(Boletim Lua Nova, 20/04/2020 – acesse no site de origem)
As primeiras notícias vieram da China: a crise sanitária provocada pela pandemia do COVID-19 e a quarentena imposta à população trouxe consigo o crescimento de denúncias de violência doméstica no país. Com base na entrevista divulgada pela rádio BBC, um periódico brasileiroiii alerta que as denúncias naquele país cresceram a partir de contatos telefônicos com ONGs que atendem vítimas de violência doméstica, registros em delegacias de polícia e através de uma hashtag criada para que vítimas e testemunhas pudessem denunciar a violência. Despertado o interesse, nos dias seguintes outras notícias começaram a povoar as redes sociais anunciando aumento de comunicação de casos em outros países afetados pela pandemia e vivendo sob o decreto do isolamento social: Itália, França, Portugal, Inglaterra, Estados Unidos, Canadá… numa lista que seguirá crescendo na mesma proporção da pandemia. Paradoxalmente, quando, na vida pública, as pessoas se distanciaram socialmente, a violência que ocorre de forma cotidiana, oculta e silenciosa no âmbito doméstico, se tornou visível na sociedade.
A notícia chamou a atenção no Brasil. Por aqui, logo começaram a surgir matérias jornalísticas relatando o aumento de denúncias de violência doméstica, apesar do curto período de medidas de distanciamento social que estamos vivendo. E como costuma ocorrer no Brasil, o fascínio pelos números da violência fez com que, em pouco tempo, o problema, que já é grave, trouxesse mais angústia em torno de um cenário já tão assustador quanto o próprio vírus.
Antes de embarcar no pânico dos números desenfreados, é prudente tomar uma pausa para pensar. E não se trata de questionar o impacto das crises no aumento da violência de gênero contra meninas e mulheres, mas refletir sobre o bom uso dos números e a responsabilidade de cada um ao revelar esse “fenômeno”.
Pandemia e violência de gênero contra as mulheresiv
Historicamente, em situações de extrema ruptura social causadas por crises políticas, econômicas ou sanitárias, homens e mulheres sofrem todas as consequências que são trazidas por essas situações – deslocamentos forçados, perda de casa e bens, medo, insegurança, fome, doenças. No caso das mulheres e meninas, cada uma dessas consequências acaba por vir acompanhadas de agravamentos de violências de natureza física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, com os devidos e duros contornos da violência que se vê baseada no gênero. Nesses contextos, a ausência de instituições responsáveis por dar respostas às violências de gênero acaba sendo ainda mais sentida na sociedade, com recuo de possíveis ganhos institucionais de contenção e enfrentamento a essas violências existentes nos períodos de normalidade.
Na história mundial, existem muitos exemplos das maneiras como situações tão extremas se convertem em maior violência sobre os corpos e formas de existir das mulheres, como os estupros em tempos de guerra. Apenas para dar exemplos recentes: a guerra da Bósnia, nos anos 1990, ganhou grande repercussão com os campos de estupro de mulheres da Sérvia; outro exemplo é a violência sexual contra mulheres sírias durante a travessia para países europeus. Nas epidemias como de ebola, cólera e Zica, a violência sexual contra mulheres também foi usada como forma de controlar o acesso a comida, medicamentos e tratamentos para as mulheres e seus filhos. Infelizmente, a lista pode se multiplicar rapidamente com exemplos de diferentes tempos e territórios. O importante é sempre relembrar que a violência de gênero contra mulheres e meninas é uma violação de direitos humanos que não se circunscreve a fronteiras territoriais, nem barreiras sociais.
