Dificultar atendimento vai gerar mais mortes, mais sequelas e mais sofrimento
(Folha de S.Paulo, 15/10/2019 – acesse no site de origem)
Na contramão das resoluções de organismos internacionais referências em saúde da mulher, como a Federação Internacional de Ginecologistas e Obstetras (Figo) e a Associação Médica Americana, Raphael Câmara Medeiros Parente, conselheiro eleito do Conselho Federal de Medicina, em artigo publicado na segunda-feira (13) nesta Folha, mais uma vez vem a público se contrapor aos direitos sexuais e reprodutivos e disseminar falácias negacionistas em relação ao aborto.
Aborto é, sim, problema de saúde pública no Brasil. Primeiro, por sua magnitude, pois estima-se que ocorram cerca de 500 mil abortos provocados todos os anos, de acordo com a maior pesquisa já realizada sobre o assunto, a Pesquisa Nacional de Aborto. Ela demonstra que, ao chegar aos 40 anos, uma em cada cinco brasileiras já abortaram.
Segundo, por causa do alto ônus de saúde. Como é ilegal no Brasil, salvo os dois excludentes de ilicitude previstos no Código Penal (estupro e para salvar a vida da gestante) e em casos de anencefalia, muitas mulheres seguem abortando em condições inseguras. Mas nem todas. Por meio de medicações ou clínicas particulares, mesmo na clandestinidade, mulheres de classe média e alta podem abortar em segurança —enquanto mulheres pobres e negras, como Ingriane Barbosa, que morreu ano passado depois da inserção de um talo de mamona em seu útero, não têm sequer acesso à informação e buscam soluções inseguras.
Sabemos que os números de aborto são subnotificados e, por isso, precisam ser corrigidos após investigação de todos os óbitos de mulheres em idade fértil. Os números corrigidos divulgados pelo Ministério da Saúde apontaram 203 mortes em 2016. Mas não é somente com a morte que temos que nos preocupar. Para cada óbito materno por aborto foram estimados 18 casos de “near miss”, ou seja, complicações graves de mulheres que quase morreram em decorrência de hemorragia, infecção ou perfuração de órgãos, muitas das quais ficam com sequelas para o resto da vida.
Ainda assim, mesmo se tivessem ocorrido “somente” 48 mortes por ano, será possível que um médico não se comova com o drama de cada morte materna e ache que são poucas? Cada vida materna importa, vidas de mulheres negras e pobres importam. Não é “somente”! É tudo isso!
As taxas de mortalidade materna no Brasil são inaceitavelmente altas. O país não atingiu o objetivo do milênio sobre mortalidade materna em 2015. No ritmo atual, também não atingirá a meta acordada nos objetivos sustentáveis do desenvolvimento, em 2030. Estamos aquém de outros países com a mesma renda e com sistemas de saúde mais frágeis que o nosso.
As evidências científicas apontam para a necessidade de garantir o acesso ao aborto para proteger as mulheres, e isso é um consenso internacional plenamente estabelecido no campo da ciência.
A prestigiosa revista médica The Lancet publicou um editorial em maio intitulado: “Todos temos que apoiar as mulheres na luta pelo aborto”, colocando o peso das evidências por trás de uma política pública necessária. Estudo publicado neste ano sobre leis restritivas em 162 países concluiu que, quanto maior a flexibilidade das leis de aborto, menor será a mortalidade materna.
E não é só: a descriminalização permite que o sistema de saúde acolha e ampare a mulher que pretende abortar, oferecendo-lhe informações sobre saúde sexual e planejamento, o que previne futuras gestações indesejadas e novos abortos. Isso explica a tendência decrescente em vários países, como nos EUA, onde o número de abortos provocados caiu de cerca de 1,3 milhão, em 2000, para 862 mil, em 2017.
É a descriminalização aliada a uma política de contracepção efetiva com disponibilidade de métodos contraceptivos reversíveis de longa duração que leva à redução do número de abortos e da mortalidade materna, e não a sua proibição.
O papel do Ministério da Saúde não é mudar suas diretrizes ao sabor do vento político. Mas zelar pela saúde da população, com bases cientificamente sólidas e considerando a complexidade do nosso sistema de saúde.
Todo o esforço para dificultar o atendimento às mulheres em situação de risco vai gerar mais mortes, mais sequelas e mais sofrimento. A única maneira de lidar com isso é através de políticas públicas efetivas. Convicções religiosas, cortinas de fumaça criadas por políticos ou dados distorcidos só nos afastam da solução.
Melania Amorim
Professora associada de ginecologia e obstetrícia da UFCG (Universidade Federal de Campina Grande) e do Imip (Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira) e membro fundadora da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras
Cristião Rosas
Médico ginecologista e obstetra e coordenador da Rede Médica pelo Direito de Decidir