Conexões reais e espaços públicos acessíveis são chaves contra a solidão. Estar na rua é resistência, saúde e direito de todas
Estar na rua, dividir o espaço com desconhecidos, mesmo que por poucos segundos, faz parte de algo maior do que parece. É importante para sua saúde, para a sua rotina e para a sua felicidade. A gente ousa dizer que para as mulheres, ocupar as ruas carrega um sentido ainda mais profundo: é um gesto de afirmação. Estar num território onde nossos corpos nem sempre foram bem-vindos é, ao mesmo tempo, resistência e reinvenção cotidiana, incluindo a busca por diversão.
Especialistas têm investigado a importância das conexões, principalmente aquelas que acontecem do lado de fora. Estabelecer essa relação com o outro se transformou em preocupação de saúde pública. Cinco anos após o início da pandemia da Covid-19, há estudiosos que afirmam que só agora vamos conseguir identificar os reais impactos de termos ficado tanto tempo sem ir para a rua.
Esse sentimento de solidão também foi considerado uma epidemia global pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2023. O esgarçamento das relações deu novos contornos à pauta da saúde: se antes ela era dominada pelos cuidados com o corpo, passamos a falar mais sobre os aspectos mentais.
Hoje, essa preocupação ganha um acréscimo: a saúde social. A psicoterapeuta belga-estadunidense Esther Perel aponta que falar somente da crise de saúde mental é uma forma de evitar tocar no tema da crise social. Segundo ela, é mais fácil medicalizar os sintomas de um sofrimento do que encarar que parte do mal-estar contemporâneo vem da desintegração dos vínculos sociais, que ela chama de “atrofia social”.
Debate sobre saúde social ganha mais espaço
É aí que entra o alerta: como estamos nos relacionando com o outro e com nossos espaços sociais? Esse questionamento encontrou eco na edição 2025 de um dos principais eventos do mundo que apontam tendências, o festival South by Southwest (SWSW). Foram muitas as mesas que discutiram a saúde social como eixo complementar à saúde física e mental, e o impacto direto que os laços afetivos, ou a ausência deles, exercem sobre nosso bem-estar.
A estadunidense Kasley Killam, que tem pesquisado o assunto mais a fundo, mostra como a saída está em estratégias para que cada pessoa estabeleça relações mais profundas, e também que governos adotem ações para lidar com a epidemia de solidão e estimular as conexões humanas.
Algumas cidades europeias, como Barcelona, criaram comitês municipais para lidar com o tema como política pública. Eles conseguiram mapear mais de 250 serviços que impactavam, direta ou indiretamente, o modo como as pessoas se relacionam para montar um plano de ação de 10 anos – que inclui revitalizar espaços comunitários e tornar as ruas mais amigáveis para pedestres. A rua, mais uma vez, aparece como espaço de cuidado coletivo.
A rua é, sim, uma questão de gênero
Quando encontramos uma amiga por acaso, quando participamos de uma roda de conversa ou de uma aula de dança ao ar livre, criamos memórias, vínculos e a sensação de que fazemos parte de algo maior. Essa experiência cotidiana de convivência é um antídoto potente contra a solidão. Só que, para as mulheres, o espaço público não representa somente rede, mas também ameaça. Isso porque, historicamente, o lugar social reservado para nós era o doméstico, delimitado pelas paredes de casa e pela vigilância moral.
Apesar das mudanças nesse acesso à rua, carregamos no corpo o peso da história. Isso significa que desde pequenas somos incentivadas a brincar mais dentro do que fora de casa. Roupas, horários, iluminação seguem determinando quando vamos, como e se devemos ir.
Além das limitações simbólicas, há a violência concreta. O medo do estupro molda nossos trajetos, passos e decisões. Uma simples caminhada pode se transformar num campo de tensão. Nos sentimos em constante estado de perigo. E quando não nos sentimos seguras, evitamos sair, encontrar pessoas, nos conectar. Isso nos isola. Rompe laços. Dificulta a construção de pertencimento. E esse medo, muitas vezes invisível, também adoece.
Essa questão de gênero também passa por uma intersecção de raça e classe social. Os enfrentamentos não são iguais e não se impõem da mesma forma para todas nós. O que nos une é que essa separação entre os domínios do privado e do público criou um abismo. Enquanto os homens ocupam a rua como lugar de sociabilidade, trabalho e expressão; as mulheres tendem a permanecer invisibilizadas e silenciadas.