Embora os exemplos sejam fartos, infelizmente são situações que muitas vezes passam despercebidas para a maioria das populações por ocorrerem em lugares distantes, longe dos olhos e do coração. E talvez essa seja uma diferença em relação à crise que vivemos atualmente. A pandemia do COVID-19 está presente nos centros urbanos e o isolamento social proposto em muitas cidades, como forma de conter a propagação do vírus, despertou um tipo de convívio comunitário muitas vezes evitado ou esquecido nas grandes cidades. Agora os movimentos nas casas dos vizinhos tornaram-se muito mais próximos e perceptíveis. Em razão dessa proximidade – paradoxalmente ocasionada pelo isolamento –, a ocorrência de violências domésticas passa a ser problema mais visível e audível. E talvez aqui esteja uma primeira explicação às reações mais intensas e rápidas na busca por canais de denúncia que possam responder ao problema da violência doméstica, gerando assim uma maior proliferação de números evidenciados pelos pedidos de ajuda.
De fato, se é seguro estar em casa para evitar a contaminação pelo coronavírus, para muitas mulheres e meninas essa segurança é relativizada pela convivência com parceiros e familiares agressores e abusadores sexuais. Já faz tempo que a velha ladainha de que o “lar é o lugar mais seguro do mundo” perdeu força como verdade universal e incontestável. É no espaço doméstico e das relações familiares que meninas e mulheres de todas as idades ainda sofrem grande parte da violência cotidiana com base no gênero. E esse conhecimento levou a que diferentes entidades internacionais que trabalham com direito humanos das mulheres publicassem recomendações sobre a importância dos governos garantirem que os serviços essenciais estejam acessíveis para o atendimento a essas mulheres e meninas, incluindo o atendimento psicossocial e abrigos para mulheres e seus filhos, sem negligenciar os serviços de segurança pública, justiça e saúde, que devem disponibilizar formas de acesso ao atendimento remoto para que sejam preservadas as medidas de isolamento decretadas em vários países. Os mesmos documentos também alertam para a incidência diferenciada da violência de gênero para mulheres trabalhadoras domésticas, trabalhadoras da saúde, refugiadas etc.
Os números da violência
Há algumas décadas vem sendo construída a mensagem de que a violência contra as mulheres é uma grave violação de direitos humanos, problema social que tem impactos na economia e na saúde das pessoas e das nações. Se, por um lado, a violência se repete em diferentes países nos cinco continentes e possui características comuns, por outro, ela também tem diferenças na forma como ocorre, nos níveis de tolerância social que encontra e na resposta que os governos oferecem para enfrentar o problema. Ainda mais, mulheres e meninas não formam um grupo homogêneo e sua diversidade também reflete diferenças na forma e intensidade da violência baseada no gênero. Desde os anos 1990, as Nações Unidas recomendam aos Estados membros que adotem leis adequadas para enfrentar a violência que afeta suas cidadãs. Recomendam também que sejam criados planos e programas de apoio à implementação às leis, que prevejam a criação de serviços, capacitação de profissionais e investimento de recursos financeiros que sustentem essas ações não apenas em caráter emergencial, mas de modo duradouro. Alguns países seguem as recomendações com mais compromisso, outros com menos.
Os números que vemos circulando sobre violência contra as mulheres durante o isolamento social em vários países ajudam a refletir sobre esse compromisso. Os primeiros números chineses indicam que denúncias à polícia teriam triplicado no período da pandemia. Outras informações se referem ao aumento de ligações telefônicas para serviços mantidos por grupos e entidades que atendem mulheres em situação de violência no país. Linhas telefônicas que oferecem orientação psicossocial e jurídica para mulheres em situação de violência existem em muitos países. Algumas são nacionais – como o nosso Ligue 180 –, outras são mantidas pelos governos estaduais, provinciais ou municipais. É frequente encontrar serviços de atendimento psicossocial e orientação jurídica que são mantidos por organizações feministas e entidades da sociedade civil que trabalham na área de violência contra as mulheres. O que queremos alertar é que em muitos países onde o aumento de procura foi verificado durante a crise, são aqueles em que estes serviços não só existem, mas também são referência para as mulheres. Outro alerta é que os números dos outros países pertencem a eles e não podem ser interpretados fora do contexto social, político, econômico e cultural em que foram produzidosvi.
