G1 testou atendimento telefônico em rede referendada pela Prefeitura de SP. ‘Na prática, serviço de saúde ainda não garante que as mulheres tenham acesso a esse direito’, aponta defensora pública.
(G1/SP, 08/03/2020 – acesse no site de origem)
“Procura outro hospital ou, se quiser, liga em 15 dias”. A orientação foi dada pelo telefone por uma profissional do atendimento à violência sexual e ao aborto legal do Hospital Tide Setúbal, na Zona Leste, um dos cinco centros médicos municipais indicados pela Prefeitura de São Paulo para prestar o serviço e acolhimento às mulheres na cidade.
Pelo Código Penal Brasileiro, de 1940, o procedimento é permitido em caso de risco à vida da gestante e gravidez decorrente de estupro. Em 2012, o aborto de feto sem cérebro (anencefalia) também deixou de ser considerado crime. Até então, só era realizado após autorização da Justiça.
A reportagem do G1 testou o atendimento inicial e telefônico dos hospitais municipais referendados (veja lista completa abaixo). Dos cinco hospitais indicados pela prefeitura, apenas um – o Hospital Mario Degni, no Jardim Sarah – repassou corretamente as informações.
No Hospital Tide Setúbal, a funcionária explicou que o atendimento está temporariamente interrompido por conta da ausência de uma das profissionais da equipe, que está de férias.
“A gente no momento precisa de uma equipe completa, e nossa psicóloga está de férias”. Sem substitutos, a orientação é esperar o fim do recesso ou buscar atendimento em outro hospital.
Questionados se o aborto era permitido para gravidez decorrente de violência sexual do marido ou namorado, a funcionária demonstrou desconhecimento da lei. “Aí entram situações que a gente tem que avaliar”.
Depois, o G1 conversou com uma assistente social do Hospital, que orientou o retorno em uma semana.
Repórter: Eu queria saber como é que eu faço pra fazer um aborto legal
Assistente: Nós temos o programa aborto legal tá?! Mas é importante fazer o agendamento e tem atendimento com uma equipe técnica.
E como é que eu faço?
Olha, são casos específicos definidos por lei, que é em caso de diagnóstico de feto com anencefalia, ou em situações em que oferece risco pra mãe ou em situações de violência sexual.
E se for meu próprio namorado?
Não é autorizado porque a gente entende que é uma relação consentida
Mesmo que eu não tenha consentido?
Ah, não consentida? Aí entram situações que a gente tem que avaliar. Então nesse caso é como eu tinha te dito inicialmente, nós agendamos um atendimento com a equipe multiprofissional que é a psicóloga, o assistente social e o médico, ai você é avaliada, os exames realizados, tá?! O atendimento não consiste em apenas uma única data, então são alguns critérios que são avaliados
E até que semana eu posso fazer?
A gente pode agendar pra próxima semana, sempre pela manhã
Amanhã não dá?
Não, porque assim, existe uma equipe que faz parte desse programa, então são profissionais específicos pra esse atendimento, não são todos os profissionais do hospital que estão autorizados ou disponíveis para o atendimento, compreendeu?
E amanhã de manhã o pessoal não tá aí pra me atender?
Não, nós não temos os profissionais na data de amanhã, nós só temos com agendamento, mesmo porque, repito, a equipe que está disponível para atender, principalmente a equipe médica que vai pedir solicita exames já te atenderia também e já faria exames, até pra evitar que você compareça em outras datas ou datas além do necessário, nós só poderíamos agendar pra próxima semana
Caso você queira procurar, nós temos outros hospitais na região, tem o hospital do Tatuapé, tá?! Que você também pode procurar.
No Hospital do Tatuapé, a atendente citou os três casos previstos em lei e afirmou não ter mais informações sobre o serviço.
Outros dois hospitais também apresentaram erros no encaminhamento das pacientes ou falta de conhecimento.
No Hospital Fernando Mauro Pires da Rocha, o serviço social disse que as informações só são passadas por ginecologistas do hospital, após atendimento que deve ser feito pelo pronto-socorro.
No Hospital Escola Dr. Mário de Moraes Altenfelder Silva, na Zona Norte, a funcionária afirma que o procedimento, nos casos de gestação decorrente de violência sexual, é realizado somente até a 20° semana de gravidez.
O Ministério da Saúde estabelece, em norma técnica de atenção humanizada ao abortamento, que o procedimento pode ser feito até a 22ª semana de gravidez ou feto pesando até 500 gramas. A limitação de período está prevista apenas para casos de gravidez decorrente de estupro.
No ano passado, o G1 mostrou que entre 1º de abril e 18 de outubro de 2019 Polícia Militar registrou 102.751 chamados de casos de violência doméstica em todo o estado de São Paulo. O número indica uma média de um pedido de socorro a cada 2 minutos e 49 segundos.
