(A Ponte, 15/04/2015) Ninguém perde, ou ao menos deveria perder, sua cidadania por ser travesti, por ser negra ou por estar presa. Nessa tripla condição social, Verônica Bolina nos denuncia, com seu próprio corpo, os tratamentos mais preconceituosos e desumanos dispensados por nosso Estado
Mais uma vez, uma travesti tornou-se visível aos olhos da sociedade e dos poderes públicos não pelo reconhecimento de sua existência e pela garantia plena de sua cidadania, mas por conta da violência brutal que sofreu enquanto estava sob custódia de forças de segurança pública.
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Trata-se do caso de Verônica Bolina, que foi detida no último domingo (12/04) sob acusação de ter entrado em conflito com uma vizinha. Além disso, ela também é acusada de ter atacado e arrancado a orelha de um carcereiro quando estava sendo transferida de cela no 2º Distrito Policial, no bairro do Bom Retiro, em São Paulo.
Se apurada sua responsabilidade por esses atos ilícitos, Verônica deve ser processada em conformidade com a lei, que prevê procedimentos e sanções que obrigam a todos, inclusive os agentes públicos.
No entanto, foram veiculadas, nos últimos dias pelas redes sociais e pela imprensa, imagens chocantes de seu corpo nitidamente torturado e de seu rosto totalmente desfigurado. Verônica aparece com mãos e pés algemados, jogada no chão e cercada por policiais armados. Ela foi exposta nua nas fotografias, com seus seios de fora, suas calças rasgadas e com seus cabelos, antes longos, cortados.
A narrativa oficial, como tantas outras versões policiais de violência estatal que oscilam entre o cinismo e a fantasia, é a de que Verônica teve de ser contida mediante uso da força em virtude do risco que ela oferecia aos agentes públicos envolvidos.
Em primeiro lugar, o uso legítimo da força pela polícia deve ser feito de modo proporcional e razoável, dentro dos limites legais.Para “conter” uma pessoa que esteja cometendo um ato ilícito, não se justifica desfigurar um rosto com tantos golpes e pancadas. É também de responsabilidade da polícia não permitir que ela seja agredida por outros detentos.
Um segundo aspecto a ressaltar são as violências simbólicas e morais, mas não menos graves, que uma polícia despreparada para lidar com a diversidade de identidade de gênero praticou neste caso. Ao cortar os cabelos de Verônica, destituindo-lhe, forçosamente, de um traço social importante de sua identidade, os agentes públicos envolvidos transgrediram normas estabelecidas pelo próprio governo do Estado de São Paulo quanto ao tratamento de travestis e transexuais no âmbito do sistema prisional nos termos da Resolução SAP – 11, de 30-1-2014.
Resta evidente que por preconceito e por ignorância os agentes envolvidos tiveram como objetivo não apenas “conter” Verônica, mas humilhá-la publicamente e submetê-la a condições degradantes simplesmente porque ela tem uma identidade de gênero distinta de seu sexo biológico, desafiando as normas de regulação das sexualidades baseadas no patriarcalismo, na heterossexualidade e na cisgeneridade.
A exposição dela em fotografias tiradas quando ela se encontrava dentro de dependências policiais e sob custódia do Estado tornam, objetivamente, este responsável também por essa exposição em estado de extrema vulnerabilidade.
Ontem veio a público um depoimento de Verônica em que ela mesma teria “confessado” seus crimes. Ela diz que estava “possuída” e que a polícia apenas fez seu papel ao “contê-la”. Ela afirma que “todo mundo está achando que eu fui torturada pela polícia, mas eu não fui. Eu simplesmente agi de uma maneira que eu achava que estava possuída, agredi os policiais, eles só agiram com o trabalho deles. Não teve agressão de tortura. Cada ação tem uma reação, eu agredi e fui agredida. Eles tiveram que usar das leis deles para me conter, então não teve de nenhuma forma tortura. Eu só fui contida, não fui torturada”.
Obviamente, que ouvir vítima é uma fase fundamental da investigação e um importante instrumento para empoderamento para reparação das violências sofridas. No entanto, um depoimento dado após tamanho trauma, em estado de fragilidade física e emocional, provavelmente em surto pela alegação de estar “possuída”, com a vítima ainda em poder dos mesmos agentes públicos, em flagrante contraste com que as imagens demonstram, não pode ser alçado sem maiores questionamentos à condição de verdade oficial.
Não podemos assumir acriticamente enquanto cidadãos e muito menos como autoridades investidas do dever funcional de garantir a apuração desse caso, especialmente a Coordenadoria para Políticas para a Diversidade Sexual do Estado de São Paulo, a versão de que a vítima é responsável por ser barbaramente agredida. Bem sabemos como violências sob esse recorte de gênero estão sempre acompanhadas de discursos perversos de culpabilização da vítima e de especulação sobre sua moralidade sexual.
Em situações de violência institucional do Estado, o ônus da prova deve ser invertido, de modo que não recaia, sobre os ombros da vítima já afetada física e psicologicamente, o dever de comprovar esses fatos diante das dificuldades em obter tais evidências contra o Estado. Este tem maiores condições e deve ser cobrado para comprovar que não houve excesso e abuso policial.
Este caso não pode ser dado como se já estivesse resolvido com o depoimento de Verônica em uma gravação realizada pela autoridade policial ainda com ela detida. Uma investigação profunda e séria precisa ser levada a cabo, com participação dos órgãos oficiais de proteção e promoção dos direitos de pessoas LGBT dos diversos níveis de governo (municipal, estadual e federal) para apuração e responsabilização rigorosa.
Além disso, é preciso garantir um acolhimento psicológico e jurídico adequado para Verônica, de modo a impedir que novas violações de direitos sejam praticadas. Seu depoimento precisa ser colhido livre de pressões e longe desse contexto de fragilidade em que ela se encontra, sujeita a pressões e até ameaças eventualmente.
Verônica tem razão em um aspecto. Os policiais usaram “as leis deles”. Contudo, essas leis policiais não são as mesmas do Estado Democrático de Direito, que deve assegurar, conforme os tratados internacionais e a Constituição de 1988, a defesa dos direitos humanos de todas as pessoas, independentemente de a pessoa encontra-se em situação de privação de liberdade por ter cometido qualquer crime.
Ninguém perde, ou ao menos deveria perder, sua cidadania por ser travesti, por ser negra ou por estar presa. Nessa tripla condição social, Verônica nos denuncia, com seu próprio corpo, os tratamentos mais preconceituosos e desumanos dispensados por nosso Estado, que ainda prefere a exceção das violências contra LGBTs, negras e presas à democracia.
Renan Quinalha é advogado e militante de direitos humanos. Organizou, com James N. Green, o livro “Ditadura e Homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade” (EdUFSCar, 2014).
Acesse no site de origem: Presa, negra e travesti: devemos ser todas Verônica, por Renan Quinalha (A Ponte, 15/04/2015)