No Brasil
A reação nacional ao alarme mundial sobre o impacto do isolamento no aumento da violência contra as mulheres foi rápida e logo começamos a acompanhar louváveis iniciativas para ajudar as mulheres e meninas que estão sofrendo violência doméstica nesse momento de crise. As campanhas que chamam a atenção da população para um possível aumento da violência são sempre bem vindas. É importante não perder de vista o fato de que essa violência é parte do cotidiano de muitas brasileiras e manter a “pauta quente” é uma estratégia importante nesse momento em que estamos intensamente mobilizados pelas medidas de isolamento e pelos números de contaminação e de mortes pelo vírus.
Também é louvável o esforço em disponibilizar linhas telefônicas, apps, chats, vídeo chamadas, redes sociais, hashtags e toda forma de recurso tecnológico acessível para conectar as mulheres e profissionais que possam ajudá-las com orientações, atendimentos e apoio. Campanhas e recursos ajudam a romper o distanciamento e mostrar para as mulheres que lá fora alguém se preocupa com elas.
Contudo, muitas dessas alternativas são recentes e apenas reproduzem no ambiente virtual aquilo que os serviços fazem cotidianamente. Não há como negar que as mudanças que estão sendo vividas requerem muitas adaptações. Instituições inteiras suspenderam suas atividades presenciais – na área da justiça, por exemplo – e transferiram seus profissionais e atividades para o home-office onde seguem o trabalho de forma remota. Nas áreas de segurança pública os serviços continuam funcionando, mas as adaptações e rearranjos também estão ocorrendo para responder às urgências do coronavírus sem descuidar da atenção com segurança para toda a população. A saúde é, nesse momento, a área mais afetada com a concentração de recursos humanos, materiais, financeiros e físicos para atender os casos relacionados à pandemia. Além de ser o serviço com maior potencial de contaminação, devendo ser procurado apenas nos casos em que haja sintomas da doença. Na interface da saúde e segurança, os institutos médicos legais enfrentam as mesmas limitações de atendimento.
No caso dos serviços destinados a atender mulheres em situação de violência, a situação é ainda mais grave, pois a adaptação de atendimento precisa ser feita a partir de serviços que cotidianamente funcionam com poucos recursos materiais e humanos. É o caso dos equipamentos da assistência psicossocial, dos centros de referência especializados e das casas abrigo para mulheres em situação de violência, que também continuam atendendo e precisando se adaptar ao trabalho remoto ou às medidas de segurança e proteção no contato presencial. Diante desse contexto, todos necessitam de tempo para se adaptar e encontrar a melhor forma de funcionar e manter a qualidade dos serviços, o que envolve apoio institucional, revisão de protocolos e processos de trabalho. Não sabemos quanto tempo ainda viveremos nesse mundo paralelo criado pelo distanciamento social. Por isso, é importante aproveitar a oportunidade e repensar se as respostas que têm sido dadas para as mulheres em situação de violência doméstica e familiar são as mais adequadas para esse contexto de excepcionalidade que vivemos.
Dados estatísticos são ferramentas úteis para o êxito desse processo e para essa finalidade deveriam ser produzidos e utilizados. Essa recomendação é válida para qualquer tempo, independente de crises, mas agora requerem maiores cuidados. Saber qual o movimento de procura pelos canais disponibilizados para a população em busca de orientações, acolhimento ou denúncia de formas de violência de gênero contra mulheres e meninas é um primeiro passo para saber se o canal está de fato acessível, qual sua capacidade de recepção e de retorno. Mas outros cuidados são necessários; e acompanhando a recente repercussão dos números de violência doméstica no Brasil, abaixo estão algumas reflexões que gostaríamos de compartilhar:
- É preciso tempo para observar o movimento dos registros e compreendê-lo. Antes de divulgar números da violência devemos conhecer e compreender o que estão demonstrando. Estamos o tempo todo sendo bombardeadas na mídia com os números da contaminação, de mortes, picos e curvas construídos a partir de modelos estatísticos cuidadosamente desenvolvidos para mostrar a evolução da pandemia do coronavírus no país e no mundo. Deveríamos ter rigor igual ou minimamente semelhante com os dados da violência contra as mulheres e meninas. O aumento pontual no número de registros policiais e chamadas virtuais não necessariamente indica que houve um aumento da violência. Eles podem apenas sinalizar um aumento na procura por esses canais responsáveis por acolher ou dar informações a respeito de casos de violência contra as mulheres. Podendo, então, representar um aumento influenciado pelas próprias campanhas que divulgam esses serviços – como já foi identificado em tantos outros momentos em que campanhas foram veiculadas.
