(Jornal do Comércio, 01/12/2014) No final da década de 1970, mais especificamente entre os anos de 1977 e 1978, dezenas de pessoas começaram a morrer em razão de uma síndrome que causava uma grave deficiência no sistema imunológico. As vítimas eram, principalmente, homens homossexuais. Os primeiros casos foram registrados nos Estados Unidos, no Haiti e em países da África Central.
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O que causava os óbitos era um mistério. Nenhuma doença, vírus ou bactéria já conhecido pela ciência era o responsável. Em meio ao clima de dúvidas, pairava o medo. Como se prevenir de uma doença que não se sabe como se contrai?
A nuvem de incertezas começou a se dissipar em maio de 1983, quando o cientista francês Luc Montaigner, do Instituto Pasteur, de Paris, conseguiu isolar o vírus causador do misterioso mal. Sua conquista, porém, passou quase que despercebida no meio científico. Em abril do ano seguinte, o norte-americano Robert Gallo, do Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos, anunciou a identificação do vírus.
Os dois protagonizaram uma ferrenha disputa pela paternidade do feito, na medida em que o norte-americano utilizou amostras enviadas pelo francês, que não tinha condições técnicas em seu laboratório para avançar na pesquisa. O imbróglio só foi resolvido em 1994, quando as autoridades sanitárias dos EUA reconheceram que Montaigner e sua equipe foram os responsáveis pela descoberta. A proeza rendeu um Nobel de Medicina ao francês, em 2008. Entretanto, foi a partir do anúncio de Gallo, em 1984, que a Aids passou a ser conhecida mundialmente.
Passados mais de 30 anos do anúncio oficial de descoberta do vírus, a doença ainda não tem cura comprovada cientificamente, ainda infecta um grande número de pessoas no mundo (2,1 milhões de novas infecções em 2013), e ainda mata muito (1,5 milhão de óbitos em decorrência de doenças causadas pelo vírus no ano passado).
Conforme o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre o HIV e Aids (Unaids), a epidemia já matou 39 milhões de pessoas em todo o planeta. Um estudo divulgado em julho deste ano aponta que as infecções no Brasil aumentaram 11% entre 2005 e 2013, com o País registrando, no ano passado, 47% de todos os novos casos da América Latina.
De doença dos 5H à epidemia sem distinções
Quando surgiu espalhando o medo por todo o mundo, a Aids era uma doença fortemente associada a homossexuais. O mal causado pelo vírus HIV ainda não havia sido batizado como Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. Em 1982, recebeu o nome temporário de Doença dos 5H. O nome representava os cinco grupos populacionais que eram mais afetados – homossexuais, hemofílicos, haitianos, heroinômanos (usuários de heroína injetável) e hookers (nome em inglês dado às profissionais do sexo).
O tempo, porém, fez com que o estigma deixasse de obter correspondência nos fatos. Dados do Ministério da Saúde indicam que, desde o início dos registros de infecção pelo vírus no País até junho de 2013, 77.583 casos notificados, e que tiveram relações sexuais como a causa do contágio, envolviam homens homossexuais. As infecções de homens heterossexuais, no mesmo tipo de exposição ao HIV, somaram 120.729. Ou seja, no Brasil, o número de heterossexuais contaminados em razão de contato sexual foi 55,6% superior ao de homossexuais.
A mudança no cenário de contágio masculino ocorreu com força a partir de 2001, quando as infecções em razão de contato sexual de heterossexuais passaram a superar, e muito, a de homossexuais. Naquele ano, foram notificados 2.765 casos de infecções em pessoas do sexo masculino homossexuais, enquanto o número de notificações de homens heterossexuais foi de 6.012. Os últimos dados consolidados do governo federal mostram que, em 2012, foram 7.082 notificações de homens héteros e 4.307 de homossexuais.
Apesar de ter deixado de ser uma doença que atinge a um segmento específico da população, a contaminação por HIV ainda tem prevalência em alguns grupos populacionais. Conforme o Unaids, usuários de drogas têm 22 vezes mais chances de contrair o vírus. No caso de profissionais do sexo e de homens que fazem sexo com outros homens, a probabilidade é 13 vezes maior.
Estado e Capital são líderes de infecções no Brasil
Os números brasileiros são altos e, dentro do contexto nacional, o Rio Grande do Sul se destaca negativamente. Como realiza todos os anos em 1 de dezembro – Dia Mundial de Luta contra a Aids –, o Ministério da Saúde divulga hoje novos números sobre a doença no País, os quais não são nada alentadores para o Estado.
