Daniela Pedroso conta que seu trabalho é para minimizar esse sentimento
(O Globo, 05/08/2018 – acesse no site de origem)
É um ir e vir constante nos corredores do hospital estadual Pérola Byington, considerado referência em saúde da mulher na capital paulista. Em uma tarde na última semana, meia dúzia de mulheres esperava em uma sala do Núcleo de Violência Sexual e Aborto Legal. Uma entrou de braço dado a uma adolescente de cabeça baixa. Outra, sozinha, olhava para a TV pregada na parede, acima de uma pequena brinquedoteca, com carrinhos e lápis de colorir. Em frente, uma moça recostava no ombro de um homem que a acompanhava.
A história que leva cada mulher até ali é um segredo compartilhado apenas com a equipe médica. Em comum, buscam no Pérola Byington o serviço de aborto, nas condições em que ele é permitido por lei no Brasil: estupro, risco de vida para a mãe e gestação de bebês anencéfalos.
Entre um atendimento e outro no hospital, a psicóloga Daniela Pedroso conta ao GLOBO que o número de interrupções de gestações aumentam a cada ano no hospital, que é recordista nesse procedimento no país — um reflexo, segundo ela, da difusão do serviço. Só no ano passado, cerca de 350 abortos foram realizados no Pérola Byington. Mas o Brasil, diz Daniela, ainda está muito longe de afastar o tabu que envolve esses procedimentos. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Em que condições um aborto é considerado legal no Brasil e, portanto, permitido neste e em outros hospitais de referência?
De acordo com o Decreto Lei 2848 de 1940, o aborto não é crime em duas situações: no caso de risco de morte materna, que é o chamado aborto sentimental, e em casos de gravidez decorrente de estupro, que é chamado de aborto necessário. E, desde 2012, temos a aprovação pelo Supremo Tribunal Federal, em que o aborto é permitido em casos de anencefalia.
Qual é o volume de abortos realizados no Pérola Byington?
O hospital iniciou o atendimento a mulheres em situação de violência sexual e aborto previsto em lei em 1994. Serão 24 anos agora em agosto. É o serviço de violência sexual que mais realiza interrupções de gestação em todo o país. Ano passado foram 345 casos de abortamento previsto em lei. Em 2018, até junho, foram 138 interrupções de gestações. Desde o início do serviço, os números crescem. Acompanhamos as estatísticas desde 2001, quando foram 39 casos. Em 2002, foram 60. E esse número só foi subindo. Até chegar a 170 em 2015 e a 307 em 2016, o nosso recorde. Esse aumento se deve até pelo serviço ser reconhecido como referência. E coincide com o relato de mulheres que nos buscam dizendo que viram sobre o hospital na internet, leram entrevistas, e assim se informam dos seus direitos. Neste ano, pelo ritmo de demanda, o número total pode bater o de 2017. São cerca de seis interrupções por semana, mais de 20 por mês. A maioria é de casos de violência sexual. Muitas vêm de fora de São Paulo. Foram 75 casos da cidade no ano passado, 152 de outros municípios, a maioria da Grande São Paulo, e outros 18 de lugares como Rio de Janeiro, Minas Gerais, Mato Grosso, Paraná e Santa Catarina. Neste ano já foram oito casos de outros estados, como Espírito Santo, Rio de Janeiro, Paraná e Minas Gerais. Muitas são encaminhadas, outras vêm espontaneamente, porque ouviram falar sobre o serviço.
Como é o caminho da mulher que busca um serviço de aborto? Desde que ela chega — e como chega — até a realização?
