Diretora da ONU Mulheres para Américas, Maria-Noel Vaeza defende o investimento público em políticas de equidade salarial
(O Globo, 09/10/2019 – acesse no site de origem)
SÃO PAULO — Na abertura de um fórum em São Paulo, a diretora regional da ONU Mulheres para as Américas e Caribe, Maria-Noel Vaeza, desafiou o dia cinzento: “É possível conquistar a igualdade salarial entre homens e mulheres, e é possível já”, afirmou, de roupa estampada laranja e tom elevado. Pediu energia ao público e afirmou que a inclusão das mulheres nas empresas também significa mais produtividade e bons negócios. Mas não basta apenas energia, nem a atenção de CEOs.
Na conversa, Vaeza afirma que a combinação entre setor privado e vontade política é essencial para combater uma injustiça: “O feminismo moderno também tem que incluir os homens”, explicou a uruguaia, que participa do “Fórum Weps 2019: um chamado à ação pela transformação social”, organizado pela ONU Mulheres, em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a União Europeia. A seguir, os principais trechos da entrevista.
De que maneira o empoderamento feminino passa também por empoderar as empresas a agirem em prol das mulheres? E por que isso é importante?
O empoderamento significa um salto qualitativo para que, finalmente, se entenda que, sem 50% da população, o mundo não vai crescer. É preciso ajudar a mulher a acelerar sua integração à economia. E o melhor meio para isso são as empresas, que geram empregos e desenvolvimento sustentável. Elas precisam criar um ecossistema necessário para a mulher poder trabalhar. Uma licença-paternidade de dois ou três dias, por exemplo, é insuficiente para que o homem se envolva desde o nascimento do filho. E está comprovado que a criança que cresce com um pai participativo se torna muito menos violenta. Trabalhar com as empresas também é fundamental para que a mulher participe mais nas tomadas de decisões e do centro dos negócios, não só nas áreas de Recursos Humanos e Marketing, que são as gerências de áreas com maior presença feminina. As empresas precisam mudar sua cultura e romper com os estereótipos.
Qual é o tamanho desse desafio?
O desafio é enorme, mas Gandhi já dizia que é preciso começar por algo. Cada um tem sua responsabilidade. A nossa é promover a igualdade, e a das empresas é entender que, se não fizerem isso, vão ganhar cada vez menos. Por isso temos um projeto que se chama Ganhar-Ganhar, que trata de um imperativo categórico ético e moral, de dar oportunidade à metade da população. Pesquisas já mostram que a empresa mais diversa e que inclui a mulher ganha até 25% mais. É um imperativo ético, mas também uma questão de aumentar a produtividade e o mercado. Não esqueça que 85% dos consumidores são mulheres. E os millenials são muito mais conscientes ao selecionar os produtos e serviços que consomem — eles questionam se as empresas têm políticas de gênero ou ambientais. Se não têm, não compram o produto.
A maioria dos CEOs de empresas são homens. Como eles entram na discussão?
Comemoro os homens CEOs que entendem isso também como um negócio. O interesse pelo tema tem crescido em todas as regiões. Mas não só pelo negócio. Alguns acreditam nos objetivos de desenvolvimento sustentável e na igualdade. Acho que muitos homens querem fazer algo. E o feminismo moderno precisa envolvê-los. Temos que escutá-los também para solucionar os problemas.
Sempre se cobrou muita ação do setor público. O setor privado já é o próximo passo no esforço de alcançar a igualdade de gênero?
O setor público é fundamental para avançar em políticas adequadas. Se o setor público não entender a importância de um sistema de cuidados, por exemplo, a mulher não vai poder deixar seu bebê e sair para trabalhar. O mercado precisa oferecer oportunidades para isso. Não necessariamente subsídios, e sim ofertas. Para isso, o Estado precisa ter políticas de cuidados. O setor de cuidados vai ser cada vez mais importante nas Américas. Somos um continente jovem, mas também estamos envelhecendo. E com uma participação importante de mulheres. Em países como El Salvador são 53% de mulheres, mas na região somos 51% da população. E uma população extremamente capacitada. A mulher estuda até duas vezes mais que o homem, mas encontra essa barreira salarial.
Entre declarações públicas de apoio de empresas e governos até chegar a resultados há um longo caminho. Que exemplos já vemos na região?
A Colômbia tem feito coisas interessantes, ainda mais agora com a tentativa de implementar os acordos de paz, e gerou mais de 100 provisões específicas de gênero. O Uruguai é pioneiro e estabeleceu um sistema nacional de cuidados que permite criar empregos para que a mulher saia para trabalhar. Na Argentina, há projetos que buscam equiparar licença paternidade e maternidade. Por outro lado, nenhum país da região possui, ainda, leis que obrigam as empresas a eliminar a diferença salarial entre homens e mulheres. O único país que fez isso no mundo foi a Islândia. Já no Reino Unido, os salários passaram a ser públicos. Será possível entrar nas páginas das empresas e ver quanto os funcionários ganham, o que deve gerar diálogos e dinâmicas dentro das empresas em direção a uma mudança.
Quais práticas ruins mais persistem?
Várias ainda existem. Muitas empresas se negam a conceder licença maternidade, oferecem o período mínimo, ou negociam a antecipação da volta da mulher sob ameaça de perder o emprego. Há aquelas que sequer aceitam que ela volte. Outra prática ruim, por exemplo, é não oferecer flexibilidade de horários quando a mulher tem filhos e os horários da escola não coincidem com os de trabalho. A flexibilidade permite que ela cumpra com seu papel de mãe e profissional, em horários diferentes — e isso está associado ao aumento de produtividade porque, quando tem flexibilidade, a mulher trabalha o triplo. Mas ainda não temos uma incorporação maciça da mulher no mercado, com apenas 52% das mulheres da América Latina e do Caribe participando da economia. Isso é muito pouco. Existe também a discussão sobre redistribuição do trabalho não remunerado nas casas. A dinâmica nos lares continua sendo muito patriarcal.
Quão longe estamos de uma situação ideal? E quais seriam as possíveis soluções?
Estamos tão longe quanto menor for a vontade política. Morei na Dinamarca, em Copenhague, e aprendi muito vendo as políticas públicas de igualdade em ação. Elas dependem também do investimento fiscal. Quantos impostos estamos dispostos a pagar para financiar sistemas que nos permitam chegar à igualdade? Essa é uma questão de vontade política, para presidentes e parlamentos, mas também para a sociedade como um todo. A Dinamarca tem uma sociedade igualitária, o que custa caro, e todos concordam em pagar impostos para beneficiar-se em conjunto.
O que acontece com os royalties que nossos países recebem de petróleo, gás, mineração? Por que não exigimos que sejam destinados à igualdade? Seria maravilhoso ter impostos da igualdade, que derivam das matérias-primas. Ou imposições que tenham a ver com vícios da sociedade, como o álcool ou o tabaco. Um dos planos de ação criados a partir de Pequim (a China sediou em 1995 a Conferência Mundial sobre a Mulher, organizada pela ONU) era criar plataformas de ações de gênero, que não chegam a 0,1% dos orçamentos nacionais. Todos falam que é preciso chegar à igualdade, mas ela custa. Por isso insisto na questão fiscal. Temos tantos recursos naturais na região. É preciso que as políticas públicas realmente sejam dirigidas para que as mulheres cresçam como os homens, com as mesmas oportunidades.
Por Elisa Martins