Denúncias recorrentes
Recusa, reencaminhamento, além de erros de informação e até desconhecimento da lei (de 1940) e da norma técnica do Ministério da Saúde (de 2005) estão entre as principais denúncias contra os serviços públicos responsáveis pela garantia do direito ao aborto legal em São Paulo recebidos pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
“Criação de quesitos que não existem, negativas que não são explicadas, serviços que são considerados referência pela própria secretaria de Saúde estadual e municipal, mas que quando as mulheres acessam, elas não conseguem atendimento adequado”, destaca Paula Machado, defensora e coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção dos Direitos da Mulher (NUDEM) da Defensoria Pública de São Paulo.
“Na prática, o serviço de saúde ainda não garante que as mulheres tenham acesso a esse direito. Por ser um tema ainda de muito tabu, há resistência da equipe multidisciplinar que acolhe essas pacientes”, afirma a defensora.
Ela revela ainda que é cada vez mais crescente o número de mulheres que recorrem ao NUDEM em busca de informações ou relatos de falhas no serviço. Por conta disso, em 2018, o Núcleo criou uma cartilha que visa orientar os funcionários do serviço de saúde e a população em relação ao tema.
“O atendimento humanizado dessas mulheres precisa acontecer desde o primeiro canal de comunicação (…) As portas de entrada são via telefone, nos portais, nos site. Essas informações têm de estar atualizadas. Se essa informação não estiver correta, a mulher pode perder o direito por conta da má informação”, afirma a defensora.
A falta de acesso à informação sobre o direito à interrupção da gravidez reflete a espiral de um problema crônico não apenas em São Paulo, mas em todo o Brasil, avalia a diretora executiva do Instituto Patrícia Galvão, Jacira Melo.
“Sem informações sobre esse direito e sem saber a quais serviços públicos de saúde recorrer, essas vítimas têm negado um direito previsto no código penal desde 1940. Pode-se dizer que em São Paulo e no Brasil há um boicote explícito na rede de pública de saúde que impossibilita a essas mulheres acessar os serviços de aborto previsto por lei. Na maioria dos hospitais da rede SUS as mulheres encontram desde a recusa de atendimento, fornecimento de informações imprecisas e até desconhecimento da norma técnica do Ministério da Saúde sobre a interrupção da gravidez prevista em lei”, destaca.
Estatísticas
De acordo com a secretaria municipal da Saúde, foram realizados 72 abortos por razões médicas e legais em 2017; 59 em 2018 e 74 procedimentos em 2019. Mais de 80% dos procedimentos foram realizados em decorrência de violência sexual.
Já a secretaria estadual da Saúde afirma que em todo o estado, entre 2015 e 2019 foram realizados mais de 2 mil procedimentos de aborto legal. Cerca de metade deles feitos no Hospital Pérola Byington, um dos principais da rede estadual, por meio do programa “Bem me quer”.
A pasta ainda afirma que o procedimento é também realizado por serviços estaduais de saúde, como Hospital de Base de São José do Rio Preto, e os HCs de São Paulo, Campinas, Botucatu, entre outros.
Psicóloga do Pérola desde o início da carreira, Daniela Pedroso atua há 23 anos no atendimento às mulheres grávidas decorrentes de violência sexual. Segundo ela, o hospital recebe vítimas de todo o Brasil.
“A gente recebe mulheres do país todo, que muitas vezes buscaram serviço de referência em seus estados e municípios e não encontraram”, pontua.
Na avaliação da especialista, o número de atendimentos feitos pelo Hospital não condiz com o montante de mulheres que teriam direito a realizar tal procedimento no país.
“Não expressam a realidade, pois o número de mulheres vítimas de estupro que ficam grávidas e desejam interromper a gestação é muito maior se olharmos a realidade da violência no país”, diz.
Ainda de acordo com Daniela, a maioria das vítimas atendidas no Pérola são mulheres jovens, na faixa dos 22 anos de idade, que professam alguma religião – católica ou evangélica – , e que trazem relato de violência sexual em atividades do cotidiano, indo ou voltando no caminho da escola ou trabalho.
Elas recorrem ao hospital após buscas espontâneas realizadas na internet sobre aborto, sem ter nenhum conhecimento dos casos em que o procedimento é garantido por lei. “As mulheres ainda desconhecem o direito ao aborto em caso de estupro”, relata.
No Brasil, o aborto é permitido em três casos:
- Gravidez decorrente de um estupro
- Risco à vida da gestante
- Anencefalia do feto
Acesso à informação
A lista da rede referendada pela Prefeitura só é encontrada no site da gestão municipal por meio de buscas usando ‘aborto’ como palavra-chave. Na página destinada à violência sexual e doméstica, o direito ao aborto nos casos previstos em lei sequer é mencionado.
