Caso Neymar: mulheres e a Justiça podem aprender com a história de Najila

21 de agosto, 2019

O caso mobilizou o noticiário e as rodas de conversa mais diversas –das feministas aos boleiros– durante semanas, com direito a um novo patamar de polarização em um país no qual o fla-flu ideológico parece não ter um fim próximo. No entanto, a investigação da acusação de estupro apresentada pela modelo Najila Trindade contra o jogador Neymar acabou arquivada pela Justiça, nos últimos dias, a pedido do Ministério Público de São Paulo. A promotoria considerou não haver provas suficientes para denunciar o jogador.

(UOL, 21/08/2019 – acesse no site de origem)

O advogado de Najila, Cosme Araújo, pediu à Justiça o desarquivamento do caso e solicitou que “fosse dado valor à palavra da mulher” para a instrução criminal.

Celeuma jurídica à parte, a reportagem do Universa conversou com especialistas em violência contra a mulher para saber, afinal, que lições o caso Najila – Neymar deixa para as mulheres que foram vítimas de violência. Que sinais de alerta devem ser observados em uma relação abusiva para evitar uma situação extrema como a de uma agressão, sexual ou não? E que mensagens ficam a um sistema penal em que a palavra da mulher nem sempre é considerada prova consistente em uma investigação?

Apesar do desfecho temporário do caso, é ponto comum para as profissionais consultadas que ele deixa lições sobre o consenso de todos os envolvidos no ato sexual e sobre a importância de se denunciar quando esse horizonte é ultrapassado.

O mito do violador sexual e a palavra da mulher em xeque

Coordenadora auxiliar do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo, Nálida Coelho Monte diz que parcela importante da sociedade ainda não compreende que a figura do estuprador nem sempre é a do “monstro” que ataca a vítima em uma rua escura, por exemplo, com pouco ou nenhum envolvimento afetivo prévio.

“As pessoas deixam de enxergar como possíveis agressores aqueles que podem estar bem próximos das vítimas”, afirma a defensora, que reconhece não estar superada, no país, uma cultura do estupro em que valores e comportamentos das vítimas é que acabam julgados dentro ou fora dos tribunais.

“Em um caso notório, como esse, se reforça ainda mais uma empatia social pela figura do acusado. Para as mulheres, fica isso de ter de lidar com essa descrença em relação à palavra. E, quando a gente compara o número de denúncias de violência sexual com o de pessoas condenadas e o de casos arquivados, muitas vezes por ausência de provas, isso reforça ainda mais essa cultura.”

Nálida pondera que a denúncia de crimes sexuais, como o estupro, exige um conjunto de provas factível para se evitar uma condenação injusta por algo considerado, perante a lei, hediondo.

“As vítimas costumam ter a palavra descreditada porque se julga bastante, ainda, o comportamento da mulher. No direito, inicialmente, havia a proteção em relação a crimes sexuais contra a mulher, que era considerada honesta, digna de proteção jurídica, e muito embora esse conceito tenha sido retirado do ordenamento jurídico, a ideia ainda é comum na prática forense”, ressalva. “O que se verifica é que a moral sexual feminina também se senta no banco dos réus.”

No caso da modelo e do jogador, não foram poucos os argumentos – de homens e mulheres – que questionaram a versão de suposto estupro pelo fato de Najila ter procurado Neymar em um hotel, em Paris, um dia após, supostamente, ter sido violentada por ele. O jogador alega que a relação havia sido consensual. Ela afirmara ter voltado para obter provas materiais para a acusação, mas, à polícia e ao MP, disse que o tablet com as imagens que comprovariam sua versão fora furtado do apartamento em que morava, em São Paulo.

“Julgaram demais o fato de essa modelo ter procurado o jogador no dia seguinte ao suposto estupro, como se não houvesse violência sexual crônica, ocorrida por dias, sem que a vítima denuncie”, critica a defensora, que destaca não ter tido acesso às provas do caso.

É preciso ‘repartir’ o benefício da dúvida

Pesquisadora na USP de assuntos como gênero, sexualidade e violência contra mulheres, a antropóloga Beatriz Accioly Lins pondera que o comportamento feminino foi posto sob escrutínio com muito mais ênfase que o do homem, independentemente de o crime ter acontecido ou não.

“Criou-se um debate bastante polarizado entre quem acreditava na modelo e quem defendia que ela seria uma interesseira. Mas não é porque eventualmente algumas pessoas mentem que não se deva dar um voto de confiança a quem relata ter sofrido violência sexual. Isso não significa submeter o acusado a julgamentos, mas compartilhar entre ele e a alegada vítima o benefício da dúvida. Nesse caso, quem sempre teve o benefício da dúvida foi Neymar.”

“Não é não” a qualquer momento – mesmo quando já se está no ato sexual
Outra questão que veio à tona com o caso é a necessidade de se esclarecer o que é o consenso em uma relação afetiva ou sexual.

