Avante, PDT, PMB, PRTB, PSB, PSC, Solidariedade e PSTU.
TSE deixa brechas sobre Fundo Eleitoral
Uma das coordenadoras da pesquisa, a cientista política Luciana Ramos defende que o TSE adote critérios específicos para cota feminina no Fundo Eleitoral. “A Justiça criou uma armadilha para ela própria e partidos fizeram o que quiseram porque sabiam que não ia ter como fiscalizar”, afirmou à reportagem.
De acordo com a pesquisadora, na prática, em muitos casos o dinheiro foi para uma pessoa, ou para vice candidata à Presidência ou só para suplente de senador, “o que não era o objetivo porque se o paralelo é com a lei de cotas, trata-se de representação proporcional”, ou seja, os 30% deveriam ter sido para candidaturas de deputadas federais e estaduais em 2018. Essa é também a orientação do Ministério Público Federal Eleitoral de São Paulo.
Ramos destaca também a falta de transparência das legendas quanto ao critérios de destinação do dinheiro. “A gente via as resoluções dos partidos e era uma coisa ininteligível, por exemplo, 30% vai para esse senador e ele vai decidir para quais mulheres o recurso vai nesse estado. Uma coisa de louco. Não existem meios de fiscalização”, completou.
Nesta sexta-feira (11), a presidente do TSE, ministra Rosa Weber, criou uma Comissão Gestora de Política de Gênero no tribunal. O objetivo é ampliar a visibilidade de dados eleitorais e estatísticos sobre a participação feminina na política e realizar ações educacionais sobre o tema. A portaria que instituiu o grupo também prevê a promover de pesquisas sobre a participação de mulheres na democracia.
Anistia para partidos políticos
Se há omissão da Justiça Eleitoral, por outro lado caciques partidários se mobilizam no Congresso em benefício próprio. Neste ano, os parlamentares aprovaram uma anistia para as siglas que não cumpriram a cota de 5% do Fundo Partidário para promoção da participação política das mulheres até 2019. “Eles pensaram em fazer quase um cartel entre os partidos para levar à redução da punição para quem não distribuiu o dinheiro para as mulheres”, critica a cientista política da Ufscar.
A punição prevista anteriormente era acrescentar 2,5% dos recursos que recebeu do Fundo Partidário para programas com essa função, mas decisões da própria Justiça Eleitoral não são rígidas sobre a medida. Na decisão na Prestação de Contas nº23167/DF , por exemplo, o TSE tratou a inobservância da destinação dos 5% do Fundo Partidário como uma simples “impropriedade”, incapaz de ensejar a desaprovação das contas partidárias.
Segundo o estudo do Cepia, em 2012, ano com melhor resultado, apenas 72% das legendas cumpriram a exigência legal. O número é reduzido a 53% ao considerar que siglas que não forneceram a informação também descumpriram a regra. O resultado é uma perda equivalente a R$ 28.518.975,71 desde que a norma está em vigor até abril de 2017.
Candidaturas laranja de mulheres
Além do descumprimento das cotas, os partidos também agem ilegalmente para cumpri-las. É o caso do uso de candidaturas laranja. Nas eleições municipais de 2016, o TSE apontou que mais de 16 mil candidatos tiveram votação zerada, dentre os quais 14.417 eram mulheres, um forte indício de que muitas delas concorreram para que o partido pudesse burlar a lei.
A investigação mobilizou presidentes de partidos a derrubar a cota. Na última segunda-feira (7), o presidente do PSL, deputado Luciano Bivar (PE), disse que a Câmara dos Deputados precisa “atacar a obrigatoriedade de gênero” para evitar irregularidades nas próximas eleições. “A mulher não quer ser candidata. Vai buscar e não vai achar, e vai ter uma situação díspar. O partido vai colocar o que der para obedecer a regra. Por isso, precisamos mudar a cota feminina”, disse à GloboNews.
Além de defender o fim da cota de candidaturas, Bivar também atacou a reserva financeira para mulheres. “Se tem rolo agora, como dizem, imagine o rolo que vai ser com esse Fundo Partidário e a gente tendo que destinar 30% para mulheres? Se tem rolo agora, multiplica por dez na próxima eleição”, concluiu.
Outros presidentes de partidos adotam discursos similares e têm feito esforços para alterar a Lei. No primeiro semestre, o PL 2996/2019 quase foi votado na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara. O texto acaba com a obrigatoriedade de 30% de candidaturas delas e, consequentemente, de aplicação desse percentual mínimo de financiamento, mas foi retirado pela autora, a presidente do Podemos, deputada Renata Abreu (Podemos-SP).
Ao HuffPost, Abreu afirmou, em julho, que “há uma dificuldade cultural” para preencher as candidaturas e que a lei atual não resolve o problema de representatividade feminina.
