Levantamento mostra que, entre os que realizam interrupção, há exigências fora da lei
(Folha de S.Paulo, 19/06/2019 – acesse no site de origem)
Menos da metade dos hospitais listados no Ministério da Saúde e no CNES (confederação de estabelecimentos de saúde) como locais que fazem aborto nos três casos previstos por lei realiza de fato o procedimento.
De 176 instituições cadastradas, apenas 76 (43%) confirmam a oferta do serviço quando contatadas pelo telefone.
Os dados constam em relatório que será divulgado nesta quarta (19) pela organização britânica de direitos humanos Artigo 19 (em alusão à Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU), que atua em nove países em temas relacionadas à liberdade de expressão e de informação.
No Brasil, o aborto é permitido em três situações: gravidez decorrente de estupro, risco à vida da mulher ou em caso de anencefalia do feto.
Dos hospitais que fazem o aborto legal, 16 citaram o BO como necessário para a realização do procedimento, mesmo o documento não sendo mais uma exigência desde 2005.
Um deles disse que só faria a interrupção mediante exame de corpo de delito—tampouco uma exigência legal.
Segundo a pesquisadora Julia Rocha, da equipe de acesso à informação da Artigo 19, a pesquisa mostra que as mulheres ainda percorrem uma estrada tortuosa para fazer valer o direito ao aborto legal.
“O acesso à informação sobre aborto legal ainda é uma barreira. Há respostas ríspidas, tabus e julgamento moral em torno do assunto”, diz.
No caso da idade gestacional máxima para a realização do aborto no caso de estupro, as respostas variaram de 12 a 22 semanas —deveriam ser uniformes, já que existe norma técnica sobre o tema.
Em casos de gestação decorrente de estupro, o procedimento pode ser feito até 20ª semana de gravidez, com a possibilidade de ser feito até a 22ª caso o bebê pese menos de 500 gramas. Não há limite nos casos de anencefalia e risco à vida da gestante.
Eventuais atrasos no processo podem empurrar a gestação para além do prazo limite para os casos de estupro.
A defensora Paula Sant’Anna Machado de Souza, do núcleo da mulher da Defensoria Pública de São Paulo, diz que muitas mulheres buscam atendimento com essa demanda. “Há serviços que desconhecem os prazos estabelecidos e se recusam a fazer o procedimento, obrigando a mulher a continuar com a gestação, algo violento.”
Outra situação, segundo ela, é o serviço exigir inadvertidamente o BO e, depois, recusar a fazer o procedimento caso haja contradição entre o depoimento da mulher à polícia e a conversa que ela tem com equipe médica que a acolhe.
“Há casos em que essa mulher é julgada, acham que ela está mentindo se, por exemplo, ela não se lembra quando exatamente sofreu a violência. Se o BO não é uma exigência legal para a interrupção, também não pode ser considerado prova contra essa mulher.”
Dentre os hospitais que dizem não fazer o aborto mesmo estando na lista do ministério, alguns alegaram que não o fariam porque “é crime e aqui não defendemos direitos humanos para bandido”, ignorando a legislação sobre o tema. Houve respostas como “deus me livre!” e “nenhum médico aqui faz isso”.
Para Julia Rocha, ainda falta informação ao público leigo sobre o direito ao aborto legal e como acessá-lo e, ao mesmo tempo, capacitação dos profissionais de saúde.
O estudo envolveu dois mecanismos de busca de informação. No primeiro, uma pesquisadora se identificou como tal, e, no segundo, foi assumida a identidade de uma vítima de estupro. Foram feitas três tentativas de contato em cada hospital. Ao final, as respostas dadas foram compiladas em uma só planilha.
Como resultado da pesquisa, foi criado um mapa com a lista de hospitais da rede pública que realizam interrupção da gestação nos casos previstos por
lei. Ele pode ser visto em mapaabortolegal.org.
Segundo Daniela Pedroso, psicóloga do principal serviço de aborto legal do país, do Hospital Pérola Byington (SP), ainda é comum as mulheres relatarem uma via-sacra até conseguir a interromper a gravidez em casos de estupro.
“Mas antes da falta de acesso aos serviços, existe muito desconhecimento. Muitas não sabem que têm direito ao aborto legal”, afirma.
A falta de conhecimento também atinge profissionais do direito. “Recebemos uma paciente da região nordeste, vítima de estupro, que ficou esperando o advogado conseguir um alvará judicial. Em nenhum momento esse profissional a orientou de que ela precisava desse documento.”
Segundo Pedroso, antes eram comuns relatos de pacientes sobre serviços que postergavam o atendimento, de modo a inviabilizar o aborto por conta da idade gestacional avançada. Agora, diz ela, são mais frequentes casos de hospitais que se recusam a fazer o procedimento, mas orientam a mulher a procurar o Pérola.
Na opinião da psicóloga, facilitar o acesso ao aborto legal não apenas previne interrupções feitas em condições inseguras que, não raras as vezes, causam a morte da mulher ou sequelas irreversíveis, como também evita suicídios.
Um estudo feito entre as vítimas de estupro atendidas no Pérola Byington mostrou que 20% delas tinham ideações suicidas. “Precisamos repetir muitas vezes que essas mulheres não precisam ir à delegacia, não precisam de BO, não precisam de exame de corpo delito, não precisam de alvará judicial. Elas têm direito ao aborto legal.”
Cláudia Collucci