Posso tomar a liberdade de crescer, amadurecer e me arrepender?
(Folha de S.Paulo, 22/02/2019 – acesse no site de origem)
Posso começar de novo? Posso tomar a liberdade de crescer, amadurecer, me tornar uma pessoa melhor e me arrepender? Se um dia foi preciso ser feminista, neste 2019 é uma questão de sobrevivência. Eu era contra as feministas enfadonhas, mas, gente, isso é de uma estupidez! Então eu também sou contra os biólogos, os vendedores de capinhas de celular, os ruivos e os observadores de pássaros. Porque certamente alguns, dentre todos esses citados, são insuportáveis. Vou aqui me corrigir: eu sou contra os chatos (e, por essa razão, fico contra mim várias vezes ao dia). Deixemos o feminismo fora dessa.
É preciso ser feminista. Uma mulher é desfigurada, espancada por quatro horas pelo desgraçado psicopata que conheceu na internet. E, em nome de um dia menos miserável, eu te imploro: jamais leia os comentários abaixo de tal notícia. Sim, o número de gente que culpa a vítima e não o agressor é maior do que um estômago digno poderia suportar.
É preciso ser feminista. Uma senhora, casada há 40 anos, é morta pelo marido depois de comunicá-lo que pretende se separar, pois não aguenta mais ser agredida.
É preciso ser feminista. Ontem, conversando com uma amiga diretora de cinema, soube que ela está fazendo um documentário sobre estupro e que, nas zonas mais carentes da cidade, é alarmante o índice de pais que violentam a própria filha, motivados pelo seguinte pensamento: “se em breve alguém vai tirar o cabaço delas, que seja EU”.
É preciso ser feminista. No estado de São Paulo, uma mulher é vítima de feminicídio a cada 60 horas. Um casal famoso se separa, e 99% das matérias culpam uma outra mulher (e não o homem ou o casal ou o fim do amor). Um deputado emoldura e coloca na parede de seu gabinete um pedaço da placa destruída com o nome da vereadora assassinada Marielle Franco.
Minha filha estava brincando sem camiseta e de shortinho verde no playground do meu prédio, e um personal, dando aula para um senhor idoso, comentou: “Agora tá desse jeito, nem dá pra saber se é menina ou não, não botam mais brinco, não botam mais vestido”. Minha filha tem um ano.
É preciso ser feminista. Eu gosto que segurem a porta para eu passar. Eu gosto quando meu marido me leva para jantar e paga a conta. Eu gostei de 75% das cantadas que levei no trabalho, quando era mais nova e solteira e estava a fim de tudo aquilo. Eu detesto fiu-fiu, mas acho que algumas amigas têm mais preconceito com motoboy do que medo de assédio.
Eu achei aquelas atrizes do #metoo, que desfilaram no Globo de Ouro abraçadas a sua “minoria preferida” como se desfilassem bolsas de marca, um tantinho oportunistas. Tudo bem, podemos discutir isso.
Podemos ter preguiça de algumas coisas. Ponderar pode ser um importante movimento de complexar e fomentar o discurso. Mas é preciso, apesar de tudo —e mais que tudo—, com paixão e intensidade, ser feminista.
Lembro como aquela febre da campanha #primeiroassedio me irritou. Cheguei a falar na minha terapia: “Então agora tá na moda dizer que foi violentada?”.
Reproduzindo machismo, na época culpei as vítimas, e não os agressores. A hashtag não foi fácil de engolir porque me trouxe a lembrança, há muito soterrada, de um primo da família que gostava de me dar tapinhas na bunda e “benzidas” nos seios. Eu nunca fui feminista —e acho que ainda não sou. Ainda assim, a cada dia que passa eu tenho mais certeza: é preciso ser feminista.
Tati Bernardi é escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.