As votações do Brasil em Genebra, dias atrás, sobre temas relacionados aos direitos das mulheres, durante a 41ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, não trazem nada de novo sobre o governo Bolsonaro e a linha de atuação já fortemente publicizada pelo chanceler Ernesto Araújo e sua equipe. Aliás, já é hora de parar de se espantar a cada sinal dado de que as políticas de estado, incluindo as diretrizes da política externa liderada por Araújo, não rumam para a busca da equidade de gênero. Esse é um governo, afinal, “terrivelmente cristão”, e não é possível falar sobre equidade de gênero partindo prioritariamente de qualquer religião.
Isso não quer dizer, entretanto, que os direitos das mulheres estão na berlinda nas Organizações das Nações Unidas, nem muito menos que o trabalho por equidade feito no Brasil por organismos como a ONU Mulheres esteja enfraquecido. Para além dos votos que a embaixadora do Brasil na ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo — a representante do país em todas as votações em Genebra —, deferiu na semana passada na reunião do Conselho de Direitos Humanos para as pautas relacionadas à violência e discriminação contra mulheres e meninas e o casamento prematuro e forçado de crianças, há uma articulação internacional consistente, global e regional, cuja força é inegável e repercute no Brasil. Ao votar, por exemplo, a favor de emenda apresentada por Egito e Iraque que pedia a retirada do termo “direito à saúde sexual e reprodutiva” do texto que tratava sobre casamento prematuro, Maria Nazareth apenas reafirma a postura ultraconservadora do governo sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, mas não muda o curso do rio. Afinal, a emenda não avançou e o termo pode ser encontrado na terceira página da Resolução sobre a questão , documento oficial da ONU que serve como orientação aos países para lidar com o tema.
Como as mulheres vêm lutando com êxito há décadas na ONU, esse foi o desfecho, inclusive, de todos os votos conservadores do Brasil relacionados aos direitos das mulheres na ocasião: não representaram o que passaram a ser, ao final do encontro que envolveu os 47 países membros do Conselho de Direito Humanos, as três principais resoluções para os direitos das mulheres. Organizações da sociedade civil e especialistas de diversos países pró-direitos que acompanham todo o processo de votação e construção dos documentos consideram as medidas positivas por reafirmarem compromissos que dialogam com a busca pela equidade.
É preciso observar que apesar ter havido alinhamento do Brasil aos países que propuseram emendas para a retirada do termo gênero, direitos reprodutivos, entre outros, ainda não há uma radicalização do país no sentido de votar ou se abster de qualquer proposta que contemple o termo gênero. A embaixadora brasileira apertou “sim” na votação pela manutenção de um especialista em proteção contra a violência e a discriminação baseada na orientação sexual e na identidade de gênero, enquanto países como Afeganistão, China, Egito e Paquistão votaram pelo “não”.
Sob os holofotes pela votação que vai contra a tradição do Brasil nos temas e gênero na ONU está Maria Nazareth Farani Azevedo, diplomata de carreira com mais de 30 anos de atuação, embaixadora também nos governos Lula e Dilma e sem qualquer atuação pública expressiva no campo dos direitos das mulheres. No atual governo, tem atuado sem criticar até o momento posições do presidente ou do chanceler, e até já saiu em defesa de Jair Bolsonaro em março, em Genebra, quando rebateu críticas feitas ao presidente pelo ex-deputado Jean Wyllys. Ela afirmou que o presidente não era fascista, nem racista e que seu governo não é uma organização criminosa.
A embaixadora pode seguir protagonizando votações que contrastam com avanços e com o trabalho por manutenção de direitos das mulheres liderado por grupos políticos e organizações da sociedade civil caso o Brasil seja reeleito para Conselho de Direitos Humanos da ONU, em outubro. O documento em que o país pleiteia novamente a vaga (para o triênio 2020-2022) já foi enviado ao órgão e exclui o termo “gênero” enquanto inclui “promoção da família”. A palavra gênero é contemplada de forma estratégica pelas mulheres na ONU desde 1995, ano da IV Conferência Mundial das Mulheres em Beijing, evento-marco para o movimento das mulheres no mundo e na América Latina. Foi lá que a “Declaração e Plataforma de Ação de Pequim” foi lançada, estabelecendo objetivos no enfrentamento às desigualdades de gênero. As relações de poder entre homens e mulheres foram problematizadas levando em conta os papeis atribuídos às mulheres e aos homens, avançando no sentido de superar o debate antes tão pautado na diferenciação biológica.
No Brasil, a ONU Mulheres segue com uma agenda ampla e intensa, atuando em território nacional por meio de parcerias com governos locais, estaduais, com projetos que versam sobre representatividade feminina na política, sobre enfrentamento à violência contra as mulheres, sobre promoção de lideranças e equidade no mercado de trabalho. Em Brasília, promove periodicamente fórum de mulheres que estão em cargos da política, seja no Executivo ou no Legislativo, e dialoga intensamente com o judiciário para contribuir com o amadurecimento no trato às questões de gênero na política. Liderada até o início do ano pela mexicana Nadine Gasman, que manteve por anos no centro do trabalho da sua equipe a pauta da promoção de lideranças políticas femininas, a ONU Mulheres no momento seleciona a nova representante para o país, levando em consideração a necessidade de manter algum diálogo com o governo que publiciza nacional e internacionalmente a intenção de retrocesso nos direitos.
Giulliana Bianconi é jornalista, diretora da Gênero e Número, organização de mídia que atua na intersecção entre pesquisa, jornalismo de dados e debate sobre gênero e direitos das mulheres.