O feito rápido dos cientistas brasileiros logo virou tema de debate político. Mensagens de orgulho e de parabéns se somaram às de defesa da pesquisa nacional
(O Estado de S.Paulo, 04/03/2020 – acesse no site de origem)
“A dra. Ester está famosa. A nossa dra. Ester.” Exibindo um misto de orgulho e uma certa graça, o funcionário do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (USP) guiava a reportagem pelas escadas do prédio enquanto tentávamos encontrar a pesquisadora Ester Sabino no início da tarde dessa terça-feira, 3.
A médica, coordenadora brasileira do grupo de pesquisadores que sequenciaram o genoma dos dois casos de coronavírus no Brasil, está ela própria um tanto impressionada com a atenção que em recebido da mídia e de pessoas comuns desde a última sexta-feira. E não só ela. De maioria feminina, a equipe vive dias de fama – quase um assédio – inesperados nas ruas e nas redes sociais.
O feito rápido dos cientistas – de decifrar o genoma do coronavírus que aportou no Brasil apenas 48 horas após a identificação do primeiro caso da doença no País –, como noticiado pelo Estado no fim da tarde de sexta, logo virou tema de debate político. Mensagens de orgulho e de parabéns se somaram às de defesa da pesquisa brasileira.
Muitos se valeram do avanço científico para contestar declarações do ministro da Educação, Abraham Weintraub, – que já disse que universidades brasileiras tinham “balbúrdia” e “plantações excessivas de maconha”. Mas até a direita fez propaganda com os resultados.
“Eu me assustei mesmo quando vi uma mensagem do MBL (Movimento Brasil Livre), com uma foto minha, um resumo das matérias, com parabéns e pedido de doação para eles. Muita gente que conheço recebeu isso. Me ligaram perguntando se eu era do MBL”, diverte-se Ester.
“E achei graça que na foto que usaram eu era 5.6 e não 6.0, como agora”, brinca, citando a idade. “Depois passei um bom tempo lendo comentários das matérias para tentar entender o que estava acontecendo. Não entendi muito bem ainda, mas acho que foi uma história que mexeu com algum sentimento das pessoas, com o emocional”, opina. “É um sentimento de orgulho pela ciência brasileira, por serem mulheres por trás das pesquisas. Orgulho acho que foi a palavra que mais ouvi”, conta.
A bioquímica Jaqueline Goes de Jesus, de 30 anos, que faz pós-doutorado em Moléstias Infecciosas sob orientação de Ester, afirma que até perfis falsos em seu nome surgiram nas redes sociais depois da divulgação dos resultados. “Não acho que foi por maldade, mas me senti um pouco invadida. Meu instagram tinha mil seguidores – todos pessoas que eu conhecia –, e de repente passou para mais de cem mil. Descobri que teve uma campanha por eu ser mulher, negra, nordestina”, afirma a pesquisadora baiana, de 30 anos.
O susto veio um pouco pela quantidade de compartilhamentos, comentários, novos seguidores e pedidos de entrevistas, mas também pela repercussão da pesquisa em si. “As pessoas falaram bastante de ter sido feito em 48 horas, e na hora a gente pensou: ‘mas isso é normal aqui dentro’. Depois vimos outros pesquisadores elogiando e pensamos: ‘puxa, acho que é uma grande coisa mesmo’”, diz Jaqueline.
Ela se refere ao fato de que a tecnologia usada para sequenciar o genoma do novo coronavírus já vinha sendo usado, por exemplo, para rastrear com a mesma rapidez a atual epidemia de dengue com a mesma rapidez – seu tema da pesquisa atual. Os pesquisadores do grupo vinham trabalhando há alguns anos em formas de simplificar e baratear os equipamentos que fazem o sequenciamento.
Segundo Ester, isso foi possível por causa de cooperação em rede com pesquisadores do Reino Unido que já tinham trabalhado com a epidemia de ebola em 2014. Na ocasião, para fazer o sequenciamento com vírus nos países africanos com o surto, como Serra Leoa, os sequenciadores começaram a ser reduzidos, o que facilitou o transporte e reduziu o custo.