Esse pode ser o caso dos dados divulgados pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) anunciando aumento de 9% de chamadas nas ligações recebidas em março de 2020 quando comparadas ao mesmo período de 2019.vii O curto período de observação não permite saber qual fator interferiu no aumento, mas uma variável de interesse para a análise desses dados é que, desde o início de março de 2020, o serviço está recebendo publicidade intensa em todas as campanhas divulgadas por entidades de estados e municípios – algo que não ocorreu durante 2019. Além disso, um cuidado adicional deveria ser tomado com a divulgação dos dados, uma vez que a plataforma de dados criada pela Ouvidoria do MMFDH divulga conjuntamente os números de denúncias recebidas pelo Ligue 100 e o Ligue 180. viii
Da mesma forma, notícia recente sobre o aumento de feminicídios em contexto doméstico no estado de São Pauloix acendem o alerta sobre a gravidade da situação vivenciada pelas mulheres, mas além do curto espaço de tempo observado a análise dos dados requer sensibilidade para entender a relação entre as mortes e o contexto de crise. Uma análise retrospectiva ajudaria a saber se as mulheres assassinadas já sofriam violência e se já haviam procurado ajuda anteriormente, e essas são informações valiosas para o gestor das políticas de enfrentamento à violência.
- Qualificar os dados ajuda a conhecer a demanda e planejar melhor a intervenção. Ainda que seja possível afirmar que o isolamento social pode aumentar a violência doméstica contra as mulheres, é preciso estar sensível para compreender como essa relação ocorre por exemplo, na intersecção entre gênero e outros marcadores de desigualdade social. Embora qualquer mulher ou menina possa sofrer violência baseada no gênero, sabemos que a ocorrência não se distribui por igual na população e que nem todas as mulheres e meninas possuem as mesmas condições para enfrentar a violência, o que faz com que as análises interseccionais se tornem ainda mais importantes para a compreensão do fenômenox. Os dados já conhecidos sobre homicídios de mulheres segundo raça/cor evidenciam o maior impacto das mortes em desfavor das mulheres negrasxi. Da mesma forma, as condições de isolamento social são diversas e novamente há maior precariedade social entre as populações economicamente desfavorecidas, majoritariamente composta por negros e pardos.xii
Nessa mesma perspectiva, a análise se estende para mulheres idosas, entendidas como do grupo de risco no atual contexto e que passam ainda por situações mais delicadas para garantir suas necessidades básicas, como a alimentação, estando ainda mais sujeitas a violências como as patrimoniais e morais. O mesmo vale para mulheres e meninas com deficiências.
Sem prolongar, mas também sem negligenciar as necessidades específicas de outros grupos de mulheres, é preciso estar sensível para as mulheres indígenas, quilombolas, do campo e da floresta e para aquelas que estão inseridas nas instituições prisionais e socioeducativas. A violência de gênero é transversal e mesmo quando queremos apenas chamar a atenção para a violência doméstica e familiar é preciso estar atenta aos outros contextos de sua ocorrência.
