22/05/2010 – Uma em cada sete brasileiras já fez aborto (Época/Estadão/Folha)

22 de maio, 2010

(Época / Folha de S.Paulo / O Estado de S. Paulo) Pesquisa domiciliar de abrangência nacional sobre a prática do aborto por mulheres de 18 a 39 anos revelou que a maioria das brasileiras que já interrompeu uma gravidez é casada, religiosa e já tem filhos.

Financiada pela Fundação Nacional de Saúde, a Pesquisa Nacional de Aborto revelou que uma em cada cinco brasileiras de 40 anos (22%) já fez pelo menos um aborto; quando consideradas mulheres de todas as idades, uma em cada sete (15%) já abortaram. O maior levantamento sobre o tema realizado no Brasil mostrou também que a prática não está restrita a adolescentes: cerca de 60% das mais de 2 mil entrevistadas interromperam a gravidez no auge do período reprodutivo – entre 18 e 29 anos. A pesquisa usou duas técnicas de sondagem: cada entrevistada preencheu sozinha um questionário e o depositou em uma urna e depois respondeu a outro, aplicado por uma entrevistadora.

“A maioria é de mulheres casadas, religiosas, com filhos e baixa escolaridade”, diz a antropóloga Debora Diniz, da Universidade de Brasília, uma das autoras do estudo. “Elas já têm a experiência da maternidade e tanta convicção de que não podem ter outro filho no momento que, mesmo correndo o risco de serem presas, interrompem a gestação”, diz a pesquisadora. “Cerca de 55% das mulheres precisou ser internada por causa de complicações. Se o aborto seguro fosse garantido, isso seria evitado”, lamenta Debora Diniz.

Realizada em janeiro pelo Ibope, a pesquisa foi elaborada pelo Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, em parceria com a UnB. A pergunta formulada foi: “você já fez aborto?”. As respostas confidenciais foram depositadas em uma urna e questionários com os dados sociais e demográficos das entrevistadas foram preenchidos por entrevistadoras mulheres.

A reportagem da revista Época contabiliza: se uma em cada sete mulheres brasileiras entre 18 e 39 anos já fez aborto, isso representa um grupo de cerca de 5,3 milhões de brasileiras, ou 15% da população no auge da fase reprodutiva. “Quase a metade delas é casada ou vive com um companheiro, é católica ou evangélica, tem filhos. (…) A outra metade de mulheres que abortaram segue um padrão igualmente comum. Entre elas, há ricas e pobres, casadas e solteiras, religiosas e agnósticas, com e sem filhos.”

No Nordeste, o porcentual de mulheres que declaram já ter feito um aborto é mais do que o dobro do encontrado na região Sul. “A mulher que aborta não tem um perfil específico. Pode ser qualquer uma, de qualquer classe social”, diz o pesquisador Marcelo Medeiros, do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e coautor da pesquisa.

Procurado pela reportagem do Estadão, Adson França, assessor especial do Ministério da Saúde, declara: “Os dados reafirmam a opinião já consolidada no Ministério da Saúde de que aborto é uma questão de saúde pública. (…) Mostra que estamos no caminho certo ao ampliar a oferta de métodos contraceptivos no Sistema Único de Saúde”. Segundo França, “nos últimos sete anos, o número de curetagens pós-aborto no SUS caiu de 240 mil para 200 mil ao ano”.

Para o pesquisador do Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas Anibal Faúndes, os números ainda estão subestimados. “Qualquer estudo feito com entrevista face a face não consegue que todas as mulheres admitam o aborto. A realidade é daí para cima”, diz o pesquisador, para quem ainda há muito a ser feito. “A mulher atendida em um hospital após passar por aborto não poderia ter alta sem receber orientação para uso de contraceptivo. Isso não acontece. Também é preciso ampliar o acesso entre as adolescentes“, recomenda Faúndes.

A pesquisa apresentou também informações sobre os métodos usados para realizar o aborto. Mais da metade das mulheres conta ter usado remédios. A pesquisadora supõe que a outra metade tenha recorrido a clínicas particulares.

A pesquisa rompe alguns mitos sobre o tema, como o de que a prática seria mais comum entre as pobres. Os números mostram que o aborto se distribui de forma equilibrada em todas as classes sociais. O segundo mito, reforçado por grupos religiosos, é de que o aborto só seria feito por mulheres que não estão integradas a uma família: “essa mulher sabe o que é uma família e frequenta igrejas e templos”, diz Débora Diniz.

Estatuto do nascituro

O Código Penal brasileiro permite a interrupção da gravidez somente em dois casos: estupro e risco de morte da mãe. Na semana passada, a Comissão de Seguridade Social da Câmara aprovou um projeto conhecido como “estatuto do nascituro”. Se for convertido em lei da forma em que foi aprovado, o projeto tornará mais difícil o aborto nas circunstâncias hoje permitidas por lei, porque protege legalmente o embrião, mesmo in vitro, antes da transferência para o útero materno.

Mas, na quarta, a deputada relatora Solange Almeida (PMDB-RJ) elaborou uma complementação de voto para ressaltar que o texto aprovado não altera o Código Penal.No entanto, o artigo 12 do substitutivo diz que “é vedado ao Estado ou a particulares causar dano ao nascituro em razão de ato cometido por qualquer de seus genitores”.No caso de estupro, o substitutivo garante assistência pré-natal, com acompanhamento psicológico para a mãe, e o direito de a criança ser encaminhado à adoção, caso a mãe concorde. “Identificado o genitor do nascituro ou da criança já nascida, este será responsável por pensão alimentícia e, caso ele não seja identificado, o Estado será responsável pela pensão”, diz o projeto.Ao nascituro com deficiência o projeto assegura “todos os métodos terapêuticos e profiláticos existentes para reparar ou minimizar sua deficiência, haja ou não expectativa de sobrevida extra-uterina”.O projeto é visto como “total retrocesso” pelos grupos que apoiam a descriminalização do aborto.