A mulher chega extremamente fragilizada. Com medo e um sentimento enorme de vergonha e de culpa. Na maioria das vezes, não contou o que aconteceu para ninguém. E, se contou, foi sem detalhes, para poucas pessoas. Ela chega no hospital relatando a violência sexual. É atendida no ambulatório, que vai encaminhá-la primeiro para a ultrassonografia. Precisamos saber a idade gestacional dessa mulher para marcar as avaliações pelas quais ela vai passar. A idade gestacional é o norte para saber a celeridade que precisamos ter com o caso. Depois, ela passa por assistente social, psicóloga e ginecologista. Com a assistente social, vemos as necessidades dessa mulher. E colocamos as opções que ela têm. Muitas chegam sem saber que podem abortar. É importante deixar claro que somos um serviço de violência sexual que entende essa gestação como mais um dos agravos da violência sexual. E colocamos que a mulher três opções: levar essa gestação até o fim e inserir a criança em sua família, levar a gestação até o fim e doar para um processo de adoção legal ou, se for o desejo dela e acolhido pela equipe, pode realizar o abortamento previsto em lei. Terminada a avaliação com o serviço social, ela passa na psicologia, onde também vai contar a história dela, e também é informada sobre as três opções. Com a ginecologista, o mesmo. Quase nenhuma desiste do abortamento. Depois, com a data da violência e a idade gestacional, as médicas podem entender se essa gestação é decorrente daquele estupro alegado ou não. Não recebemos mulheres mentindo, como as pessoas imaginam. Mas muitas vezes recebemos mulheres que já estavam grávidas antes do estupro, ou engravidaram depois, e não sabiam. É muito raro ter casos de falsas alegações de crime sexual.
A palavra da mulher não vale? E precisa de boletim de ocorrência?
Fazemos uma avaliação do momento da gestação em que ela se encontra, não comparamos o exame com o que ela disse. Trabalhamos com o princípio de presunção da veracidade. Não temos um papel investigativo. Acreditamos no que ela diz, até que se prove o contrário. Não temos como comprovar uma violência sexual, porque não estávamos assistindo. E nem mesmo o boletim de ocorrência comprova. Não é um documento necessário para o serviço. Nem que ajude a mulher. Há pessoas que vêm também achando que precisam de um alvará judicial. Mas nada disso é necessário.
Essa mulher tem que ir e vir várias vezes ao hospital nesse processo? E no caso das que não moram na cidade?
Tentamos fazer o agendamento todo para o mesmo dia, para os três profissionais. Quando não dá, tentamos que seja na mesma semana. E quando a mulher sai da consulta com a ginecologista, se está tudo certo em relação ao procedimento, ela já sai com a data da internação agendada, e a médica já passa para ela qual tipo de procedimento será feito, de acordo com a idade gestacional. E aí provavelmente ela interna na semana seguinte. O processo de avaliação costuma ser rápido. Somos oito psicólogas, quatro assistentes sociais, quatro ginecologistas, uma enfermeira e uma auxiliar de enfermagem. Depois do procedimento, a mulher passa por acompanhamento ginecológico por seis meses, até para acompanhar a possibilidade de doença sexualmente transmissível. O acompanhamento psicológico dura também seis meses, podendo ser mais. O importante é que ela saia com qualidade de vida e tenha retomado suas atividades de maneira adequada. Metade delas costuma ficar para esse acompanhamento. Mas nem todas têm condições de vir toda semana.
Há muitos casos de aborto que são recusados?
Poucos. Não temos um número fechado, mas passamos semanas, até meses, sem negar um caso. O tipo de caso que mais negamos é quando a mulher chega com a idade gestacional tão avançada que não conseguimos mais, por uma questão legal, interromper essa gestação. Só é permitido até 22 semanas de gravidez, ou peso do feto inferior a 500 gramas.
Qual é o perfil da mulher que procura um aborto no serviço público?