“A tecnologia, na prática, é igual para qualquer vírus. Quando se trabalha em rede e colaborando, não precisamos sentar e desenhar tudo. Uma parte do trabalho já tinha sido feito e outra parte foi acontecer aqui”, explica a pesquisadora.
Com a epidemia de zika, em 2016, esta tecnologia veio para cá e foi barateada, a ponto de ser possível reduzir o custo do sequenciamento de vírus de algo que variava entre US$ 500 a US$ 1.000 para um valor entre US$ 20 e US$ 40 por amostra. O aparelho agora consegue analisar até 20 amostras ao mesmo tempo.
“Com o modelo que havia antes não era possível fazer epidemiologia em tempo real”, diz. “Mas aqui no Brasil temos tido muita epidemia. Então, estamos ficando espertos”, afirma. “Veja a Itália. Quantas epidemias eles tiveram nos últimos tempos? Talvez pudessem ter feito com o sarampo. Mas temos sarampo, zika, chikungunya, dengue, febre amarela. É uma atrás da outra.”
Mulheres se sentiram representadas, diz cientista
Ester, que se formou em Medicina pela USP e fez residência em Pediatria, sempre quis trabalhar com pesquisa e iniciou sua carreira investigando HIV no Instituto Adolfo Lutz, quando o vírus começava a ser entendido, em meados dos anos 1990. Primeira mulher a dirigir o Instituto de Medicina Tropical da USP, já nesta década, voltou à pesquisa com vírus com o zika. E hoje lidera os trabalhos para mapear a dinâmica de epidemias em tempo real e ajudar os sistemas de saúde a responderem a essas ameaças.
Este é o objetivo do Cadde (Centro Conjunto Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus), projeto lançado há cerca de um ano. O foco até então eram vírus de doenças como dengue, febre amarela e chikungunya, num trabalho que se desdobrou da rede criada por cientistas em 2016 para trazer respostas para a epidemia de zika.
Parte do grupo que atuou no sequenciamento do novo coronavírus se conheceu nessa época. É o caso de Jaqueline, então doutoranda da Fiocruz na Bahia, e da também biomédica Ingra Morales Claro, de 28 anos, que era aluna de aprimoramento de Ester. As duas começaram a trabalhar com o monitoramento de epidemias com a zika e continuaram com as demais doenças.
Foi Jaqueline, agora, que esteve à frente dos dois sequenciamentos feitos no Adolfo Lutz. Ela já vinha trabalhando com o instituto para desenvolver lá a aplicação da tecnologia mais barata e rápida de sequenciamento de vírus. Responsáveis pela vigilância epidemiológica, são eles que recebem as amostras dos pacientes infectados para poder testá-las. Desse trabalho, surgiu o interesse de fazer o sequenciamento conjunto do genoma do novo coronavírus.
Apesar de assustada com a repercussão inicial, Jaqueline agora quer aproveitar a onda. “Ganhamos visibilidade como cientistas e isso ajuda a inspirar outras mulheres. A maior parte dos comentários foi porque as mulheres estavam querendo incentivar outras mulheres na ciência. Elas se sentiram representadas, viram que têm em quem se inspirar”, afirma Jaqueline.
Ela planeja agora usar sua conta no instagram, que ganhou milhares de seguidores, para divulgar os trabalhos do grupo. “Vou fazer a divulgação científica das nossas descobertas lá. Mostrar coisas que acontecem na universidade e as pessoas nem sabem. E não serpontual, mas mostrar que a ciência é importante.”
Ingra faz coro. “Nessa época em que estamos no País, com tão pouco incentivo à ciência, é importante mostrar o que estamos conseguindo. E lembrar que é preciso incentivo. Só conseguimos trabalhar nisso porque temos dinheiro da Fapesp (Fundação de Amparo à Ciência do Estado de São Paulo). Nós duas somos bolsistas”, diz. “Fazemos esse tipo de sequenciamento desde 2016, com a zika. Aprimoramos as técnicas. Demos essa resposta rápida agora porque estávamos preparados.”
Por Giovana Girardi, O Estado de S.Paulo