O texto determina ainda que o Estado arque com os custos de vida da criança fruto de um estupro, se a mulher não tiver condições de mantê-la, até que o pai seja responsabilizado pela pensão ou ainda até que essa criança seja adotada. Relatora do projeto de lei, a deputada Solange Almeida (PMDB-RJ) afirma que a mulher que foi estuprada faz jus a uma indenização por ter sido vítima de violência, pois garantir a segurança é obrigação do Estado.

O projeto é criticado pelos que advogam pela descriminalização do aborto. Para o deputado federal Darcísio Perondi (PMDB-RS), ele “viola a dignidade das mulheres porque as transforma em simples meio para garantir direitos de um terceiro em potencial”. Já para a deputada federal Rita Camata (PSDB-ES), a iniciativa cria a “bolsa estupro”. “O bebê fruto da violência tem a ajuda do Estado, o bebê pobre, humilde, não?”, diz ela.

“A pesquisa mostra a cara da mulher que aborta. Não é uma outra, é uma de nós. É a nossa colega, a nossa vizinha, a nossa irmã, a nossa mãe. Geralmente, tem companheiro e segue uma religião”, diz a antropóloga Débora Diniz.

O ginecologista Thomaz Gollop, professor livre docente da USP, afirmou à reportagem da Folha que os resultados da pesquisa mostram que os dogmas religiosos estão totalmente dissociados daquilo que acontece na sociedade e que a criminalização do aborto não impede que milhares de mulheres continuem adotando a prática.

Margareth Arrilha, diretora-executiva da CCR (Comissão de Cidadania e Reprodução), afirma que os dados refletem que as mulheres continuam abortando e não encontram respostas nas políticas públicas de saúde. “Estamos vivendo um retrocesso em todas as esferas, no Executivo, no Legislativo e no Judiciário”, afirma.

A matéria da Folha lembra que o projeto que trata da descriminalização do aborto continua parado na Câmara dos Deputados, enquanto a ação que discute se a mulher tem ou não direito a interromper a gravidez em caso de feto anencéfalo (sem cérebro) ainda não foi votada pelo STF (Supremo Tribunal Federal). Recentemente, o governo federal retrocedeu no apoio à descriminalização do aborto, mudando o texto do Programa Nacional de Direitos Humanos.

Em artigo publicado pela Folha, a psiquiatra e sanitarista Marilena Correa, do Instituto de Medicina Social da Uerj, opina que o aborto embute questões que têm a ver diretamente com a injustiça social praticada contra as mulheres. A médica comenta a pesquisa nacional sobre aborto e conclui: “Os riscos à saúde impostos pela ilegalidade do aborto são majoritariamente vividos pelas mulheres pobres e/ou pelas que não têm acesso aos recursos médicos para realizar um aborto seguro. Como já comprovado no plano internacional, isso implica a indução do abortamento, com orientação de profissional ou agente de saúde, pelo uso de medicamento à base de misoprostol. Aquilo que diferencia as mulheres confrontadas ao drama da necessidade do aborto é, antes de mais nada, a chance de passar de forma mais ou menos (in)segura pelo processo.Se todas são criminalizadas e expostas a danos morais, do ponto de vista da saúde pública, podemos afirmar que, no Brasil, o aborto é a prática de saúde perpassada pelas maiores injustiças e desigualdades ligadas à situação socioeconômica das mulheres“, escreve Marilena Correa.

Acesse as reportagens em pdf:
1 em cada 7 brasileiras de 18 a 39 anos já fez aborto / Pesquisa usou duas técnicas de sondagem / Eu fiz / Projeto na Câmara define o que é vida humana / Trecho / Análise: Prática envolve injustiça social com as mulheres / Depoimento: Se tivesse assumido o filho, minha vida poderia ter sido pior (Folha de S.Paulo – 22/05/2010)
Uma em cada sete já abortou / Um raio X do aborto no Brasil / Como duas mulheres passaram por abortos (Época – 22/05/2010)
1 em cada 5 mulheres de 40 anos fez aborto (O Estado de S. Paulo – 22/05/2010)

Leia também:
O dilema do aborto (Folha de S.Paulo – 25/05/2010)
Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna, por Debora Diniz e Marcelo Medeiros (Revista Ciência e Saúde Coletiva, 2010)

Indicação de fontes

Cristião Fernando Rosas – médico ginecologista e obstetra
Febrasgo e Hospital Cachoeirinha
São Paulo/SP
Tel.: (11) 3259-7599 / 9236.6894 – [email protected]
Fala sobre: aborto do ponto de vista médico; prevenção ao aborto inseguro no Brasil

Débora Diniz – antropóloga
Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero
Brasília/DF
Tel.: (61) 3343-1731[email protected]
Fala sobre: direito ao aborto; bioética; direitos das mulheres

Margareth Arilha – psicóloga e coordenadora da CCR
CCR – Comissão de Cidadania e Reprodução

São Paulo/SP
Tel.: (11) 5575-7372[email protected]
Fala sobre: direitos reprodutivos e direito ao aborto

Maria José Rosado Nunes– socióloga e professora da PUC/SP
Católicas pelo Direito de Decidir/Brasil
São Paulo/SP
Tel.: (11) 3541-3476 – [email protected]
Fala sobre: direito ao aborto, aspectos filosófico, moral e religioso; pensamento católico

Thomaz Gollop – médico
Instituto de Medicina Fetal (IMF Brasil) e professor de genética médica da USP
www.thomazgollop.com.br
Tel.: (11) 5093-0809 [email protected]
Fala sobre: aborto como problema de saúde pública

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