Especialistas e organizações apontam que elas ficam mais vulneráveis à violência e aos efeitos da redução da atividade econômica
(Celina/O Globo, 03/04/2020 – acesse no site de origem)
RIO – Os impactos sociais e econômicos da pandemia de coronavírus são diferentes para homens e mulheres. Especialistas e organizações alertam que é preciso levar em conta essas diferenças na hora de se pensar as respostas para esta emergência global. No Brasil, as mulheres, sobretudo as negras, estão entre os grupos mais vulneráveis aos efeitos desta crise.
Os impactos sobre a população feminina se manifestam em diversas dimensões. Elas estão mais sujeitas aos efeitos da redução da atividade econômica, uma vez que representam boa parte dos trabalhadores informais, os mais vulneráveis em períodos de recessão. Além disso, são a maioria no trabalho doméstico remunerado, que é majoritariamente informal.
Neste momento, também lidam com a sobrecarga do trabalho doméstico não-remunerado, uma vez que acumulam cada vez mais tarefas de cuidado à medida que cada vez mais integrantes da família ficam mais tempo em casa em função do fechamento de escolas, da saturação do sistema de saúde e das recomendações de isolamento social.
O endurecimento das regras de confinamento para conter a propagação da doença também faz com que meninas e mulheres fiquem mais vulneráveis à violência doméstica, uma vez que são sujeitas a conviver com seus agressores por longos períodos. No Brasil, desde o início da quarentena houve um aumento de 8,5% nas ligações para o canal de denúncias de violência contra a mulher do governo federal.
De acordo com a Organização das Nações Unidas, elas representam 70% das pessoas que estão trabalhando na linha de frente do combate à pandemia, como enfermeiras, parteiras e faxineiras. No Brasil, as mulheres são 85% do setor de enfermagem, considerando enfermeiras, técnicas e auxiliares.
— As mulheres estão mais vulneráveis não só porque estão nos serviços menos protegidos, como o trabalho doméstico informal, mas também porque são grande parte da mão de obra nos hospitais hoje. Elas estão na linha de frente, lidando com o risco de contaminação, e estão em setores em que a queda na renda vai ser maior nesta crise — afirma a economista Lucilene Morandi, que coordena o Núcleo de Pesquisa em Gênero e Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF).
As necessidades específicas das mulheres e meninas devem ser contempladas na resposta à pandemia, afirma a ONU Mulheres. A organização divulgou neste mês um guia com 14 recomendações para que as questões de gênero sejam corretamente abordadas neste período.
Para a secretária-executiva da Comissão de Mulheres da Organização dos Estados Americanos (OEA), Alejandra Mora Mora, isso não tem sido levado em conta na maioria das respostas dos países à crise.“Mais uma vez, os impactos diferenciados na vida das mulheres têm sido muito pouco abordados, principalmente no que diz respeito à distribuição de dinheiro e ao direito de viver livre de violência”, alertou a jurista, em artigo.
Os governos e a sociedade precisam colaborar para colocar essas questões à mesa e dar visibilidade às situações particulares enfrentadas pelas mulheres em tempos de pandemia, escreveu Alejandra. Para a jurista, isso é necessário para proteger as vítimas de violência, facilitar o acesso de todos ao cuidado essencial e minimizar o impacto sobre as mulheres na economia informal, especialmente quando elas são chefes de família e as únicas responsáveis por trazer renda para casa.
Vulnerabilidade econômica
A capacidade das mulheres de garantir seus meios de subsistência é impactada pela pandemia já que elas são a maioria dos trabalhadores informais e a maioria dos trabalhadores domésticos, alerta a ONU Mulheres. O impacto é ainda maior entre as mulheres negras pois elas compõem a maior parte destas duas categorias no Brasil.
De acordo com a Síntese de Indicadores Sociais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a participação das mulheres no trabalho informal é superior à dos homens para a maior parte dos grupos de atividade econômica e as taxas mais elevadas de informalidade entre elas ocorrem nas atividades de serviços domésticos, chegando a 71,2% neste segmento.
