(Agência Patrícia Galvão | 21/07/2020 | Por Beatriz Accioly)
Nas últimas semanas, com alguma frequência, a #exposed seguida do nome de alguma cidade brasileira figurou entre os trending topics – assuntos mais comentados – do Twitter. Trata-se de relatos espontâneos de situações de desrespeito e violação sofridas por meninas e mulheres que, com o auxílio da potência organizadora e disseminadora da ferramenta da hashtag, lançam desabafos, dores e denúncias em pixels que rapidamente se avolumam e espalham pela rede com consequências inesperadas, para o bem e para o mal.
Se a expressão exposed aparece como novidade, a organização de demandas de mulheres a partir da utilização da hashtag já tem uma relevante história recente no Brasil. Nos idos de 2013, por exemplo, #meuprimeiroassedio e #meuamigosecreto mobilizaram centenas de milhares de narrativas que contavam o quão disseminadas e naturalizadas costumam ser situações de violências cometidas contra meninas e mulheres, em casa e na rua, na escola e na internet, com crianças e adultas, vinda de estranhos ou de conhecidos.
Para além de comoção cibernética, os debates online acerca dos danos oriundos do assédio nas ruas a mulheres e meninas ajudaram a fortalecer slogans de demandas já existentes pelos direitos pelas mulheres (como “meu corpo, minhas regras”) bem como a produzir mudanças jurídico-legislativas relevantes, como a promulgação da lei que criminaliza a “importunação sexual” (com a criação do artigo 215-A no Código Penal), acontecida em 2018 (Lei n° 13.718).
Considerada uma das forças motrizes da midiaticamente alardeada “Primavera Feminista” (efervescência do ativismo de mulheres, geralmente ligado a demandas por ampliação das noções de violência e abuso, verbalização e elaboração de situações em que forma desrespeitadas ou estiveram desvantagem pelo fato de serem mulheres), a hashtag de denúncia comove, impulsiona e incita a reflexão e a luta. Com forte apelo emocional, ela também permite que desabafos individuais corajosos (muitas vezes feitos pela primeira vez) encontrem empatia e apoio. A coletivização da dor promove uma catarse importante em forma de alívio. Essas mobilizações são positivas, saudáveis, produtivas e parecem ter vindo para ficar. E assim deve ser.
Comecei a acompanhar essas articulações dos #exposed recentes a partir da movimentação dos #exposedMarília e #exposedJoinville. Me interessei por entender do quê se tratavam as hashtags uma vez que, durante a realização de minha pesquisa de doutorado (uma pesquisa acerca dos debates midiáticos, ativistas, tecnológicos e jurídico-legislativos em torno dos vazamentos de nudes – ou pornografia de vingança, como alguns costumam chamar), esbarrei em diversos momentos em atividades de exposição na internet.
Só que, se por um lado, na minha pesquisa, o termo exposição foi central para apontar aspectos negativos da circulação não autorizadas de imagens digitais pelas redes sociais para a vida de meninas e mulheres que tiveram sua moral e reputação questionadas na rede por meio da malfadada exposição da intimidade (os nudes que vazaram); nos #exposed organizados em torno de relatos em primeira pessoa, o sentido de revelar algo que não é conhecido ou sabido (expor), são as mulheres que tiveram suas integridade e autonomias violadas que aproveitam do potencial de escala e velocidade de comunicação na internet para fazer com que suas histórias sejam ouvidas, legitimadas e acalantadas. Aqui, a exposição aparece como uma ferramenta a partir da qual se recorreria a uma espécie de opinião pública para denunciar atos considerados indesejáveis, repudiar comportamentos violadores e anunciar uma injustiça sofrida. Expor algo ou alguém na internet seria uma forma de buscar voz, de se defender, de tentar retomar a narrativa. E de alertar a coletividade.
Como quase tudo que envolve a internet, meu mergulho nos #exposed recentes começou com um despretensioso clique. Logo fui sugada por centenas de milhares de relatos de meninas e mulheres que descreviam uma gama variada de situações dolorosas e, para muitas, vexatórias. Elas contavam de namorados abusivos, de amigos e professores assediadores, de conhecidos e familiares abusadores, de paqueras que ameaçavam vazar imagens, de festas em que beberam e, sem entender, ficaram desacordadas ou muito incapacitadas para reagir ou impedir interações indesejadas. Suas falas vinham constantemente acompanhadas de sofrimento, vergonha, medo e solidão.