- Estar sensível às mudanças na forma de manifestação da violência. É importante ter informações que ajudem a captar mudanças e recorrências na forma como essa violência pode se expressar durante a situação de crise, como atualmente provocada pela pandemia do COVID-19. A presença de muitas pessoas na casa pode levar à exacerbação de algumas formas de violência mais discretas e facilmente toleradas por todos, como as formas de violência psicológica, moral ou patrimonial, que podem aumentar e apresentar outras formas de manifestação (principalmente relacionadas à sobrecarga do trabalho doméstico e de cuidados que podem amplificar sofrimento psíquico e físico). Mulheres e meninas que vivem em lares violentos poderão viver o agravamento da situação, seja pela intensidade e/ou por sua frequência, incluindo a violência física e sexual. Mesmo aquelas que vivem relacionamentos afetivos e familiares harmoniosos podem ser surpreendidas por situações de violência desencadeadas pelo aumento de estresses e tensões vivenciados em decorrência do isolamento e problemas associados a ele (desemprego, sobrecarga de trabalho, abuso no consumo álcool e drogas, entre outros).
Não se trata de diminuir ou menosprezar a gravidade da situação e da ocorrência de um número relativamente mais alto de casos, mas ter o olhar sensível para entender as multiplicidades de causas que são ativadas quando se trata de violência de gênero. Nessas situações, a compreensão dos fatores conjunturais a partir de uma leitura sensível a gênero e suas intereseccionalidades é tão importante quanto o reconhecimento das causas estruturais baseadas na desigualdade de gênero e no machismo estrutural. É preciso compreender as nuances das situações vividas pelas mulheres e avaliar sua ocorrência a partir de uma dimensão causal que é política e que se reflete como ausência de políticas públicas adequadas.
- Não basta divulgar números de produtividade: números de registros efetuados pelas polícias, números de atendimentos realizados ou medidas protetivas solicitadas nas delegacias. É preciso conhecer e avaliar a resposta e os encaminhamentos dados a cada um deles. É o resultado de cada demanda que mostrará se o canal de comunicação com as mulheres é eficiente ao conduzir os pedidos de ajuda a uma solução. Especialmente com relação às medidas protetivas de urgência, não é suficiente saber a quantidade de medidas que são deferidas pelo Poder Judiciário. É preciso que os tribunais também informem quais os tipos de medidas deferidas para que os gestores públicos possam avaliar a adequação dos meios disponíveis para que sejam cumpridas e monitoradas através dos programas que já existem (como as equipes policiais que monitoram as medidas – chamadas Patrulha ou Guarda Maria da Penha – ou o uso de monitoramento eletrônico) e assim garantir que as mulheres estejam de fato protegidas da forma como necessitam.
- A redução do número de atendimento deve ser tratada com o mesmo cuidado que se dedica ao seu aumento. Não podemos esquecer que, em tempos de normalidade, as mulheres enfrentam inúmeros obstáculos para procurar ajuda quando sofrem violência. Nesses tempos excepcionais, todos os obstáculos tornam-se ainda mais difíceis de serem superados. Por isso, a baixa procura pelos serviços deve ser analisada com atenção. Deve-se buscar compreender quais podem ser as dificuldades enfrentadas pelas mulheres e meninas para pedir ajuda e quais os ajustes necessários para que o atendimento, quando necessário, chegue até onde elas estão. Em alguns países, por exemplo, passadas as primeiras semanas de isolamento, foi preciso avaliar se a disponibilidade de linhas telefônicas é o melhor canal de atendimento, uma vez que o controle e vigilância do agressor, ou a proximidade de outros membros da família, podem dificultar o contato pela mulher. O isolamento social já é uma realidade para muitas mulheres que vivem com homens agressores e que controlam seus telefones, as senhas de aplicativos de mensagens, os contatos com familiares e amigas. A convivência obrigatória intensificada pelo distanciamento social termina por deixá-las mais vulneráveis, caso seus pedidos de ajuda sejam descobertos pelo agressor. Desenhar os cenários de risco que as mulheres podem enfrentar para pedir ajuda pode auxiliar gestores e profissionais a compreenderem a redução de ligações e contatos pelas mulheres e como essa iniciativa poderá ser aprimoradas.