— Podemos pensar que as mulheres terão a maior perda de renda neste período, já que compõem a maior parte dos trabalhadores informais na maioria das atividades econômicas. Além disso, a gente sabe que um percentual grande das famílias, cerca de 45%, são chefiadas por mulheres. Então isso não vai afetar só a renda delas, mas dos seus filhos e dependentes, que também ficarão mais vulneráveis — afirma a economista Lucilene Morandi, da UFF.
As trabalhadoras domésticas enfrentam pelo menos dois desafios específicos: por um lado têm que lidar com a maior carga de cuidados devido ao aumento do trabalho com mais pessoas em casa, o que faz com elas também fiquem mais expostas à doença; por outro lado, têm mais chances de perder renda a medida que são solicitadas a parar de trabalhar por causa do risco de contágio para elas e para as famílias com as quais trabalharam.
— As famílias que estão preocupadas em manter a sua saúde nesse período estão dispensando os trabalhadores domésticos e diaristas. Mas elas deveriam ter a preocupação, caso tenham conseguido manter sua renda, de não deixar de pagar ao menos uma parcela para o seu trabalhador doméstico. As diaristas, por exemplo, vão ter sua renda zerada de um mês para o outro — alerta a especialista.
Para ela, a redução da renda das famílias de classe média neste período tende a ser menos dramática do que entre as famílias mais pobres, para quem isso pode ter efeitos devastadores. As mais vulneráveis neste cenário continuam sendo as mulheres negras que, ainda de acordo com o IBGE, representam 34,8% da população abaixo da linha da pobreza (considerando a renda per capita de US$ 5,5).
— A família de classe média tem alguma possibilidade de ter uma poupança ou ajuda inter-familiar. Já a família pobre pode se tornar miserável se perder renda. É preciso fazer chegar dinheiro na mão dessas pessoas. É urgentíssimo.
Está é a realidade de Catarina da Silva Vale. Ela tem 59 anos e trabalha como diarista em casas de família na Zona Sul do Rio de Janeiro. Antes da crise causada pelo coronavírus começar, ela trabalhava de três a cinco dias por semana e ganhava entre R$ 150 e R$ 180 por diária. Na semana passada, começou a ser dispensada pelos seus empregadores e agora não tem serviço em nenhum dia da semana. Catarina é responsável por sustentar a família. Vive com o filho de 17 anos, a filha de 20 e um neto de 3 anos em Magé, na Baixada Fluminense.
— As diárias eram minha única fonte de renda. Eu ainda não sou aposentada. É com esse dinheiro que eu me mantenho. E agora estou sem nenhuma diária para fazer — afirma Catarina. Ela conta que duas das famílias para quem presta serviço anteciparam parte do seu pagamento, mas que o dinheiro não é suficiente para o mês inteiro.
— Recebi R$ 600 e consegui fazer umas compras no mercado e pagar a conta de luz. Mas agora que está todo mundo em casa, o gasto vai aumentar — afirma. Além do seu rendimento como diarista, a família conta com o benefício mensal do Bolsa Família recebido pela filha, mãe de um menino de 3 anos.
— Eu não tenho como arrumar outra atividade. É isso que eu faço. E não tenho ajuda de ninguém. Tenho que esperar voltar ao normal. Espero que melhore logo, pois já estou há duas semanas em casa — desabafa.
Catarina provavelmente poderá ser beneficiada pela renda básica emergencial para o trabalhador informal, caso a medida aprovada na Câmara dos Deputados e no Senado seja sancionada pelo presidente. Como é mãe e chefe de família, poderá ter direito ao pagamento mensal de R$ 1.200, caso se enquadre em todos os requisitos.
