Recentemente, a justiça paulista cometeu uma arbitrariedade ao mandar uma mãe grávida de 9 meses para a prisão preventiva em decorrência de ter sido flagrada com 90 gramas de maconha. Jéssica entrou em trabalho de parto e foi levada à maternidade por policiais.
(Justificando, 20/02/2018 – acesse no site de origem)
Especialistas em superlotação carcerária indicaram com propriedade o absurdo de Jéssica não ter sido liberada imediatamente após sua audiência de custódia (que se trata de um trâmite processual pelo qual todo preso em flagrante tem que ser levado à presença de autoridade judicial para ser decidida a necessidade ou não da manutenção da prisão preventiva, em até 24h).
O caso de Jéssica tem muitos pontos a serem observados: era ré primária, estava com 90 gramas de maconha (uma quantidade muito pequena) e grávida prestes à dar a luz. Pois bem, eu não venho aqui fazer uma análise da questão, para isso existem pessoas muito competentes e indico, para quem quiser saber mais: Gorete Marques (NEVUSP), Juliana Borges (FESP), Jacqueline Sinhoretto (UFSCAR) e Camila Dias Nunes (UFABC). Contudo, como feminista e cristã que sou, gostaria de salientar dois pontos nevrálgicos nessa questão: onde estão os homens de bem, cristãos e pró-vida?
Sim, tramita na Câmara dos Deputados a PEC 181/2015, cujo objetivo é inserir na Constituição a proteção ao feto desde a sua concepção e esse projeto tem sido promovido como pró-vida com motes do tipo “vida, sim, aborto, não”. Quando trazemos para a discussão do caso Jéssica a PEC 181, a princípio pode parecer que estão dissociadas, mas não estão. Diariamente, mulheres são enviadas às prisões por conta do tráfico. Geralmente, com poucas quantidades de droga, o dito “aviãozinho”.
Essas mulheres são presas imediatamente nas cadeias públicas (em dias de visitas), ruas e periferias. São arbitrariamente separadas de seus filhos, as crianças enviadas para abrigos e famílias, já em situação de vulnerabilidade, desaparecem e muitas vezes nunca mas reatam os laços. Há uma superlotação de abrigos e prisões com penas que poderiam ser alternativas, ou abolidas (existem duas vertentes de soluções do sistema penal: as penas alternativas ou a abolicionismo penal).
Nesse sentido, pergunto para os militantes pró-vida: vocês são pró-vida de quem?
Pois o bebê Henrico nasceu dentro do sistema penitenciário e passou os seus primeiros dias dentro de uma prisão suja e sem condições de habitação para um bebê. Seu direito de proteção que os propositores da PEC 181 tanto aclamam, acaba no momento do parto? Ou o desejo de luta contra as drogas, o genocídio da população negra e pobre e o encarceramento em massa dessa população superam essa proteção?
Pergunto, pois me parece muito oportuno para os setores conservadores da sociedade pregarem o controle total sobre os corpos femininos, sendo contrários à legalização do aborto, mas não se impressionam, ou lavam as mãos como Pilatos, diante desses absurdos. Quando as feministas se posicionam a favor da legalização do aborto, (demonstrando com estatísticas o quão prejudicial à Saúde Pública é a criminalização do aborto, pontuando que muitas mulheres morrem e deixam outros filhos, que a maioria das mulheres que morre é negra e periférica) são acusadas de abortistas e de agirem contra a vida, mas encarcerar uma mulher em trabalho de parto é ser pró-vida?
Estamos numa guerra que não visa a proteção de bebês, mas sim a manutenção de uma sociedade conservadora e retrógrada que encontra no controle dos corpos das mulheres o sucesso de uma sociedade patriarcal e opressora. Que espolia os mais pobres, para a proteção dos mais ricos.
O segundo ponto que gostaria de levantar nesse debate, diz respeito diretamente aos cristãos: e se o pequeno Henrico fosse o Cristo? Jéssica foi negligenciada pelo Estado prestes a dar à Luz e Henrico foi acolhido num lugar sujo e sem condições sanitárias para abrigar um bebê, uma história muito parecida com aquela que há séculos é esteio do imaginário social de família: o nascimento de Cristo.
Igualmente à Jéssica, Maria não teve o apoio e cuidados necessários no nascimento de seu filho, não havia lugar para hospedá-la, restando apenas um estábulo úmido e cheio de estrume, assim, O Cristo nasce e passa os primeiros dias de vida em meio à imundícia daquele lugar.
A alegoria do nascimento de Cristo é a representação do nascimento de um bebê ingênuo em meio a imundícia humana, o bebê que seria o redentor.
Henrico é o retrato disso: um bebê inocente que nasceu em meio a imundícia de um Judiciário podre, que há anos vem superlotando cadeias e penitenciárias, sem as mínimas condições de habitação e dignidade humana.
Infelizmente, temos cristãos com posturas tão intolerantes e odiosas que me pergunto se realmente são cristãos. Cristãos que enxergam em figuras, como o Bolsonaro, salvadores que portam as verdades bíblicas e que vão governar para as famílias “de bem”. Cristãos que buscam um governante que vai aplicar as leis bíblicas em todo pecador, ignorando, apenas, o maior mandamento de Cristo “Amar o próximo como a si mesmo”.
Há uns dias, circulou um vídeo do Bolsonaro dizendo que se ele fosse eleito, não haveria estado laico, mas, sim, um estado cristão. Pois bem, gostaria de alertar os simpatizantes dessas ideias, que acham que o Brasil precisa ser “cristão a la Bolsonaro”, que esse Governo baseado no ódio aos mais pobres, não tem fundamento em princípios cristãos.
Um governo baseado, de fato, em princípios Cristãos, seria um reino dos mais pobres, oprimidos e das crianças: do Henrico é o Reino dos Céus. Que a indignação vinda do amor ao próximo nos mova na luta contra todas essas arbitrariedades cometidas pela Justiça. Nas atuais condições, Henrico não foi o primeiro e não será o último. Henrico é o Cristo negligenciado pelos próprios cristãos, o Cristo preto, pobre, periférico.
Lutemos por um Estado Laico, sem intervenções de cristãos odiosos e “homens de bem”, que gritam contra a legalização do aborto, mas não se compadecem pelas crianças e mães injustiçadas me nossas periferias. A luta urge, não pararemos!
Simony dos Anjos é graduada em Ciências Sociais (Unifesp), mestranda em Educação (USP) e tem estudado a relação entre antropologia, educação e a diversidade.