- Números de violência não são autônomos, mas retratam a capacidade dos canais institucionais recebê-los e sistematizá-los. Registros oficiais de violência são produzidos por instituições e cada uma possui um conjunto de códigos e sistema próprio para captação, registro, classificação e processamento das informações. Códigos e sistemas são moldados de acordo com as atribuições e competências institucionais. Polícia e justiça trabalham com aqueles eventos que podem ser considerados crime de acordo com a lei; a área da Saúde trabalha com o que está relacionado à saúde física ou mental (pode ser violência, mas não necessariamente é crime); por sua vez, os Serviços de assistência psicossocial especializados no atendimento de mulheres muitas vezes atendem casos que não chegam nem ao conhecimento da polícia nem da saúde, mas que envolvem violências que ferem a autonomia das mulheres, sua capacidade de decisão e seu desenvolvimento pessoal. Cada um desses sistemas é capaz de produzir dados e estatísticas a partir de um recorte institucional. Esses dados sempre serão um retrato parcial da realidade. Por isso, ao divulgá-los, nunca se deve dissociá-los da fonte que os produziram. Eles não são o todo, mas apenas uma parte. E quando se perde de vista a fonte que os geraram, o número pode provocar visões equivocadas e distorcidas sobre o problema que se pretende evidenciar.
Para além dos números
Não temos dúvida sobre o aumento da violência que pode estar atingindo muitas mulheres e meninas que estão sob o controle e a convivência forçada com seus agressores, ou suas agressoras, nesse momento. A violência de gênero se adapta muito rapidamente às mais diversas configurações sociais a que vão sendo moldadas. E isso nos preocupa tanto quanto o uso precipitado dos números e a falta de cuidado com seu manuseio.
A convocação para a denúncia da violência contra as mulheres é uma constante, independentemente das crises sociais que possam ser vividas, uma vez que os números de violência que conhecemos no Brasil demandam intervenções permanentes. No entanto, preocupa-nos que essa convocação continue circulando na sociedade sem que se reflita criticamente sobre a real capacidade da rede de serviços especializados em absorver a demanda das mulheres e dar respostas efetivas a elas. A preocupação que nos leva a escrever esse texto é justamente a dúvida sobre o que virá depois das denúncias, das chamadas telefônicas, dos pedidos de ajuda. Os serviços foram adequadamente preparados para modificar suas rotinas de trabalho e atendimento ou apenas temos a transposição para o mundo virtual das lacunas de informações e da descontinuidade dos fluxos de encaminhamentos que são responsáveis pela revitimização institucional de tantas mulheres que cotidianamente procuram esses atendimentos?
O cenário até 2014 era de incansáveis batalhas para garantir aquilo que se entendia ser o mínimo para uma ação estruturada de enfrentamento à violência contra as mulheres: a) uma política nacional planejada e em diálogo com os direitos conquistados, b) uma estrutura institucional com poder para elaborar e monitorar tal política e c) orçamento público previsto. Desde 2015, cada um desses pilares foi sendo deliberadamente desestruturado no Governo Federal. O efeito dominó, chegando até às portas dos serviços de atendimento, foi inevitável e notório quando os serviços que atendem mulheres em situação de violência doméstica e familiar e violência sexual (sobretudo na área da saúde) passaram a enfrentar restrição de recursos técnicos e financeiros, incluindo o fechamento de algumas unidades. De acordo com o IBGE, entre 2007 e 2013, o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres promoveu a expansão de serviços especializados para atendimento da violência doméstica e familiar contra mulheres. No período seguinte, no entanto, houve uma redução de aproximadamente 35% no número de serviços, afetando principalmente as áreas da segurança pública e assistência social (especialmente, centros de referência especializados de atendimento às mulheres)xiii.