Para especialistas, contudo, essa dificuldade é resultado da atuação partidária. “Existem mulheres que querem se candidatar, mas não têm recurso. O partido na realidade não tem interesse em tornar algumas mulheres candidatas viáveis. O problema é dos partidos, não das mulheres”, afirma Luciana Ramos.
Como melhorar a presença feminina na política?
Tramitam no Congresso diferentes propostas sobre participação das mulheres na política, que incluem cotas de cadeiras no Legislativo e mudanças nas estruturas partidárias. Na avaliação da pesquisadora da FGV, o ideal seria mudar uma série de fatores. “É importante fortalecer as secretarias de mulheres nos partidos e que elas sejam responsáveis por averiguar dentro do partidos se o nível mínimo de recursos para candidaturas femininas está sendo efetivado”, defende.
Ramos também vê com bons olhos proposta do Ministério Público Eleitoral de São Paulo chamado “financiamento 2.0”, que seria uma maior distribuição dos recurso públicos para siglas que elegessem mais mulheres. Hoje o principal critério é o tamanho da banda eleita para deputado federal.
Se a gente for para a lógica de incentivos, acho que os partidos podem se sentir mais compelidos a cumprir a legislação. Seria mais para mudar uma cultura.Luciana Ramos, da FGV
A adoção de cadeiras no Legislativo também é vista como uma medida efetiva. “Talvez levasse a uma cultura diferente das nossas lideranças, que têm uma visão ainda muito machista de pensar o funcionando das organizações partidas muito em função da vida dos homens e não da vida das mulheres”, afirma Maria do Socorro Sousa Braga, da Ufscar.
Na Câmara, uma das promessas de campanha feitas por Rodrigo Maia (DEM-RJ) à bancada feminina para ser reeleito presidente da Casa foi pautar a proposta de emenda à Constituição 134/2016. O texto estabelece percentuais mínimos para cada gênero nas três esferas do Legislativo de forma temporária. Seriam 10% para próximo pleito, 12% para o seguinte e 16% no outro.
Uma outra solução seria uma mudança mais profunda no sistema eleitoral, com a adoção da lista fechada. Nesse modelo, o eleitor vota no partido e não diretamente no candidato. Cabe às legendas estabelecer a ordem dos candidatos na lista para ocupar de fato as cadeiras no Legislativo.
Na reforma política de 2017, uma das medidas debatidas previa a inclusão de um político de gênero distinto em cada grupo de três na lista. Na época, a estimativa de consultores legislativos envolvidos no debate era de um aumento de 10% a 25% de mulheres no Parlamento, com base no número de cadeiras de cada legenda na composição da Câmara naquele momento.
Crise de representatividade dos partidos
Para a cientista política da Ufscar, a dificuldade dos partidos em melhorar a representatividade feminina é parte da crise de representatividade do sistema atual. “Há uma dificuldade de renovação de lideranças na democracia partidária e os partidos têm essa função. Outras formas de organização que estão tendo essa atuação. São movimentos que estão se responsabilizando por formar quadros e os empresários estão entrando por aí”, afirma Braga.
A especialista é uma das autoras de um livro de iniciativa da Transparência Brasil com sugestões sobre questões de gênero que será entregue a parlamentares. “Estou sugerindo que as mulheres tenham internamente nos partidos maior participação nos órgãos decisórios. Poderia ser um primeiro passo para se sentir partícipe das decisões partidárias, seja na seleção de candidaturas e de outros processos internos, até o destino de verbas para ter creche dentro do partido”, afirmou.
Os partidos hoje são muito fechados, oligarquizados. Você tem um setor minúsculo que de fato decide e acaba excluindo vários setores importantes para que o partido de fato dê conta do papel deles, que deveria ser de representante das demandas sociais.Maria do Socorro Sousa Braga, cientista política
Há iniciativas nesse sentido tramitação no Congresso. O PL 4891/2019, por exemplo, prevê que 5% do Fundo Partidário seja destinado a legendas que tiverem ao menos 30% dos cargos de direção preenchidos por mulheres em todas as esferas partidárias.
Já o PL 2235/2019 estabelece que ao menos 30% das vagas de deputado federal, estadual, distrital e vereador sejam destinadas a cada um dos gêneros. Para senadores, nos anos de renovação de dois terços da Casa, uma vaga seria para mulheres e outra para homens. O PL 1984/2019, por sua vez, determina a partide de gênero no Legislativo.
Os três textos precisam ser votados nas comissões antes de seguir para o plenário do Senado. Essas e outras propostas, por sua vez, esbarram justamente no fato de reduzirem o poder de lideranças partidárias que comandam a pauta do Legislativo.
Por Marcella Fernandes