A República Democrática do Congo tem uma das taxas mais altas de violência sexual do mundo, mas uma nova abordagem do tema está estimulando os homens a confrontarem e questionarem a “masculinidade tóxica”.
(BBC Brasil, 18/05/2019 – acesse no site de origem)
Moises Bagwiza é um dos homens que agora reflete com pesar sobre seu passado. As lembranças de como tratou e estuprou sua esposa, Jullienne, são francas, explícitas e perturbadoras.
“Sexo com ela era como uma briga. Eu não me importava com o que ela estava vestindo – eu arrancaria tudo”, diz ele.
Em um modesto bangalô na pacata vila de Rutshuru, no leste da República Democrática do Congo, Bagwiza se lembra de um ataque em particular, quando a esposa estava grávida de quatro meses.
“Eu me virei e dei um chute no estômago dela”, ele diz, contando que ela caiu no chão, sangrando, enquanto vizinhos, preocupados, correram para levá-la ao hospital.
O que ela tinha feito? Ela estava economizando, escondida, dinheiro para despesas domésticas com ajuda de um coletivo local de mulheres.
Antes do ataque, ela tinha se recusado a dar dinheiro a ele para um par de sapatos.
“É verdade que o dinheiro era dela”, reconhece Bagwiza. “Mas, hoje em dia, como você sabe, quando as mulheres têm dinheiro, elas se sentem poderosas e mostram isso.”
Ideias tradicionais de masculinidade
Esse ressentimento está no centro do que alguns chamam de crise da masculinidade africana moderna.
Durante séculos, os homens foram criados com ideias definidas sobre o que significa ser homem: ser forte, capaz de proteger e sustentar sua família.
No entanto, a evolução das questões de gênero, com maior empoderamento feminino, combinada com altos níveis de desemprego masculino, está frustrando a capacidade dos homens de viverem de acordo com esses ideais antigos de masculinidade.
Para homens como Bagwiza, uma mulher independente financeiramente representa uma ameaça. Pedreiro em uma vila local, ele diz que sentiu que a violência era a única forma de se comunicar com sua esposa.
“Eu achava que ela pertencia a mim”, disse. “Eu pensei que poderia fazer qualquer coisa que quisesse com ela.”
Compensação pelo ‘fracasso masculino’
O caso de Bagwiza está longe de ser o único. A República Democrática do Congo tem uma das maiores incidências de estupro no mundo, com uma estimativa de que cerca de 48 mulheres são estupradas a cada hora, de acordo com um estudo do American Journal of Public Health.
Vários especialistas atribuem a crise de violência sexual do país a um conflito de longa data no leste do Congo, onde grupos de milícias rivais geralmente usam o estupro coletivo e a escravidão sexual como armas de guerra.
A causa principal do estupro, contudo, é muito mais profunda, segundo Ilot Alphonse, co-fundador da ONG Rede de Homens do Congo (Comen).
“Quando falamos de violência sexual apenas no contexto de um conflito armado, estamos fugindo da questão central”, diz ele.
“Nós herdamos essa maneira de tratar as mulheres como objetos nossos, uma ideia de que os homens têm o direito de fazer sexo a qualquer hora. A causa da violência sexual se trata do poder e da posição que os homens congoleses sempre quiseram manter.”
Mulheres no debate
Danielle Hoffmeester, do Instituto de Justiça e Reconciliação (IJR) na África do Sul, diz que a violência de gênero está diretamente ligada a como os homens são socializados enquanto crianças e à incapacidade de cumprir as regras rígidas da masculinidade africana tradicional.
“A incapacidade dos homens de prover e sustentar suas famílias levou muitos deles a compensar esse ‘fracasso’ na masculinidade de maneiras frequentemente tóxicas e violentas”, diz ela.
Alphonse diz que ele foi tanto um agressor quanto uma vítima de violência.
“Na escola, fomos espancados, em casa fomos espancados e, na aldeia, organizamos sessões de luta”, diz.
Ele diz que internalizou a violência, que mais tarde se tornou uma maneira de se comunicar.
“Às vezes eu batia na minha namorada e era ela quem tinha que se desculpar. Lembro que um dia, quando ainda éramos crianças, briguei com minha irmã e joguei uma faca nela.”
As iniciativas contra o estupro na África têm normalmente focado nas mulheres, que são a maior parte das vítimas, e excluído os homens, que são a causa da violência sexual.
Para Alphonse, contudo, essas medidas tratam dos sintomas e não das causas profundas da violência sexual.
“Estamos combatendo a violência com base no gênero”, diz ele. “Para que isso aconteça, temos que envolver homens e meninos que são parte do problema, então eles têm um espaço para mudar o comportamento.”
Foi isso que Alphonse e colegas fizeram. Criaram a Baraza Badilika, uma versão contemporânea de antigos espaços de encontro onde os homens se reuniam para resolver questões urgentes da comunidade e iniciar os meninos na masculinidade.
Como conflitos sucessivos arrasaram aldeias e mataram pessoas, esses espaços foram quase erradicados, o que levou a uma falta de modelos masculinos para as crianças, segundo ele.
Enquanto a tradicional Baraza Badilika (cuja tradução é “Círculo de Mudança”) era frequentada apenas por homens, essa interação do século 21 dá às mulheres papeis de liderança.
“É realmente hora de as mulheres tomarem esses espaços”, afirma.
Mudanças
Toda semana, cerca de 20 homens se encontram na Baraza por duas horas para aprender sobre masculinidade positiva, igualdade de gênero e paternidade.
As oficinas são conduzidas por um homem e por uma mulher, que usam filmes, livros ilustrados e sessões de psicodrama para “reprogramar o cérebro” dos agressores.
Alphonse diz que a maioria das mulheres diz a ele que os maridos mudaram depois de participar das oficinas.
“Elas dizem: ‘Fomos a líderes religiosos, chefes tradicionais, mas ele não mudou. Foi preso várias vezes, mas não mudou. De repente, vejo ele não sendo mais violento e voltando para casa na hora'”.
Bagwiza também percorreu um longo caminho desde que bateu na esposa grávida.
“Claro que não é 100% – somos humanos -, mas muitas coisas melhoraram dramaticamente. Agora temos conversas adequadas e nossa relação sexual melhorou muito.”
Alphonse está determinado a alcançar “todos os homens” na República Democrática do Congo com sua filosofia de masculinidade positiva.
“Sonhamos em ver o fim de todas as formas de violência neste país”, diz ele. “Assim, podemos torná-lo apropriado para homens, mulheres, meninos e meninas.”
Aaron Akinyemi