Nos últimos cinco anos, a política nacional de enfrentamento à violência sofreu vários e profundos cortes orçamentários; e no atual governo há uma aposta no voluntariado para movimentar as ações que deveriam ser responsabilidades do Estado. Contudo, nem tudo pode ser explicado pela falta de orçamento. O levantamento realizado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) mostrou que o MMFDH executou, até o momento, apenas 0,13% dos 394 milhões de reais disponíveis em 2020 para as políticas relacionadas à promoção de direitos humanos sob responsabilidade da pasta. O recurso é proveniente de emendas parlamentares e, com adequado planejamento, poderia ser destinado em convênios para estados e municípios incrementarem suas capacidades de atendimento. Na área de enfrentamento à violência contra as mulheres, são 132 milhões de reais, cujo maior montante está destinado à construção das Casas da Mulher Brasileira – obras que seguramente deverão permanecer paralisadas pelo próximo ciclo orçamentárioxiv. Esses são alguns exemplos de como a atuação do gestor público poderia ser melhor administrada frente a crise se tivesse números e dados disponíveis para a análise do cenário social no momento mais imediato.
Reflexões para seguir compartilhando
O que se busca com essas reflexões não é duvidar da gravidade do problema da violência doméstica contra as mulheres, muito menos tapar os olhos sobre o possível crescimento ou agudização de situações em que mulheres vão se ver em maior sofrimento em face do isolamento social como prevenção ao COVID-19. Ao contrário, quer se fazer um chamado para que, em mais um momento de crise social, política e econômica, se busque informações e ações que deem conta de dar respostas estruturantes a essas situações.
Expor números de violência pode ajudar a manter a violência em pauta e transmitir para as mulheres a mensagem de que não estão sozinhas. Mas o mais importante é usar esses dados para avaliar se os caminhos que estão sendo construídos são os mais adequados e contribuem para prevenir a violência doméstica para que alcance os níveis de pandemia.
Essa é a forma mais responsável e duradoura de se buscar respostas para uma das maiores incógnitas em todo o mundo: como será o depois? A nossa aposta é de que o “depois” ainda surgirá com a variável constante da desigualdade de gênero e de suas consequentes violências, infelizmente. E passado o isolamento social, como estaremos preparados para o acumulado de dores das violências sofridas durante a quarentena juntando-se às violências de gênero que acontecem todos os dias foram do âmbito doméstico? Que resposta institucional teremos estruturada para dar conta desse “depois”?
O contexto descrito nos parágrafos anteriores é o pano de fundo para o crescimento da violência de gênero contra as mulheres e é preciso entender essa conexão. Explicações para a violência que se limitem a perguntar por que a violência continua a ocorrer a despeito da existência de leis, não nos levarão muito adiante. Se o Estado não garante os meios necessários para a aplicação das leis e o desenvolvimento das políticas não haverá mudança possível.
Se o momento é difícil ele deve ser usado a nosso favor e em favor de todas as mulheres. Refletir sobre o percurso de enfrentamento à violência de gênero contra as mulheres que foi percorrido até 2014 pode nos ajudar a mudar a chave da discussão, buscando um novo paradigma para a ação que tenha mais foco na prevenção da violência e na transformação social.
Por Wânia Pasinatoi e Elisa Sardão Colaresii
Notas:
i Doutora em Sociologia ( FFLCH/USP). Consultora especializada em gênero e políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres. Membro do Consórcio Lei Maria da Penha pelo Enfrentamento a Todas as Formas de Violência de Gênero contra as Mulheres e Pesquisadora Colaboradora do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Democracia, Política e Memória do Instituto de Estudos Avançados/ USP.
ii Doutora em Ciências Sociais pelo Departamento de Estudos Latino Americanos da Universidade de Brasília e Analista Técnica de Políticas Sociais no Governo Federal, atualmente é Pesquisadora no Conselho Nacional de Justiça.
iii Disponível em:https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2020/03/violencia-contra-mulher-aumentou- durante-quarentena-da-covid-19-na-china.html. Acesso em: 16 Abr, 2020
iv Nesse texto utilizamos violência contra mulheres, violência contra mulheres e meninas, violência doméstica e violência de gênero como sinônimos sem esquecer a precisão conceitual de cada categoria, mas apenas para tornar a repetição menos enfadonha.
