Suspeitas de desvios na cota de gênero refletem baixa representatividade feminina na política, apontam especialistas

19 de março, 2019

Brasil ocupa a 133º posição em ranking mundial de representatividade feminina na Câmara dos Deputados. No Senado, dos 54 senadores eleitos em 2018, apenas 7 são mulheres

(O Globo, 19/03/2019 – acesse no site de origem)

Mais de cinco décadas distanciam Josete Martins Ramos, de 76 anos, e Danielle Alves, de 17. A estudante nunca votou, diferente da bancária aposentada, que lembra com boa memória candidatos de eleições passadas. Um pensamento, no entanto, aproxima as duas: faltam mulheres na política brasileira.

A última vez que Josete foi às urnas para votar em uma candidata foi em 2002, quando votou em uma deputada federal. Apesar de reconhecer a falta de representatividade feminina, ela diz que o gênero não faz diferença na hora do voto.

— Precisa ser capaz de exercer o cargo. Se for bem preparado, não importa se é homem ou mulher — opina.

Já Danielle acabou perdendo o prazo de emissão do título de eleitor no ano passado após completar 16 anos. Jovem negra, a estudante acredita que faz toda diferença se uma parlamentar é mulher.

— É preciso que haja mulheres ocupando esses espaços, porque só mulheres sabem o que mulheres passam. Como negra, sinto uma falta de representatividade muito grande. Nossas pautas acabam não sendo colocadas em debate — comenta.

A falta de representatividade sentida não apenas pelas duas, mas por outras tantas mulheres, tenta ser contornada por mecanismos que existem há mais de 20 anos na legislação brasileira. As primeiras cotas de gênero foram criadas entre 1995 e 1997, e pela última edição, obrigam que no mínimo 30% das candidaturas de cada partido ou coligação sejam preenchidas por mulheres. No ano passado, por decisão do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, esse mesmo mínimo percentual deve ser reservado dos Fundos Eleitoral e Partidário para financiar candidaturas femininas.

No entanto, casos recentes levantaram suspeitas de que mulheres foram usadas nas eleições do ano passado como ‘laranjas’ — candidatas de fachada, que teriam entrado na corrida eleitoral apenas para que partidos atingissem o percentual mínimo, e os recursos, destinados por lei ao financiamento das candidaturas femininas, desviados para outros fins, inclusive para candidatos homens.

Para Luciana Lóssio, ex-ministra do TSE e presidente da Comissão de Direito Eleitoral do Instituto dos Advogados do Brasil, as suspeitas de desvio de verba de financiamento esbarram diretamente na falta de representatividade feminina, e poderiam ser evitadas com a presença de mulheres ocupando cargos nas diretorias e tesourarias dos partidos.

— Não vemos mais do que os 30% exigidos por lei de mulheres sendo candidatas porque os partidos não estão abrindo as portas, não estão possibilitando que as mulheres se lancem candidatas com as reais condições de concorrer. Com democracia intrapartidária, teríamos mulheres ocupando espaços de decisão, participando da divisão do dinheiro do financiamento de campanha, e muitos desvios como esses poderiam ser evitados — diz a ex-ministra.

Professora de Ciência Política da UnB, a professora Flávia Biroli afirma que com projetos de lei como o do senador Angelo Coronel (PSD-BA), que pretende acabar com a cota de gênero , promove-se a visão equivocada de que mulheres não querem participar dos debates políticos.

— Mulheres participam de conselhos, protestos, são filiadas a partidos, mas encontram dificuldades para candidatar-se e para eleger-se. Os partidos são estruturas de poder historicamente masculinas, e as lideranças partidárias têm grande poder no Brasil. E nesse ponto, o financiamento público eleitoral aumenta seu poder: elas definem para quais candidaturas irá o recurso — diz.

