Os projetos de lei apresentados pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, podem abrir um caminho para a Justiça absolver acusados de agressão contra a mulher e de feminicídio, o assassinato motivado pela condição de mulher da vítima. A análise é de advogadas e promotoras especialistas no tema da violência contra a mulher.
(UOL, 21/02/2019 – acesse no site de origem)
O pacote altera leis que tratam das penas e do processo criminal, com foco nos crimes de corrupção, os praticados com violência e os cometidos por organizações criminosas. O texto foi apresentado ao Congresso Nacional na terça-feira (19).
Um dos pontos do Código Penal que o projeto quer mudar são os artigos que tratam da legítima defesa.
Hoje o termo é entendido como a possibilidade de usar a força para repelir um ataque ou ameaça iminente contra si ou outras pessoas. Mas isso deve ser feito de forma proporcional, e a lei diz que os chamados “excessos” na legítima defesa devem ser punidos. Um exemplo de excesso é o da pessoa que, para se defender de uma agressão desarmada, atira com uma arma de fogo no agressor.
O projeto de Moro prevê que o excesso na legítima defesa possa deixar de ser punido, ou ter a pena reduzida até a metade, se o juiz entender que ele ocorreu em uma situação que envolve “medo, surpresa ou violenta emoção”.
Foi o uso da expressão “violenta emoção” que disparou o alerta de quem lida com a violência contra a mulher. O temor é o de que, numa situação como a de uma briga de casal, por exemplo, a morte de mulheres deixe de ser punida com base no entendimento de que o agressor foi levado por “violenta emoção” em sua suposta legítima defesa.
“Há uma preocupação, sim, a gente tem um medo que isso acabe sendo um retrocesso e seja utilizado como uma forma de absolver os casos de feminicídio”, diz a advogada Alice Bianchini, vice-presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).
“Se aprovado, a gente vai ver como os juízes vão começar a interpretar isso, e não só os juízes, mas, como esse é um processo de júri, os jurados”, ela afirma. “Fora que a gente tem uma cultura de violência contra a mulher muito forte, então essa é a nossa preocupação: que os próprios jurados acabem encontrando nesse dispositivo legal uma forma de absolver o acusado”, diz a advogada.
Esse tipo de crítica foi rebatido por Moro durante a apresentação do projeto. O ministro afirmou que nas agressões às mulheres não estaria caracterizada a legítima defesa. “As situações de violência doméstica, de feminicídio, não envolvem circunstâncias de legítima defesa. Uma mulher que sofre a agressão do marido é uma vítima, o marido não está agindo em qualquer circunstância de legítima defesa”, disse Moro.
Para a subprocuradora-geral da República Ela Wiecko, coordenadora do Comitê de Equidade de Gênero e Raça do MPF (Ministério Público Federal), o texto do projeto amplia as possibilidades de o juiz conceder absolvição ou redução de pena aos acusados de agredir uma mulher, desde que o agressor alegue ter agido em legítima defesa impelido por “violenta emoção”.
“É mais uma possibilidade que os agressores têm na sua defesa. Os advogados vão ter mais uma possibilidade de argumento”, diz Wiecko.
“Se há agressões verbais e ele dá uma bofetada, isso é um excesso de legítima defesa. Essa agressão física já é excessiva”, afirma a procuradora.
Para Wiecko, esse ponto do projeto de Moro parece ter sido pensado para ampliar as hipóteses de aplicação da legítima defesa à atividade policial, porém, como a alteração proposta será feita na parte geral do Código Penal, se aplicaria a todas as situações em que a legítima defesa pode ser invocada.
“Esse dispositivo que está sendo proposto foi pensando realmente dentro da ação policial, para aumentar a possibilidade de aceitação da legítima defesa. Mas, realmente, como o dispositivo é geral, ele pode ser aplicado para outros crimes e têm duas hipóteses que se afiguram de muito provável aplicação que é no caso de homicídio contra as mulheres ou no caso da lesão corporal grave praticada contra as mulheres”, diz a procuradora.
A promotora de Justiça Valéria Scarance, coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público do Estado de São Paulo, diz acreditar que a hipótese de deixar de punir a legítima defesa praticada por “violenta emoção” não deva ser aplicada na prática pelos tribunais, pois a legislação penal já possui uma previsão específica para redução de pena nos casos de homicídios cometidos “sob o domínio de violenta emoção”.
Esse dispositivo do Código Penal permite a redução da pena de um sexto a um terço.
“Essa é uma norma específica dos crimes contra a vida, enquanto a regra do projeto é geral. Então, quando temos esse conflito de leis, uma das regras é a da especialidade: prevalece a lei especial sobre a geral”, diz Scarance.
Já nos casos de agressões que não resultam em morte, a promotora defende que seja acrescentada uma ressalva ao texto do projeto de Moro, para ficar claro que as hipóteses de isenção da punição não se aplicam a agressões contra mulheres.
“Mas, para se estancar qualquer dúvida em relação aos outros crimes, o ideal seria que se colocasse uma ressalva [no projeto], por exemplo: salvo nos crimes hediondos e assemelhados, ou salvo nas hipóteses de violência contra a mulher, idoso, criança e adolescente”, ela diz.
Para Scarance, o projeto traz pontos positivos no enfrentamento à violência contra a mulher, como a maior dificuldade para a progressão de regime de prisão e a possibilidade de cumprimento de pena a partir da condenação em segunda instância. Ela afirma que essas medidas facilitam manter o agressor preso, o que o afasta do convívio da vítima.
“Para mulheres em situação de violência são situações favoráveis, já que muitas vezes quando o agressor está em liberdade ele pode colocar em risco essa mulher”, diz. “De uma maneira geral, esse projeto de lei é mais protetivo para as mulheres”, afirma a promotora.
Felipe Amorim