Como pesquisadora da área, eu logo ia enquadrando os relatos que lia e tipos penais, como aprendi a fazer com as profissionais do Direito com quem trabalho e dialogo. Eu via situações de violência doméstica passíveis de serem enquadradas na Lei Maria da Penha, crimes de divulgação de imagens não consentidas na internet (também tipificados em 2018), situações de violência sexual e estupro de vulnerável (na lei brasileira, menores de 14 anos e pessoas incapacitadas de se defenderem não podem consentir para relações sexuais). A cada tweet, eu ficava mais abismada e comovida.
Tantos crimes não denunciados. Tantas estatísticas não produzidas. Tantos violadores de direitos não responsabilizados. Mas, sobretudo, tantas meninas e mulheres buscando em seus comportamentos alguma justificativa para a violência que haviam sofrido. Nenhuma delas tinha culpa. Nem as que beberam, nem as que mandaram nudes, nem as que aceitaram entrar no quarto ou no carro, nem as que aceitaram as desculpas e reataram os namoros, nem as que tiveram medo e não nunca contaram para ninguém. Nenhuma.
Na grande maioria das situações, as meninas e mulheres participantes dos #exposed contavam suas histórias a partir de suas perspectivas pessoais, mencionando como se sentiam e como entendiam aquilo que tinham vivido. No entanto, em alguns casos, no afã de alertar outras pessoas sobre vários comportamentos nocivos e criminosos, relatavam certas características daqueles responsáveis pelas violências, trazendo em seus relatos algo que possa identificar aqueles que as violaram.
No caso do #exposedMarília, por exemplo, elas foram mais longe e fizeram uma lista com nome, imagem e idade dos denunciados. No #exposedUbatuba, por exemplo, listas com informações pessoais dos denunciados também circularam pelo WhatsApp, em que cada mulher ou menina que tivesse um histórico de abuso ou crime com um dos homens apresentados, adicionava um símbolo que significava relacionamento abusivo, assédio, vazamento de nudes ou estupro.
Expor um violador na internet, identificando-o de alguma maneira, assemelha-se à técnica argentina do “escrache”, prática popularizada por militantes contrários à ditadura que performatizam publicizações de informações de pessoas envolvidas em práticas de repressão e tortura durante o período autoritário. Diferentemente do “escrache” argentino, entretanto, que é mais comumente organizado de forma coletiva e com estratégias para preservar quem faz a exposição, a exposição de um violador na internet pode colocar meninas e mulheres em risco. Homens e meninos que se reconheceram nessas denúncias passaram a perseguir e ameaçar as participantes do #exposed, em alguns casos, inclusive, demonstrando intuito de as processarem juridicamente por calúnia. Por isso, por mais que as articulações de #exposed sejam legítimas e desejáveis, alguns cuidados são essenciais para que a tentativa de elaborar uma violação não dê margem a novas violências. Algumas delas chegaram a mim pedindo ajuda e orientação.
Não estou aqui para ditar regras sobre como as articulações de desabafo, relatos de violação ou luta por direitos e justiça deva acontecer. Poder identificar o agressor foi um processo fundamental em processos coletivos que levaram ao desvelar de homens poderosos envolvidos em crimes sexuais contra mulheres e meninas, como o magnata de Hollywood Harvey Weinstein (cujos casos impulsionaram o movimento #metoo) e o líder religioso brasileiro João de Deus. Mais recentemente, nos #exposed do Twitter (que também circulam pelo Instagram, pelo WhatsApp e pelo Facebook), várias mulheres e meninas perceberam ter passado por situações semelhantes ao interagirem com um músico de uma banda de rock.
As tecnologias digitais se revestem de um duplo sentido constante: por um lado, facilitam circulação de informações, afetos e opiniões, fortalecendo lutas, demandas e debates democráticos; por outro, de maneira inversa, facilitam circulação de informações, afetos e opiniões, perpetuando preconceitos, discriminações, perseguições e violações de direitos. Parece uma incoerência, mas não é. A internet não é boa nem má, ela depende do uso que é dado a ela. Usemo-la com coragem, malícia e inteligência.
Por Beatriz Accioly Lins, doutora em Antropologia Social e pesquisadora do Núcleo de Estudos Sobre os Marcadores Sociais da Diferença (NUMAS/USP). Contato: [email protected]