País avança pouco em representatividade

De um total de 193 países, o Brasil ocupa a 133º posição no ranking mundial de representatividade feminina na Câmara dos Deputados, atrás de países como a Arábia Saudita, onde as mulheres só foram autorizadas a dirigir no ano passado, e só podem trabalhar ou abrir uma empresa ou conta bancária com a permissão de um homem.  A informação é produzida pelo organismo internacional Inter-Parliamentary Union, e revela o quão distante o país está do cenário ideal de proporcionalidade em relação ao número de mulheres na população – segundo a projeção do IBGE para este ano, 51% da população brasileira é feminina.

Com as eleições de 2018, o número de deputadas federais aumentou 49% em relação ao último pleito, passando de 51 para 76 parlamentares eleitas. No Senado Federal, onde o primeiro banheiro feminino só foi construído em 2016, mais de 50 anos depois da inauguração do Congresso Nacional, o panorama é o mesmo desde 2010, ano em que ocorreram às últimas eleições de 2/3 da casa: dos 54 senadores, apenas 7 mulheres foram eleitas. Em três estados, não houve nenhuma candidatura feminina para o Senado.

Coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades do Instituto de Ciência Política da Unb, a professora Biroli defende que a solução mais adequada para aumentar a presença de mulheres na política seria a reserva de assentos.

— A legislação que temos é uma medida mínima e sua efetividade depende de fiscalização. Sou a favor de uma lei de paridade que reserve 50% dos assentos nos legislativos nacional, estadual e local para mulheres. Assim teríamos, de fato, uma democracia que se organiza pelo princípio de igual oportunidade de participação — avalia Biroli, que também defende que a medida seja adotada pelos partidos — Democratizar os partidos políticos seria muito importante, assim mais mulheres participariam das decisões sobre candidaturas e financiamento, sobre o programa do partido, sua identidade pública e as visões sobre o país que ela promove — explica.

A deputada federal Sâmia Bonfim (PSOL-SP) apresentou um projeto de lei para garantir às mulheres 50% das vagas em câmaras de vereadores, assembleias legislativas, Câmara dos Deputados e Senado. A proposta foi batizada de Marielle Franco.

— Há muitas mulheres que poderiam estar nesses espaços de poder, mas não estão porque as estruturas políticas brasileiras não favorecem a nossa participação política. Se tiver cota dentro do parlamento, os partidos políticos e a sociedade vão ter que se adaptar, investir em candidaturas femininas, garantir que elas apareçam na televisão, tenham cultura e formação política para competir em igualdade de condições com os homens — defende a parlamentar.

Reeleita para seu segundo mandato, a deputada federal Rosangela Gomes (PRB-RJ) segue o mesmo raciocínio de Bonfim e Biroli. Para ela, o número de mulheres no Legislativo brasileiro é insuficiente e a reserva de assentos nos parlamentos é o caminho que deve ser seguido.

— Faz toda a diferença um parlamento ser equilibrado. Não há democracia sem isso. Com um número semelhante de homens e mulheres, a democracia estará completamente enriquecida — opina.

Rosangela Gomes foi a única mulher eleita para a Câmara de Vereadores de Nova Iguaçu em 2000. Defendendo pautas que se relacionam diretamente ao cotidiano das mulheres, como o combate ao câncer de mama e investimentos em creches, ela lembra de ser hostilizada e de ouvir que aquele “não era lugar de mulher”. Na atual legislatura na cidade da Baixada Fluminense, apenas uma mulher, Renata da Telemensagem (PTC), é vereadora na casa, ao lado de 16 homens.

A reserva de assentos no Legislativo também é defendida por Luciana Lóssio, que acredita que a paridade de gênero se trata de uma questão de direitos humanos.

— Metade da humanidade é feminina, e assegurar o direito das mulheres de serem representadas é um implemento do direito humano de uma minoria que historicamente foi renegada e ocupava um papel secundário. Hoje não há mais espaço para isso — afirma a ex-ministra.

Leticia Lopes, estagiária sob supervisão de Maiá Menezes.

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