Protesto surgiu após críticas de parlamentares de Mato Grosso do Sul ao Carnaval e reivindica atenção à pauta feminina
(Folha de S.Paulo, 02/03/2020 – acesse no site de origem)
Única do país sem deputadas, a Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul será o destino nesta terça-feira (3) de um grupo de mulheres que participarão do “Calcinhaço da Democracia”, um protesto para pedir mais atenção à pauta feminina na Casa.
A manifestação, convocada via redes sociais por coletivos feministas e integrantes de partidos como PSOL e PT, é motivada por dois fatores, segundo as organizadoras: a falta de representatividade no Legislativo local e falas de deputados contra o Carnaval consideradas moralistas.
Como a Folha mostrou em dezembro, a Assembleia sul-mato-grossense tem as 24 cadeiras ocupadas por homens, algo que não ocorria desde 1987. A situação reflete o histórico de predominância masculina no poder estadual.
Em 40 anos (o estado é jovem, foi instalado em 1979), apenas 11 mulheres tomaram posse como deputada estadual —a maioria por ter ligações familiares e conjugais com líderes políticos.
“Quem tem medo de calcinha na Assembleia Legislativa terá que correr!”, postou nas redes sociais uma das agitadoras da manifestação, que ganhou corpo depois da primeira sessão pós-Carnaval, realizada na quinta-feira (27).
Na ocasião, parlamentares se queixaram de problemas na festa na capital do estado, Campo Grande, como casos de vandalismo e violência. Foi o discurso do deputado Professor Rinaldo (PSDB), reclamando de transtornos aos fiéis de uma igreja evangélica, que acabou dando o mote ao protesto.
“Tem que respeitar também os direitos daqueles que professam a sua fé. E as cenas que foram apresentadas ali foram terríveis, degradantes. Pessoas urinando em frente ao culto. Teve mulheres que tiraram a calcinha”, afirmou ele ao microfone.
Segundo o tucano, foi descumprido um acordo para que blocos se abstivessem de passar na rua do templo. Os defensores da folia dizem que o combinado foi seguido, mas que foliões usaram a via, que é pública, para chegar às concentrações.
“Relatei o que ouvi dos pastores”, diz Rinaldo à Folha. “Não gosto de Carnaval, mas respeito quem vai e acho que é um direito, desde que não cerceie o direito do outro.” O tucano é fiel da igreja que mencionou no plenário, mas não presenciou a cena narrada.
A menção à roupa íntima feminina incendiou o debate nos grupos feministas. Para parte das manifestantes, o deputado sugeriu que uma peça foi deixada na igreja e deveria ter provas disso antes de propagar a informação. O deputado diz não saber detalhar a situação, já que não a viu.
“Usaram uma sessão inteira para criticar o Carnaval sob alegação de ter encontrado uma suposta calcinha, que ninguém viu, em frente uma igreja”, afirma a advogada Janice Andrade, uma das puxadoras do “Calcinhaço”.
Segundo ela, os comentários de deputados do PSDB, Solidariedade e PSL contra a folia acabaram por criminalizar a festa e seus frequentadores, muitos deles moradores da periferia.
“Defendo o direito de todos ao acesso ao lazer gratuito”, diz a advogada e ativista, integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia. “A indignação de todas as organizadoras é com o descaso dos deputados com as pautas importantes.”
Durante o protesto, as participantes estenderão um varal com calcinhas na frente do prédio do Legislativo. Elas pretendem ainda recolher peças novas, que serão depois doadas a mulheres em situação de rua.
A lista de bandeiras do protesto desta terça é ampla. Vai desde a reclamação pela falta de deputadas na Casa até o pedido para que a Assembleia abrace causas como o combate ao feminicídio, aos estupros, ao assédio, à misoginia e à violência obstétrica.
“São muitos casos de violência contra a mulher no estado, e os deputados falando de uma suposta calcinha”, ressalta Janice.
Diante das roupas penduradas, representantes de movimentos sociais vão expor suas reivindicações. “Estarão lá defensores dos direitos humanos e dos direitos indígenas, uma área que sofre com muitos conflitos, vitimizando principalmente mulheres”, diz a advogada.
Segundo Cris Dias, outra organizadora, o objetivo principal do ato é levantar a voz e “dizer aos deputados eleitos que não há possibilidade nenhuma do exercício da democracia sem a participação das mulheres”.
“É inadmissível não termos nenhuma deputada eleita”, diz a psicóloga, que atua em movimentos feministas e dirige uma revista sobre o tema. O grupo também pedirá que a Casa discuta a sério políticas públicas para a população feminina.
Uma ala das mobilizadoras também está engajada na preparação de atos no próximo sábado (8), quando se comemora o Dia Internacional da Mulher.
Um discurso frequente nos corredores, em defesa dos parlamentares, é o de que a atual legislatura busca suprir a ausência investindo em iniciativas como a criação da Frente Parlamentar em Defesa da Mulher.
O colegiado, composto por dez homens, tem como finalidade oficial “implementar ferramentas para o fortalecimento das políticas e direitos das mulheres de Mato Grosso do Sul”. Na prática, a atuação do grupo tem se restringido a iniciativas de combate à violência doméstica.
A socióloga Jaqueline Teodoro Comin, que pesquisou em seu mestrado a participação das mulheres na política local, atribui a baixa representatividade feminina na política estadual ao que chama de cultura patriarcal, que resultou em um predomínio masculino nos espaços de poder.
O eleitorado do estado que foi às urnas em 2018 era majoritariamente feminino (52%). De 355 postulantes a uma vaga na Assembleia, 101 (28%) eram do sexo feminino.
Na legislatura anterior, três deputadas tinham mandato. Uma delas, Mara Caseiro (PSDB), tentou a reeleição, mas ficou na suplência e não assumiu um assento.
Por Joelmir Tavares