O impacto da pandemia está sendo sentido mesmo entre as mulheres que dividem o sustento da família com seus parceiros ou parceiras. A designer de sobrancelha e depiladora Simone Anucci, de 37 anos, viu a renda da casa reduzir para menos da metade desde que teve de interromper sua prestação de serviços, há quase três semanas. Ela costumava atender seus clientes a domicílio ou nos salões em que atuava como freelancer, uma vez por semana.
Simone é casada, vive com o marido, uma filha de 18 anos e um filho de 8, que é autista. Há 10 anos, ela trabalha por conta própria e é a principal fonte de renda da família, que agora, neste período de pandemia, terá que se virar apenas com o salário do companheiro da esteticista, que trabalha como segurança patrimonial em regime CLT.
— Minha única renda era o meu serviço. Eu vinha de dois meses mais difíceis, estava reequilibrando as contas depois das despesas de início do ano. Nesse mês, já estou usando a nossa reserva e o cartão de crédito. Estamos vendo gastos que podemos cortar, vamos tentar negociar o aluguel — afirma Simone. Ela acredita que a família vai acabar se endividando neste período, mas diz que está se preparando para oferecer serviços online que possam lhe garantir alguma renda, como cursos ou um ebook.
Violência doméstica
“A violência contra as mulheres já é uma pandemia em todas as sociedades, sem exceção”, afirma Phumzile Mlambo-Ngcuka, diretora-executiva da ONU Mulheres. A chefe da organização também alerta que os níveis de violência e exploração sexual aumentam quando as famílias são colocadas sob as crescentes pressões, causadas por preocupações com segurança, saúde, dinheiro e confinamento.
Na China e na Itália, os índices de violência doméstica se agravaram durante o período de isolamento social mais restrito. No Brasil, ainda existem poucos dados para comprovar um aumento, mas a tendência, segundo especialistas em violência de gênero, é de que o cenário se repita.
Ontem, numa coletiva ao lado do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, disse que o governo está preocupado com o aumento da violência doméstica durante a pandemia. Damares afirmou que houve um aumento de 9% no volume de denúncias recebidas pelo Disque 180, do governo federal. Os dados, segundo a ministra, são referentes a balanço contabilizado até a semana passada e comparado com o mesmo período do ano anterior. Ela não apresentou os dados totais, mas disse que a preocupação é que o confinamento de homens e mulheres durante longos períodos de tempo possa aumentar os registros de violência doméstica. A ministra anunciou que, nos próximos dois dias, será possível fazer denúncias ao Disque 180 e ao Disque 100 por meio de um aplicativo para telefone celular com sistemas operacionais Android e IOS.
Segundo Adriana Mello, juíza titular da vara de violência doméstica do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, foram registrados 724 pedidos de medidas protetivas de urgência no plantão judiciário do estado. Ela alerta, no entanto, que como esta é uma situação inédita, ainda não é possível saber se essas solicitações aumentaram.
— Grande parte das demandas no plantão judiciário são referentes à violência doméstica. São pedidos da Lei Maria da Penha, de medidas protetivas de urgência, afastamento do agressor do lar ou de proibição de aproximação ou contato — explica a magistrada. Ela diz que até mesmo a falta de cuidado do parceiro em relação à pandemia pode gerar um pedido de medida protetiva, pois pode ser considerado um risco para a mulher e os filhos.
Na verdade, a juíza teme que aumente a subnotificação dos casos neste período, pois as restrições de circulação na cidade e a presença constante do agressor em casa podem inibir ainda mais a vítima de denunciá-lo.
— É importante reforçar que se ela estiver sofrendo violência física, pode ligar para 190 e acionar a Polícia Militar. Tem o 180 do governo federal. As delegacias da mulher também estão abertas 24 horas e a Justiça está analisando os pedidos de proteção imediatamente e fazendo inclusive o encaminhamento para abrigos — afirma.
A juíza orienta que qualquer pessoa que presencie ou escute uma situação de violência doméstica na vizinhança neste período de confinamento acione a Polícia Militar por meio do 190. “Se ninguém tomar uma atitude, essa mulher pode morrer”, alerta.