Porto Alegre, que em 2012 era a capital com o maior número de infecções, com 93,7 casos para cada 100 mil habitantes, e a segunda entre os municípios, agora lidera nos dois segmentos. Os dados mostrarão que houve aumento na taxa em 2013, subindo para 95,07 casos por 100 mil pessoas.
Aliás, estão no Rio Grande do Sul seis das 10 cidades do Brasil com maior taxa de infecção (Porto Alegre, Alvorada, Guaíba, Rio Grande, São Leopoldo e Viamão). De acordo com o Boletim Epidemiológico 2013, o número de novos casos notificados em 2012 no Estado foi de 4.458, o que representa uma taxa de 41,4 casos a cada 100 mil habitantes, índice superior ao dobro do nacional (20,2).
O Rio Grande do Sul apresenta os maiores índices em praticamente todos os segmentos de análise. No que diz respeito às contaminações de crianças menores de cinco anos de idade, a taxa média nacional, em 2012, era de 3,4 por 100 mil habitantes. O índice gaúcho, por sua vez, era de 9,1. Outro dado preocupante é o que aponta a taxa de mortalidade. No Brasil foi de 5,5 óbitos por 100 mil pessoas. No Estado, a taxa foi de 11,1.
Diante deste cenário, cabe a pergunta: por qual razão os gaúchos contraem mais o vírus HIV? Sabidamente, não existem respostas simples para problemas complexos. A situação em que a epidemia se encontra no Estado passa por diversos fatores, desde a queda no uso de preservativos, pelo envelhecimento saudável da população e pela cultura machista. O fato é que os gestores públicos parecem não conseguir dar respostas eficazes ao problema.
Para abordar melhor o tema, o Jornal do Comércio irá publicar, nesta semana, uma série de reportagens. Entre os assuntos, estão os motivos da alta incidência entre os gaúchos, os desafios da prevenção, o dia a dia das pessoas que vivem com o vírus e os avanços e perspectivas da ciência.
Tema precisa voltar à mídia
Atualmente, a estimativa do Ministério da Saúde é de que, aproximadamente, 718 mil pessoas vivam com o vírus HIV no Brasil. Destes, em torno de 20% ainda não sabem que foram infectados. Considerando os dados acumulados de 1980 a dezembro de 2012, no País – ano com as últimas estatísticas consolidadas –, foram notificados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, um total de 672.697 casos.
Apesar disso, a doença deixou de ser um assunto cotidiano. Não se fala mais sobre Aids, a não ser nas páginas dedicadas à ciência nos jornais e revistas. A Aids no dia a dia, a vida com o vírus, as dificuldades enfrentadas pelos infectados. Isso não tem mais espaço na mídia. Com a eficácia dos tratamentos, a seriedade da epidemia foi diminuída. “Não vemos mais ídolos falando de Aids. Hoje, não sei dizer uma pessoa que esteja na mídia que fale ‘estou vivendo com o vírus’. Como o tratamento é eficaz e cada vez mais acessível, as pessoas tem mais facilidade em esconder, de não contar para as outras que estão infectadas. Assim, acontece que a sociedade não fala mais sobre a doença”, afirma a coordenadora do Unaids no Brasil, Georgiana Braga-Orillar. A Aids foi esquecida no Brasil. Entretanto, o HIV está nas ruas. Sem espaço nos noticiários, agora vive nas sombras, à espreita, pronto para fazer mais uma vítima.
Conforme Georgiana, o País funciona como um termômetro do comportamento da epidemia no mundo. “Além de sermos uma nação grande, temos uma população muito heterogênea”, observa. Segundo ela, o Brasil deu uma resposta cedo à epidemia. Assim, viu um declínio das infecções quando o tratamento começou a ser disseminado.
Entretanto, a tendência atual é de aumento do número de infecções. Em razão disso, surge a dúvida: por que os índices crescem no Brasil enquanto caem em diversas outras partes do mundo? “Isso ocorre porque há um declínio em muitos países da África, com a oferta do tratamento e a redução da transmissão de mãe para filho. No Brasil, isso já aconteceu há alguns anos. Temos medo de que possa haver uma tendência global desse aumento, pois há outros países que deram essa resposta cedo também”, diz. A representante do programa da ONU destaca que a tendência de aumento das taxas de infecção se dá em razão, principalmente, do acréscimo de contaminação de jovens homossexuais. “Estamos vendo, de novo, o perfil do início da epidemia.”
Juliano Tatsch e Paula Sória Quedi
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