v Ver, por exemplo: Gênero e Covid-19 na América Latina e no Caribe: dimensões de gênero na resposta. ONU Mulheres, março de 2020. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2020/03/ONU-MULHERES-COVID19_LAC.pdf, COVID-19 and violence against women. What the health sector/system can do. WHO/human reproduction programme, 26 de março 2020. Disponível em: https://www.who.int/reproductivehealth/publications/emergencies/COVID-19-VAW-full-text.pdf?ua=1 , e Comunicado: COVID-19 y el reforzamiento de acciones para la prevención y atencción de la violencia de género. MESECVI: Comité de Expertas del Mecanismo de Seguimiento de la Convención de Belém do Pará, 18 de marzo de 2020. Disponível em https://us7.campaign-archive.com/?e=09c5e4b43f&u=f4f9c21ffdd25a4e4ef06e3c2&id=e24af3117b. Ver também: ARTIGO: COVID-19 oferece oportunidades de corrigir as desigualdades na vida das mulheres. Disponível em: https://nacoesunidas.org/artigo-covid-19-oferece-oportunidades-de-corrigir-as-desigualdades-na-vida-das-mulheres/ . Acesso aos artigos em: 16 Abr, 2020
vi Por exemplo, com relação ao aumento de registros policiais noticiado na China, o dado se refere a uma delegacia de polícia na província de Hubei (no condado de Jianli) que recebeu três vezes mais denúncias de violência doméstica em fevereiro de 2020 (162 denúncias) do que em fevereiro de 2019 (47 denúncias). Para entender o impacto desse aumento é preciso compreender o contexto social em que se produziu.
Disponível em: VAWG Helpdesk Research Report N. 284
vi Coronavírus: sobe o número de ligações para canal de denúncia de violência doméstica na quarentena. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/marco/coronavirus-sobe-o-numero-de-ligacoes-para-canal-de-denuncia-de-violencia-domestica-na-quarentena. Acesso em: 16 Abr, 2020
viii Ministério já recebeu quase 5 mil denúncias de violações de direitos humanos relacionadas ao novo coronavírus. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/abril/ministerio-ja-recebeu-quase-5-mil- denuncias-de-violacoes-de-direitos-humanos-relacionadas-ao-novo-coronavirus. Acesso em: 16 Abr, 2020
ix Assassinatos de mulheres em casa dobram em SP durante quarentena por coronavírus. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/assassinatos-de-mulheres-em-casa-dobram-em-sp-durante-quarentena-por-coronavirus.shtml. Acesso em: 16 Abr, 2020
x Adotando a interseccionalidade como “uma lente analítica sobre a interação estrutural em seus efeitos políticos e legais.” (Carla AKOTIRENE. Interseccionalidade. Feminismos Plurais. SP: Sueli Carneiro/Pólen. 2019) p.63
xi Ver: Atlas da Violência – 2019. RJ: IPEA, 2019.
xii Dados do Ministério da Saúde mostram como a contaminação e as mortes por coronavírus segundo a cordas pessoas vitimizadas pela doença. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/coronavirus-e-mais-letal-entre-negros-no-brasil- apontam-dados-da-saude.shtml. Acesso em: 16 Abr, 2020
xiii Ver, por exemplo: Perfil dos Estados Brasileiros – 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2019, Secretaria de Políticas para as Mulheres. Relatório de Gestão. 2011/2014. Brasília: SPM, 2014.
xiv O governo que odeia as mulheres: a inércia de Damares Alves na crise da Covid-19 . Disponível em: https://www.inesc.org.br/es/o-governo-que-odeia-as-mulheres-a-inercia-de-damares-alves-na-crise-da-codiv-19//. Acesso em: 16 Abr, 2020.
Referência imagética:
https://www.psicologiasdobrasil.com.br/violencia-contra-mulheres-e-meninas-e-pandemia-das-sombras/ (Acesso em 18 de abr. 2020)