Professora emérita da Universidade da Califórnia, a ativista falou para milhares em sua passagem pelo Brasil, conectou-se com diferentes gerações do movimento negro e foi ouvir as mulheres
(El País, 01/11/2019 – acesse no site de origem)
“Em meio a tantas mortes e de tantas dificuldades, acho que é o momento de celebrar a vida”, disse Conceição Evaristo no palco do Cine Odeon, no Rio de Janeiro. “Fico muito feliz porque eu e Angela Davis estamos cheias de fé, cheias de potência”, seguiu a escritora mineira. A frase levantou, de novo, os aplausos da plateia na quinta-feira, 24 de outubro. Fez Davis, a poucas cadeiras de distância, abrir mais uma vez o sorriso amplo, em seu derradeiro compromisso na mais recente temporada no Brasil.
Vestidas ambas de azul e amarelo, Davis, 75, e Evaristo, 73 anos, atuavam como espelhos para o movimento negro nas últimas décadas, especialmente para as mulheres negras —nos Estados Unidos e no Brasil. A conexão entre elas se mostrou no palco e avançou em suas histórias décadas atrás para servir de farol para as meninas negras. A escritora mineira contou como uma foto de Davis, colada “na parede na favela”, havia inspirado ela e suas amigas a aderir ao cabelo black power nos anos 70. Contou também como mulheres negras, nos anos 30, muito antes da Davis pantera negra nos EUA, lutaram organizadas em mutirão para não ser excluídas do trabalho na lavoura na grande Belo Horizonte.
No palco, a professora emérita do departamento de estudos feministas Universidade da Califórnia e referência global, acentia. Momentos antes, havia discursado: “A era de surgimento de movimentos como Black lives matter e Me too é realmente uma época maravilhosa para ser jovem, porque os jovens estão assistindo ao desmoronamento de uma série de regras estabelecidas ao longo do tempo para governar, controlar o comportamento humano”, pregou. “Ao mesmo tempo, é uma época maravilhosa para ser velha, porque percebemos que o trabalho desenvolvido ao longo de tantas décadas faz diferença. A intergeracionalidade dá significado à longevidade.”
No Odeon, Angela Davis fez questão de lembrar das outras vezes em que havia se encontrado com Conceição Evaristo no Brasil. Como em outros momentos na série de conferências, falou do assassinato da menina Ágatha pela polícia do Rio em setembro, fez referências às dificuldades políticas do Brasil de Jair Bolsonaro e Wilson Witzel. Era também um movimento nítido de aprofundar a conexão e rejeitar a imagem de pop star visitante, reforçada nos últimos dias com as concorridas conferências públicas em São Paulo e no Rio. Na capital fluminense, havia aberto o Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul, também com transmissão para a Cinelândia. No auditório do Ibirapuera, amplificada por um telão gigante, havia falado para 15.000 pessoas dias antes. “Olhem para as mulheres negras do Brasil”, pediu em São Paulo, e chamou para si a responsabilidade de fazer circular no mundo rico as ideias e a produção de feministas negras brasileiras, como Lélia Gonzalez (1935-1984).
Foi também no palco do Odeon que Davis evocou Marielle Franco, ungindo a vereadora assassinada em 2018 como símbolo de uma agenda que não pode ser aniquilada. Imaginou-se amiga de Marielle, fazendo toda a plateia pensar no poder que emergeria de uma maior conexão das mulheres negras espalhadas pela diáspora provocada pela escravidão. “Muitas das minhas camaradas tombaram durante a luta. Acredito que seja minha responsabilidade testemunhar em homenagem aos que não estão mais entre nós. E afirmar que se permanecermos na luta, eventualmente, alcançaremos a vitória”, pregou.
Davis na conversa com os ativistas brasileiros em São Paulo. Foto: Coalizão Negra.
Ela terreirizou os espaços
A força da união entre Angela Davis e Conceição Evaristo e as citações de Marielle Franco no Rio foram o sinal mais público de que a norte-americana havia, de fato, terreirizado tudo por onde passou. Terreirizar, nas palavras do historiador Luiz Antonio Simas, é imantar os espaços com nossa identidade. Foi esse encantamento e desejo ativo de tecer pontes que Davis levou ao encontro fechado com ativistas de diferentes matizes da Coalizão Negra por Direitos —entre eles, nós do PerifaConnection— durante a passagem por São Paulo.
Davis fez questão de participar de um encontro de trabalho, na sede do Geledés – Instituto Mulher Negra. De novo, a militante se sobressaía para rejeitar a pop star. Na reunião com mais de 30 pessoas de várias entidades e gerações, acordou-se ação permanente para protestar contra a exploração pelos norte-americanos da base espacial de Alcântara, território quilombola no Maranhão onde vivem 800 famílias. “Na tática, a Coalizão é bem parecido com o Black Lives Matter”, comparou Davis, citando o movimento norte-americano contra a violência que atinge os negros. Infuente na cena norte-america, a filósofa se ofereceu para manter contato com a rede brasileira e pensar o “movimento da diáspora contra o racismo”.
“Podemos errar e, tudo bem, mais importante é organizar a nossa esperança”
No Rio, ela também teve encontro privado com mulheres negras, um grupo que incluía parlamentares, como Erica Malunguinho, mas também Vilma Reis, que foi ouvidora da Defensoria Pública da Bahia ou Lúcia Xavier, diretora da ONG Criola. A tônica foi defender uma revolução cotidiana que não perdesse de vista a utopia de uma democracia racial. No horizonte, cobrar uma reparação histórica da escravidão não restrita ao Estado brasileiro, mas que inclúa uma ação política antirracista da própria sociedade.
Angela Davis se despediu de sua nova visita ao país deixando um chamado a todas e todos nós, mas principalmente negros que disputam o futuro. A convocatória é para preservar a memória da vida e buscar urgentemente outros significados para os corpos negros. Se democracia nunca chegou para as pessoas negras, o poder que nós queremos construir não pode residir no passado e nos retrocessos, mas tem que mirar a criação da agenda política do futuro. A “ancestral contemporânea” norte-americana, uniu num fio Nilmas Bentes, a histórica ativista paraense, a parlamentar trans Erica Malunguinho e a novíssima jornalista Isabela Reis, que resumiu nas redes sociais: “Sobre o peso de nosso tempo, Angela colocou para todos nós da nova geração: ‘Podemos errar e, tudo bem, mais importante é organizar a nossa esperança”.
Por Thuane Nascimento e Jefferson Barbosa