São mulheres na faixa de 21, 22 anos, a maioria casadas, com filhos, e que professa alguma religião. Em primeiro lugar católica, evangélica e depois espírita. A maioria passa pelo processo decisório sozinha, e vem sozinha na sala de espera, sem familiares ou maridos. Infelizmente ainda há mulheres que, quando revelam ter sofrido estupro, têm seus relacionamentos interrompidos por serem culpabilizadas. O sentimento mais forte é a culpa. Nesta semana, atendi uma moça que sai às 4h30 para trabalhar. Sofreu violência e engravidou do estupro. Temos que trabalhar muito para minimizar o sentimento de culpa. Uma culpa que a sociedade impõe a ela, a todas nós. Depois do procedimento, o sentimento é de alívio. É como se déssemos uma folhinha para ela marcar os sentimentos, e todas anotam um “X” em um lugar só. Todas falam do alívio. De poder retomar a vida, que estava parada, de quão difícil era cuidar dos filhos. Existe um hiato na vida delas até que isso é resolvido.
Como lida com a questão de ser parte de uma equipe que faz e que atende mulheres que fizeram um aborto?
Trabalho aqui há 21 anos, desde que me formei. Estimo já ter atendido mais de mil mulheres. Já fui questionada em redes sociais. Mas consigo separar bem as coisas. Não me sinto insegura na rua, sozinha dentro de casa. Quando saio daqui, os problemas ficam aqui. Se eu levar pra casa, não dou conta. E a equipe daqui é específica para esse ambulatório. Não temos um objetor de consciência, porque ele não está dentro do nosso escopo. Há pessoas que trabalham com essa questão, e lutam e defendem essa causa. Quem está aqui é para isso. Não vamos ter profissionais que dizem que não vão atender. Mas recebemos mulheres que vêm de lugares em que existe medo de procurar ajuda local, pela fantasia de que todo mundo vai ficar sabendo. O Pérola é colocado, para muitos outros estados, como “o lugar que faz”. E também há a questão da idade gestacional. Muitos serviços só fazem até 12 semanas de gravidez. Depois mandam para cá.
Como você vê a questão do aborto no Brasil? Ele permanece como tabu, mesmo nos casos e nos lugares em que é permitido por lei?
As pessoas entendem o aborto quando é uma história perto delas. Quando vai se distanciando, tanto faz, não sentem responsabilização. Não é a irmã, a mãe, a filha. As pessoas não se preocupam em resolver. Mas cada mulher é uma história. Todo ano passo por um caso em que penso: ‘Achei que já tivesse visto tudo na vida’. Mas há casos que surpreendem. Temos recebido cada vez mais mulheres com nível superior, o que tira um pouco a ideia de que o serviço público é o lugar apenas para quem não tem condições financeiras de procurar um serviço particular. Porque, se pararmos para pensar, o abortamento é proibido apenas para as classes menos favorecidas. As de perfil mais alto podem pagar. E também me surpreende a cada ano como as histórias estão ficando mais cruéis, pesadas, tristes. Do que o agressor fez com a mulher. Ritos de crueldade. Muitas têm grau de parentesco com o agressor, e foram estupradas durante anos. E só se descobre a violência porque engravidam. Nesta semana, já recebemos umas dez mulheres que sofreram estupro.
O país está perto de aprovar o aborto sob qualquer circunstância? O exemplo da Argentina pode ser uma influência?
Estamos longe. Nem as netas das minhas afilhadas vão ver isso. As autoridades ainda têm um pensamento muito retrógrado em relação a esse assunto. Mas o que mais me choca não é ser contra ou a favor do aborto. É a falta de conhecimento da população em relação ao que é um aborto, e em relação ao aborto legal. As pessoas não são informadas sobre esse direito. Acham que as mulheres usam o aborto como método contraceptivo, o que não é verdade. Uma mulher que foi estuprada, além de tudo, merece carregar um filho fruto desse estupro a vida inteira? Muitas dizem que escolhem o abortamento porque não sabem se vão conseguir cuidar da criança como dos outros filhos, ou amar como os outros filhos, ou o transtorno que seria na família essa criança. Dizem que essa é a melhor opção entre as piores opções. A discussão na Argentina é diferente. Se uma mulher precisa vir a São Paulo resolver uma questão como essa, que é um direito previsto no Código Penal desde 1940, imagina quem está no interior do interior do Norte do país. Não vai ser fácil conseguir aprovar algo assim aqui.
Elisa Martins