No pacote de vergonhas que assolam o país, o avanço da sífilis congênita é uma daquelas situações que deveria tirar o sono de ministro e secretários estaduais e municipais da saúde.
(Folha de S. Paulo, 13/06/2017 – acesse no site de origem)
Em 2001, a incidência da doença era de um caso a cada mil bebês nascidos vivos. Havia uma meta da Opas (Organização Pan-Americana de Saúde) e do Unicef de o Brasil chegar em 2015 com 0,5 caso de sífilis congênita por mil nascidos vivos.
Não só não atingimos esse objetivo como nos distanciamos muito mais dele. Em 2015, a incidência de sífilis congênita foi de 6,5 em mil. No Rio de Janeiro, a situação é ainda mais vergonhosa, de 12,4 em mil, segundo reportagem do jornal “O Globo”.
Entre 2014 e 2015, a sífilis adquirida teve um aumento de 32,7%; a sífilis em gestantes, de 20,9% e a congênita, de 19%. Ou seja, estamos vivendo uma nova epidemia de sífilis, uma doença sexualmente transmissível que parecia existir apenas nos livros de história.
A doença, que remonta ao século 15, ficou anos fora dos holofotes do Ministério da Saúde. Tanto que sua notificação só se tornou obrigatória em 2010. Uma das hipóteses para explicar o aumento da doença é o fato de as pessoas estarem se descuidando dos hábitos de prevenção (relações sexuais sem camisinha).
O problema não é só nosso. Os Estados Unidos e países da Europa também registram diminuição do uso do preservativo e o ressurgimento antigas DSTs (Doenças Sexualmente Transmissíveis), como sífilis, clamídia e a gonorreia.
No caso das nossas crianças e gestantes, não é preciso ser expert em saúde pública para perceber onde está o problema crucial: falta de assistência adequada no pré natal.
O Ministério da Saúde aponta outros fatores, como a melhoria da vigilância e do diagnóstico. Pode até ser, mas como bem lembra o pediatra Gil Simões, diretor do Cremerj (Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro), há um aumento real de casos sendo observados nas maternidades e hospitais, que antes não se via.
“Há ainda um abismo de classes. Os mais pobres são os mais atingidos porque, muitas vezes, não têm acesso a um pré-natal bem feito. E isso não tem a ver apenas com o número de consultas. Ainda faltam capacitação e atualização dos profissionais de saúde no manejo das DSTs”, disse Simões ao jornal “O Globo”.
É isso. Capacitação, atualização e revisão de processos. A cada nascimento de criança com sífilis congênita deveria acender uma luz vermelha em todas instâncias das gestões em saúde e começar uma investigação séria para entender a razão das falhas assistenciais e um esforço coletivo para que elas não se repitam.
Em outubro passado, o Ministério da Saúde lançou uma ação nacional de combate à sífilis junto aos profissionais de saúde. A meta é melhorar a qualidade do pré-natal e do diagnóstico e a precisão das notificações, que são obrigatórias. Iniciativas parecidas já foram aconteceram em gestões anteriores, mas quem está lá na ponta diz que ainda faltam informação e atendimento básico de qualidade.
A recomendação é que o teste para detectar a sífilis durante o pré-natal seja feito no primeiro trimestre de gestação, refeito no 3º trimestre e repetido antes do parto, já na maternidade. Quando o resultado é positivo, é preciso tratar corretamente a mulher e seu parceiro. A penicilina é o único medicamento capaz de tratar a mãe e o bebê.
Em anos anteriores, houve desabastecimento do remédio (as grande farmacêuticas não têm mais interesse em fabricá-lo), mas, segundo o ministério, atualmente o país não registra mais falta de penicilina.
A sífilis congênita é uma síndrome que pode causar má-formação do feto, aborto ou morte do bebê. Na maioria dos casos, os sinais e sintomas estão presentes já nos primeiros meses de vida. A criança pode ter pneumonia, feridas no corpo, cegueira, dentes deformados, problemas ósseos, surdez ou deficiência mental.
Os efeitos da bactéria causadora da sífilis (Treponema pallidum) no cérebro dos bebês podem ser tão devastadores quanto os provocados pelo vírus da zika. A diferença é que, para a sífilis, existe tratamento efetivo há décadas.
Sobre isso, Carolina Batista, diretora médica para a América Latina da iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi), vai direto ao ponto: “Falamos de uma doença para a qual a medicina já encontrou a solução. Mas a sociedade ainda não.”