Najila falou que foi encontrar o jogador em Paris, após flertarem pela internet, mas insistiu que o estupro teria ocorrido face à insistência e materialização de atitudes sexuais com as quais ela não teria concordado. Neymar nega: diz que houve consenso em todo ato sexual entre eles.

“Quando se trata de um homem poderoso, as pessoas em geral pensam: ‘Por que um cara que poderia ter qualquer mulher estupraria alguém?’ Mas estupro é uma relação de poder, não é sexo. As mulheres precisam entender que elas podem dizer ‘não’ a qualquer momento, inclusive no meio de algo que já começou, porque não existe nenhuma autorização perpétua, absoluta. Se algo acontece e faz a pessoa se sentir desconfortável e sem querer seguir, ela tem o direito de parar”, diz Beatriz.

Consenso, aliás, que se constrói mesmo após iniciado um ato sexual, ou mesmo em uma relação matrimonial. “As relações afetivo-eróticas estão o tempo todo fundamentadas em negociações para que não descambem para uma violência, um crime.”

Vale a pena denunciar, mesmo sob risco de descrédito

Promotora na área de direitos da mulher há duas décadas, em São Paulo, Silvia Chakian evita associações com o caso da modelo e do jogador ao comentar sobre situações análogas – uma vez que foram duas colegas dela no Ministério Público que pediram à Justiça o arquivamento do inquérito.

No entanto, a promotora ressalta a importância de que, envolvendo ou não pessoas públicas, as “mulheres que de fato sofreram violência sexual” não devem se calar.

“Em grande parte das vezes não há condenações porque é um crime de comprovação delicada. E essa é uma cautela do próprio sistema penal, porque se trata de um crime hediondo, uma acusação gravíssima.”

Em caso de violência consumada, o que fazer?

“São diversos eixos de proteção – da assistência de saúde a mulher é encaminhada para a ajuda social, psicológica e de Justiça. A mensagem é que as vítimas denunciem sempre.”

Ela lembra que, pela lei federal 12.845/2013, qualquer hospital do SUS (Sistema Único de Saúde) precisa fornecer
atendimento de emergência prioritário e multidisciplinar à vítima de violência sexual em até 72 horas. “Registrar o boletim de ocorrência também é muito importante para que se adotem medidas de proteção imediata à mulher, que pode estar em situação de risco, e mesmo para a responsabilização criminal do autor do estupro”, destaca a promotora.

Testemunhas, prints de conversa, fotos… Tudo pode ser prova
Que provas apresentar, já que a violência sexual, em boa parte dos casos, não conta com testemunhas? A promotora destaca que testemunhas não precisam ter presenciado o ato, mas podem ser pessoas que convivem com a vítima e que sabem que a situação aconteceu. “A partir disso, a Polícia Civil requisitará outras provas, como imagens de câmeras de segurança, perícias, prints de conversas de aplicativos, de emails, fotografias”, diz Silvia. “E provavelmente será requisitada a avaliação psicológica da vítima, uma vez que esse tipo de violência nem sempre deixa lesões, mas, sim, um trauma psicológico que pode ser detectado por um profissional.”

Como detectar sinais de alerta que precedem o abuso?

É possível detectar sinais de que um relacionamento se tornou abusivo, e, com isso, prevenir situações extremas de violência –sexual ou não?

Segundo a defensora pública Nálida Coelho, qualquer restrição à liberdade sexual da mulher por parte de um parceiro já deve ser um alerta. “A mulher pode retirar o consentimento a qualquer momento.”

Já a promotora Silvia Chakian diz serem vários os sinais que antecipam que um relacionamento é abusivo e pode se tornar violento, como perceber que o parceiro tende a minar a autoestima da vítima e a adotar comportamentos que a façam se sentir diminuída ou humilhada.

“Ciúmes, comportamentos excessivamente controladores da rotina da mulher –querer saber com quem ela mulher se relaciona, com quem fala–, isolamento dela do ciclo de família e comunidade de amigos e ações para minar a autonomia financeira dela, como impedi-la de trabalhar, são sinais de um relacionamento abusivo”, relata a promotora.

No caso da violência sexual, não custa repetir, a palavra de ordem a se observar é consentimento.

“Independentemente de ter havido penetração, o relacionamento sexual exige o consentimento dos envolvidos. Portanto, é preciso questionar se as partes concordaram de forma livre e espontânea em praticar aquele ato sexual”, diz Silvia. Ela ressalta, ainda, que menores de 14 anos, portadores de deficiência intelectual ou pessoas sob efeito de substâncias como álcool, drogas ou medicamentos, por exemplo, não têm condições de compreender a necessidade do consentimento. “É preciso saber se há capacidade de se consentir.”

Por Janaina Garcia

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