Falta de dados públicos naturalizam a negação de direitos
(Época, 22/03/2019 – acesse no site de origem)
A população LGBT+ não é quantificada no Brasil. Além de somente em 2010 ter ocorrido a primeira pesquisa de alcance nacional que abriu espaço para a autodeclaração da orientação sexual (o Censo do IBGE) — ao indagar aos entrevistados se o cônjuge era do mesmo sexo —, naquela ocasião ainda não fora contemplada qualquer pergunta que tratasse de identidade de gênero. Existe uma lacuna nas pesquisas demográficas e populacionais quanto a isso. Mas não apenas nelas. Desconhece-se, por exemplo, o número de pessoas LGBT+ que têm acesso a bolsas de pesquisa concedidas por agências de fomento da ciência. Desconhece-se também a quanto chega a diferença salarial entre pessoas travestis ou trans e pessoas heterossexuais empregadas no mercado formal. São números não contemplados nas bases de dados públicas, em pesquisas científicas ou de mercado.
A falta de dados como esses invisibiliza, para a população geral, os desafios de ser LGBT+ no Brasil, o que de certa forma contribui para naturalizar a negação a alguns direitos. É sabido, por exemplo, que muitas pessoas trans se recusam a realizar exames de saúde ou irem a consultas médicas por terem receio de não serem chamadas pelo nome social. É sabido também que, por outro lado, há uma atuação forte de organizações ativistas que trabalham para visibilizar as causas mais urgentes relacionadas a essa população e garantir os direitos já conquistados. Mas em 2018, no período eleitoral, ficou evidente que existia um cenário de violação de direitos grave, e era verborrágico, bem diferente das nuances que podem passar despercebidas no dia a dia de quem não sente na pele as opressões pela orientação sexual ou identidade de gênero. Relatos de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e trans sobre agressões verbais, físicas e outros tipos de violência passaram a ser frequentes em redes sociais ou na imprensa. Eram muitos relatos, em diferentes regiões do país. Elas contavam que estavam sendo vítima de discurso de ódio e relatavam que havia motivação política, uma vez que era comum os agressores invocarem o nome do então presidenciável Jair Bolsonaro ao fazer ameaças que iam da promessa da “extinção das lésbicas” ao “vai morrer, viado”. “Bolsonaro presidente” vinha em seguida. Na Gênero e Número, onde acompanhamos atentamente com nossas equipes de pesquisa e de jornalismo as questões relacionadas a gênero, percebemos que os relatos de violência eram constantemente desqualificados por apoiadores do candidato Jair Bolsonaro, que viria a se eleger presidente. Ao mesmo tempo que grupos adeptos dos discursos de ódio usavam dessa estratégia para radicalizar a polarização político-ideológica, havia uma narrativa, também política, que buscava negar as evidências que relacionassem os discursos de campanha de Bolsonaro ao ambiente de ameaças e violências às minorias, como os LGBTs+.
Para compreender melhor esse cenário antes que ele se dissipasse historicamente, realizamos a pesquisa “Violência contra LGBTs+ nos contextos eleitoral e pós-eleitoral”, buscando registrar a percepção da população LGBT sobre o que de fato ocorreu no período eleitoral e também no período imediatamente após as eleições. Em janeiro, uma equipe de pesquisadores — coordenada pelo antropólogo Lucas Bulgarelli — foi às ruas do Rio de Janeiro, de São Paulo e Salvador para ouvir 400 pessoas. Mais da metade (51%) dos entrevistados disse ter sofrido violência. Entre os que relatam ter sido alvo, a maioria sofreu violência verbal. Tratamento discriminatório e assédio moral vêm logo em seguida. Quando se olha para resultados a partir de grupos específicos que compõem a sigla LGBT+, essa resposta pode mudar. Entre as mulheres lésbicas, o assédio moral foi mais citado do que a violência verbal. Todos os grupos, porém, tiveram alto percentual de afirmação quando responderam se havia sido percebido (pelos entrevistados) um aumento de violência contra seu grupo, especificamente, durante as eleições de 2018. Dos gays ouvidos, 75% disseram que sim. Entre as lésbicas, 76%. Esse foi o mesmo percentual de travestis, mulheres trans e homens trans que compartilharam dessa opinião. No grupo de bissexuais, o único em que menos da metade concorda que sim, foram 49% os que tiveram essa percepção.
De acordo com a pesquisa, essas violências foram perpetradas, no maioria dos casos, por desconhecidos. No questionário de múltipla escolha, em que mais de uma alternativa podia ser selecionada, desconhecidos correspondem a 86% das respostas quando pergunta-se quem era o agressor. Em seguida, integrante de partido ou de grupo político foi a resposta mais citada (44%), e na sequência parente ou familiar (34%). A pesquisa também aponta como essas pessoas que relatam ter sofrido violência reagiram diante da situação de ameaça ou de violação. Chama a atenção que a busca por medidas institucionais, seja na Justiça ou em delegacias, é a menos citada entre as tomadas pelos entrevistados: 63% reagiram verbalmente ou textualmente, 22% correram ou se esconderam, 16% disseram ter solicitado ajuda para pessoas que presenciaram, 7% reagiram fisicamente, enquanto 6% registraram boletim de ocorrência (a soma não resulta em 100% porque era possível escolher mais de uma opção).
No eixo que aborda violência nas redes sociais, há resultados interessantes. O que mais se destaca, por se aproximar da unanimidade entre os respondentes, diz respeito justamente ao que era uma das questões centrais a serem respondidas pela pesquisa: a percepção da relação entre o discurso de ódio e o aumento de violência contra LGBTs ao discurso das candidaturas de extrema direita. Ao serem questionadas se “O discurso promovido por candidaturas contrárias aos direitos das pessoas LGBT+ contribuiu para o aumento da violência direcionada a esta população nas redes sociais”, o índice de concordância obtido foi de 98,5% do total de pessoas LGBT+ entrevistadas. Dessas, 93% concordaram totalmente e 5,5% concordaram em parte. Todos os dados da pesquisa, assim como relatório completo, estão disponível on-line.
Giuliana Bianconi é diretora da Gênero e Número, organização de mídia que atua na intersecção entre pesquisa, jornalismo de dados e debate sobre gênero e direitos das mulheres.