Estudo da USP mostra que há consensos entre grupos de orientações ideológicas diversas
(Folha de S. Paulo, 23/10/2019 – acesse no site de origem)
O país está rachado, a cizânia das eleições veio para ficar e não dá mais nem para fazer um almoço de domingo em casa de vó sem que dois primos se engalfinhem. Certo?
Sim. Mas um estudo da Universidade de São Paulo mostra que ainda há certos consensos na sociedade, ao menos na capital paulista.
Pesquisa do Monitor do Debate Político no Meio Digital mostra que, em geral, os paulistanos são contra a discriminação racial, a favor da liberdade da mulher, favoráveis ao respeito aos grupos LGBTs e defensores de punições mais severas a criminosos.
Os pesquisadores ouviram 1.144 pessoas com perfil representativo dos habitantes da cidade em 28 de setembro. Submeteu a eles um questionário com 22 perguntas que ilustram, nas palavras dos autores, “as posições progressista e conservadora sobre as questões mais relevantes do debate público dos últimos 25 anos em torno das chamadas ‘guerras culturais’” (aquelas que dizem respeito a valores comportamentais, éticos e morais).
Com as respostas, a pesquisa constatou que a população paulistana se divide em três grandes grupos, de acordo com critérios ideológicos: os progressistas, identificados à esquerda, são mais jovens, brancos e ricos; os conservadores religiosos, com posições antiaborto e favoráveis ao aumento da punição a criminosos, são majoritariamente cristãos, mais pobres e mais negros.
O terceiro grupo recebeu o nome de punitivistas laicos, com um perfil mais diluído, que, embora defenda leis mais severas contra criminosos, é liberal em temas como o direito ao aborto.
Antagônicos em algumas questões, os grupos têm altas taxas de concordância em determinados temas como direitos das mulheres (exceto aborto), respeito aos homossexuais e rejeição ao porte de armas, mostra a pesquisa.
Ao todo, 98% dos progressistas, 96% dos punitivistas laicos e 84% dos conservadores religiosos concordam com a frase “A mulher deve ter o direito de usar roupa curta sem ser incomodada”.
Também há consenso, embora em menor nível, que cantar uma mulher na rua é ofensivo, que não se deve criticar mulheres que fazem sexo com muitas pessoas e que o lugar da mulher não é necessariamente em casa, cuidando da família.
Para o professor Pablo Ortellado, coordenador do estudo, “a questão das mulheres está surpreendentemente bem assentada”, diz. Para ele, “o que mais chama atenção é ver que São Paulo não é muito conservador” quando se olha o quadro geral.
Embora haja uma opinião majoritária em favor da liberdade feminina, a discussão do aborto divide esses grupos. Enquanto 78% dos classificados como progressistas e 71% dos punitivistas laicos concordam que a mulher deve ter direito a interromper uma gravidez, o índice cai para 19% entre os conservadores religiosos.
E, se 74% desse último grupo afirma que o aborto é errado em qualquer ocasião (mesmo em casos decorrentes de estupro e risco de morte para a mãe, permitidos pela lei brasileira), a taxa entre progressistas e laicos é de 5% e 6% respectivamente.
Os três grupos também concordam que pessoas negras ainda sofrem de preconceito e que a polícia é mais violenta com essa população. Já quando se fala em cotas para inserir negro na universidade, a divisão emerge, com a maior parte dos punitivistas laicos se opondo à medida.
E há nuances de opinião dentro de um mesmo grupo. Se, por um lado, os grupos concordam que a escola deve ensinar a respeitar pessoas gays (com 81% de aprovação entre conservadores religiosos), por outro, discordam que dois homens devem poder se beijar na rua sem serem importunados (só 27% dos religiosos dizem pensar assim).
“É uma ideia de que as pessoas até têm um direito, mas não devem abusar”, resume Ortellado.
Para Ortellado, os consensos em grupos tão heterogêneos reforçam a hipótese de historiadores de que, na verdade, não há uma ascensão do conservadorismo, como se tem repetido nos últimos anos, mas um movimento reativo de conservadores que têm perdido espaço e que, justamente por isso, têm feito mais barulho, em redes sociais, na imprensa e em espaços públicos.
Esse barulho foi chamado de “guerra cultural”: a ideia de que conservadores devem ocupar os espaços de produção de cultura e conhecimento (como universidades, mídia e artes), que seriam, na visão deles, dominados pela esquerda. O expediente é usado nos Estados Unidos desde os anos 1980 (e hoje por figuras como Steve Bannon) e, cada vez mais, também no Brasil (liderado por Olavo de Carvalho).
A pesquisa da USP identificou que essas “guerras” (ou seja, centrar o debate em temas como drogas, punição a criminosos e feminismo) dividiram a população nos três grupos identificados.
Os pesquisadores ressaltam, no entanto, que foi avaliada apenas a concordância às frases expostas, não o comportamento dos entrevistados —ou seja, pode haver, por exemplo, pessoas racistas que evitam expor opiniões racistas.
Por Thiago Amâncio