Cobranças do mercado sobre aparência, que já são altas para mulheres cisgênero, são barreiras a contratações de trans ou travestis, em oposição a qualificação e competência
(O Estado de S.Paulo, 01/02/2020 – acesse no site de origem)
Além de lutar para ser chamada pelo nome social, ser bem tratada por colegas e poder usar o banheiro correspondente à sua identidade de gênero, a transexual ainda é cobrada a se encaixar na imagem que a sociedade tem das mulheres cisgênero (ou apenas cis, que se identificam com o sexo e gênero biológicos com os quais nasceu).
“O padrão para ser lida como mulher é ter seio, cabelo comprido, quadril. Não pode ter barba no rosto”, diz Marianne Clemente, travesti que há três anos trabalha como recepcionista bilíngue em uma multinacional. “O ambiente de trabalho não está preparado nem para nós, que tentamos nos encaixar nessa caixinha, imagina para quem está fora dela.”
Quando diz “nós”, Marianne se refere às transexuais e travestis que, como ela, possuem uma imagem que se assemelha ao que socialmente é entendida como feminina (cabelos longos, feições finas). Mas, se já é difícil para as mulheres cisgênero se adequarem às diretrizes do mundo corporativo – como a exigência de maquiagem, saia e salto alto -, para as trans é ainda pior.
Elas enfrentam o que o mercado cobra como “passabilidade”, que é quando uma trans é vista como se fosse cisgênero (nascida desse jeito), sem despertar olhares preconceituosos. Há três anos recepcionista no Museu de Arte de São Paulo (Masp), Dannyele Cavalcante conta ter hoje liberdade de imagem, mas não quando trabalhava
em uma rede de fast food e precisava se vestir de modo a ser interpretada como mulher cisgênero.
“Estamos a passos de tartaruga. Os corpos são livres. Tem gente que não se sente bem usando maquiagem, pintando o cabelo. É uma particularidade de cada um. A empresa tem que ver o profissional”, diz Dannyele. Para a cofundadora da Transempregos – plataforma que auxilia na inserção de pessoas trans no mercado de trabalho desde 2013 – Maite Schneider, o corpo trans ainda não é entendido em sua pluralidade.
“Empresas mais modernas veem que competência não tem a ver com identidade, gênero ou corpo. Mas muitas usam a aparência como requisito e dizem ‘achamos outra pessoa com um perfil melhor, não só em competência, mas na forma de se vestir, de se portar’.”
Segundo Maite, que também é trans, um dos trabalhos da Transempregos é capacitar dirigentes de empresas para que saibam receber bem a população trans e não haja pedidos de demissão por problemas de preconceito.
Profissionais relatam perceber o aumento de transexuais buscando vagas no mercado, mas não há dados sobre isso. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) informa que, devido a dificuldades técnicas, não há questões sobre identidade de gênero em suas pesquisas, o que poderia comprovar o aumento dessa população.
Adaptação em nome do emprego Marianne e Maite alertam, no entanto, que é preciso entender como funciona o mundo corporativo e se adaptar em alguns aspectos, se a intenção for se manter empregada em um País em que cerca de 90% dos trans precisam recorrer à prostituição para ter renda, segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
“Cada espaço tem seu código. O mundo corporativo pede que a gente seja o mais discreta possível. O que tem de aparecer não é seu rosto, sua aparência, mas seu trabalho”, diz Marianne. Para isso, ela sugere a habilidade de “ser uma camaleoa”. “Ser flexível, permitir se moldar para se encaixar e pertencer, sem deixar de ser quem é. Uma
camaleoa deixa de ser o que é quando muda de ambiente? Não.”
Já Maite aconselha que, antes de se candidatar a uma vaga de emprego, as mulheres pesquisem sobre o local.
“Pelas fotos você já consegue ver que tipo de empresa é, formal ou mais informal. Pessoas trans já relataram que sua identidade não estava sendo respeitada no ramo de alimentação – por conta de unha, esmalte, cabelo longo -, mas nessa área há normas de higiene a serem seguidas.”
Coordenadora do projeto Transcidadania (iniciativa da Prefeitura de São Paulo para promover a reinserção social de travestis e transexuais em situação de vulnerabilidade), Abigaill Santos conta que quebrar o modo sexista que as empresas operam é parte do trabalho diário da organização. “A gente não tenta padronizar as nossas beneficiárias.
Queremos que elas sejam elas mesmas, mas entendendo quais as necessidades do mercado para que elas não sofram ainda mais problemas.”
Para conseguir sobreviver nele, a psicóloga Julia Pires, também trans, chama a atenção para a importância de buscar apoio psicológico. “O mercado já é adoecedor para todo mundo. E a população trans tem que ser melhor, superar expectativas. Isso leva a um esgotamento que pode desencadear depressão, ansiedade. É preciso buscar
ajuda.”
Em nome dos novos tempos
Empregada há seis anos na Accenture Brasil, consultoria de gestão em tecnologia, Melissa Casimiro conta que demorou a encontrar uma empresa na qual se sentisse à vontade. “Hoje eu não aceito quem cobra ‘passabilidade’ e eu tenho sorte de gostar de me maquiar, me vestir e de ter um bom trabalho. Mas, no geral, o mercado cobra que as meninas trans estejam impecáveis”, conta ela, que lá dentro foi promovida de analista sênior para consultora sênior.
Formada em direito, Melissa abandonou a carreira no período de transição, quando começou a deixar o cabelo crescer e recorreu à cirurgia plástica. Foi a primeira funcionária transexual da Accenture Brasil.
“Eu só me apresentei [como mulher trans] quando tive muita certeza que o meu profissional não ia ser abalado e quando eu estava muito segura em relação à minha apresentação como Melissa”, diz.
Hoje, entre os 14 mil funcionários da Accenture Brasil, há sete transsexuais. “Quando Melissa nos procurou, nós começamos a nos aprofundar (sobre o assunto dentro da empresa) por causa dela e por outros que poderiam vir a começamos a nos aprofundar (sobre o assunto dentro da empresa) por causa dela e por outros que poderiam vir a trabalhar aqui. Se não trabalhar bem a equipe, você gera incômodos para ela e para os outros”, explica a diretora de RH da Accenture, Beatriz Sairafi, única mulher cisgênero entrevistada nesta reportagem.
Há alguns anos, a empresa participou da adaptação de um funcionário homem trans (pessoa identificada como mulher ao nascer, mas que hoje se identifica como homem) que, enquanto passava pela transição de gênero, ficou grávido. Foi preciso planejamento da empresa para lidar com questões burocráticas de licença-paternidade e para que ele fosse bem recebido na companhia
Por Marina Dayrell