O mesmo ocorre no site do Hospital Estadual Pérola Byington, um dos principais centros de referência em saúde da mulher e atendimento às vítimas de violência sexual do país. O site da secretaria estadual de Saúde não contém informações sobre o serviço.
Em nota, a secretaria estadual da Saúde afirma que as informações estão em links específicos, como o do programa “Bem me quer”, do Pérola Byington, em subpáginas relacionadas à violência sexual – os links direcionam à arquivos em PDF com normas técnicas e artigos, mas não informam, de forma objetiva, onde é possível encontrar atendimento.
Histórico
A cidade de São Paulo foi a primeira a implantar o serviço de atendimento às mulheres para interrupção da gravidez nos casos previstos em lei.
Criado em 1989 durante a gestão de Luiza Erundina na Prefeitura de São Paulo, o programa de abortamento legal foi iniciado no Hospital Saboya, popularmente conhecido como Hospital Jabaquara, na Zona Sul. No local, o serviço foi descontinuado em 2017, durante a gestão de João Doria (PSDB).
Hoje dona de uma das cadeiras da Câmara dos Deputados pelo PSOL, Erundina recorda a resistência enfrentada, há três décadas, para viabilizar o projeto dentro da rede municipal.
“Eu sofri pressão também, mas como eu tinha um governo constituído de pessoas que havia uma identidade de compromissos, de princípios que norteavam nosso governo, a política de saúde era encaminhada nos termos mais modernos, avançados. (…) Eu encontrei resistência não interna ao governo, mas externa, mesmo no próprio hospital onde se instalou o serviço. (…) O governo bancou. Foi uma decisão política do governo de operacionalizar na prática, um direito das mulheres, sobretudo das mulheres pobres.”
Na avaliação da deputada, porém, com o avanço de pautas conservadoras no cenário político nacional, a resistência, hoje, tornou-se maior do que a enfrentada por ela na década de 80.
“[Atualmente] É muito maior. Piorou, sobretudo com essa conjuntura de um governo fundamentalista, ultrapassado. (…) Nós estávamos saindo de uma Ditadura, estávamos na vigência de uma nova Constituição, de 88. (…) Era um outro tempo, uma outra visão que se tinha e uma outra sensibilidade a respeito desses problemas. Então, [hoje] temos que recorrer e enfrentar isso na Justiça, no Ministério Público”.
“É lamentável que a gente tenha passado 31 anos de um serviço que está previsto desde 1940, que é o Código penal brasileiro, em seu artigo 128. Não é favor nenhum que governo faça atendimento, isso é uma exigência legal. Mas as pessoas não têm as informações, e o poder público, que é quem deveria prestar não só o atendimento, mas informar as pessoas e sensibilizar os serviços de saúde. Mas isso não ocorre. A gente lamenta pela ineficiência, ineficácia da legislação. Por descuido, por desinteresse do poder público”, afirma a deputada em entrevista ao G1.
Rede referendada
REGIÃO SUL
• H.M. DR. Fernando Mauro Pires Da Rocha – Campo Limpo
- Endereço: Estrada de Itapecerica, 1661 – Campo Limpo
- Fone: 3394-7503 / 7504 / 7730 – serviço social (localizado no Pronto-Socorro)
REGIÃO OESTE
• H.M. Prof. Mario Degni – Hospital Jardim Sarah
- Endereço: Rua Lucas De Leyde, 257 – V. Antonio
- Fone: 3394-9394 (ramais 9395/ 9396/ 9397) – serviço social (localizado próximo à recepção)
REGIÃO SUDESTE
• H.M. Dr. Carmino Caricchio – Tatuapé
- Endereço: Av. Celso Garcia, 4815 – Tatuapé
- Fone: 33947149 ou 33946980
REGIÃO LESTE
Hospital Municipal Tide Setúbal- São Miguel Paulista
- Endereço: Rua Dr. José Guilherme Eiras, 1123
- Fone: (11) 3394-8840 – serviço social (localizado no primeiro andar)
REGIÃO NORTE
• H.M.M. Escola Dr. Mario De Moraes Altenfelder Silva
- Endereço: Av. Deputado Emilio Carlos, 3.100 – V. Nova Cachoeirinha
- Fone: 3986-1151 – serviço social (localizado no ambulatório – sala 12)
- (11) 3986-1128 / 3986-1159 – Pronto-Socorro
Região central
Rede de referência estadual – Hospital Pérola Byington
Hospital:
- Avenida Brig. Luís Antônio, 683
- Bela Vista – São Paulo Referência: Próx. Metrô Liberdade
- Tel: 3248-8000
Ambulatório:
- Rua Santo Antônio , 630
- Bela Vista – São Paulo Referência: Próx. Metrô Anhangabaú ou Terminal de Ônibus Bandeira
- Tel: 3292-9000
Por Lívia Machado, G1 SP — São Paulo